sábado, 30 de abril de 2011

O papel do Banco Central

Sonhos de um libertário
Sergio Lamucci | De São Paulo
29/04/2011
Claudio Belli/valor

Hopper: a existência dos bancos centrais é a grande responsável pela crise de 2008/2009, e provocará ainda outras crises
O alemão Hans-Hermann Hoppe é um crítico feroz dos bancos centrais. Para o economista da escola austríaca, a existência dessas instituições é a principal causa de crises financeiras como a que abateu a economia global em 2008 e 2009. "Um banco central é a única instituição que pode criar dinheiro virtualmente a partir do nada. Não se deve esperar que uma instituição que pode imprimir dinheiro, criar crédito e redistribuir renda em seu favor cause uma crise financeira?", diz ele, que se classifica também como um filósofo libertário/anarco-capitalista.

Membro-sênior do Instituto Ludwig von Mises e fundador e presidente da Property and Freedom Society, Hoppe coleciona opiniões polêmicas. Além de defender a extinção dos bancos centrais, vitupera contra a democracia, como no livro "Democracy: the God that Failed". Em seu lugar, Hoppe propõe o que chama de "sociedade de leis privadas", em que até a segurança seria oferecida por companhias particulares, num ambiente de livre concorrência. Nesse mundo, o Estado não existiria.

Hoppe falou ao Valor em São Paulo, no começo do mês. Nos dias 9 e 10, participou do II Seminário da Escola Austríaca, em Porto Alegre, promovido pelo Instituto Ludwig von Mises do Brasil. Hoppe é um entusiasta da obra de Mises, um dos expoentes da escola austríaca, defensor de uma política irrestrita de livre mercado e de respeito total ao direito de propriedade. "'Human Action', a obra mais importante de Mises, ainda será lida daqui a 200 ou 300 anos, ao passo que ninguém mais lerá Milton Friedman dentro de 100 anos", afirma ele, destacando, entre outros pontos, o fato de Mises explicar economia a partir de uma lógica aplicada, integrando-a num grande sistema.

Para Hoppe, a própria existência dos bancos centrais é a grande responsável pela crise financeira de 2008/2009, cujos efeitos ainda afetam a economia global, e não a progressiva desregulação do sistema financeiro a partir dos anos 90. "O banco central é uma instituição muito pouco comum, a única que pode criar dinheiro basicamente a partir do nada. Todos os outros que fizerem isso são considerados criminosos", ataca Hoppe, PhD em filosofia pela Universidade Goethe, em Frankfurt.

"Só bancos centrais podem criar dinheiro basicamente a partir do nada. Todos os outros que fizerem isso são considerados criminosos"
Hoppe diz que há algumas diferenças institucionais no modo como bancos centrais operam na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, mas o princípio básico é sempre o mesmo: a possibilidade de imprimir dinheiro. "É sempre possível criar um boom reduzindo os juros a um nível artificialmente baixo. Se as coisas vão mal, o banco central pode resgatar a si mesmo, simplesmente imprimindo os recursos necessários para cobrir suas perdas. Os ganhos são privatizados, obtidos pela expansão de crédito, e as perdas são socializadas quando as coisas dão errado."

Como os bancos centrais vão continuar a existir, a eclosão de novas crises é apenas questão de tempo, afirma Hopper, observando que o problema foi enfrentado pela impressão de ainda mais dinheiro. O resultado? Uma nova bolha em gestação, ainda maior que a anterior, que terá um colapso ainda mais drástico, vaticina.

Para o economista, a melhor resposta à crise seria ter deixado os bancos quebrarem. "Governos e Estados amam crises, porque oferecem sempre a possibilidade de aumentar o poder. A resposta à crise foi aumentar ainda mais o poder dos bancos centrais, para supervisionar o sistema bancário, quando o mais adequado seria deixar os bancos quebrados falirem. Isso teria afetado alguns grandes 'players', mas não a maior parte dos pequenos homens de negócios e as pessoas mais pobres ou moderadamente ricas. O que ocorreu foi o resgate de governos, grandes bancos e pessoas bem relacionadas. Se os bancos cometeram erros, como qualquer outra empresa, deveriam falir", diz Hoppe, para quem também é um erro o resgate dos países europeus, como Grécia e Portugal.

Mas se a crise se agravou com o colapso de um banco que não era gigante - o Lehman Brothers -, a quebra de instituições do tamanho do Citigroup e a AIG não teria um impacto ainda maior sobre a economia real? "Por que isso ocorreria? Alguns bancos quebrariam, alguns grandes investidores nesses bancos também quebrariam, mas os ativos reais no país continuariam exatamente os mesmos. Não haveria perda de bens. Haveria exatamente as mesmas fábricas, casas, imóveis. Elas apenas iriam para as mãos de pessoas diferentes, que não cometeram erros."


Divulgação

Ludwig Von Mises: expoente da escola austríaca, defensor de uma política irrestrita de livre mercado e de respeito total ao direito de propriedade
Para Hoppe, com essa estratégia o desemprego aumentaria por pouco tempo, e a recuperação da economia seria mais rápida. "Quando as empresas quebram, há um curto período de mais desemprego. Mas isso significa que esses trabalhadores agora estão disponíveis para outras indústrias, em que há mais demanda. O que precisamos, para lidar com o desemprego, é ter mercados de trabalho flexíveis. Os salários devem poder ir para cima ou para baixo, sem nada como leis de salário mínimo."

Mas é realista esperar o fim dos bancos centrais? "Vamos supor que tenhamos hiperinflação. Posso imaginar muito bem que a opinião pública se volte contra o Fed [Federal Reserve, o banco central americano], por exemplo. Há alguns anos, eram considerados intocáveis, falavam no Maestro [Alan] Greenspan [ex-presidente do Fed], apenas atrás de Deus. Hoje ninguém mais os vê desse modo."

Num mundo sem bancos centrais, os juros seriam fixados pelo mercado e haveria a tendência de que uma commodity, possivelmente o ouro, se desenvolvesse como moeda de uso global, para facilitar as trocas. "Por centenas de anos tivemos dinheiro-commodity e bancos privados concorrentes, emitindo suas notas, sempre resgatáveis em ouro, prata ou outro metal."

Em relação aos juros, Hoppe diz que são "um fenômeno de mercado, como qualquer outro preço". Para ele, a noção de que é necessária uma instituição para fixar os juros é "bastante estranha". "Os juros são simplesmente a relação entre o preço futuro e o preço presente do dinheiro."

Entre as ideias de Hoppe, chama a atenção sua visão negativa da democracia. Segundo ele, o movimento democrático foi inicialmente direcionado contra as monarquias, com o argumento de que eram baseadas em privilégios. Na democracia, isso não ocorreria, e todos seriam iguais perante a lei. "Mas isso é um erro, porque também na democracia há privilégios. A questão é que não são privilégios pessoais, mas de função. Um funcionário público pode fazer coisas que um pessoa comum não pode fazer", afirma Hoppe. "Como uma pessoa comum, não posso tomar seu dinheiro contra sua vontade e gastar como eu quiser. No caso dos funcionários públicos, isso é chamado de política social e redistribuição de renda." Com isso, privilégios existem na democracia, assim como na monarquia, exceto que eles não são de caráter pessoal.

"A resposta à crise foi aumentar ainda mais o poder dos bancos centrais, quando o mais adequado seria deixar os bancos quebrados falirem"
O segundo ponto é que, ao mudar um rei por governante democrático, troca-se alguém que considerava o país sua propriedade por alguém que se vê como um zelador temporário do país. "Na democracia, a exploração do país, por assim dizer, se torna mais orientada para o curto prazo. Tenta-se tirar o máximo que se conseguir no período mais curto possível."

Para Hopper, outra diferença relevante é que, na democracia, a população tende a ser mais tolerante com a expansão do poder do governo. "Na monarquia, como não serei o rei e você não será o rei, sempre que o governo quiser aumentar impostos, expropriar mais, haverá resistência. Na democracia, como em teoria qualquer um pode se tornar 'rei', há mais tolerância em relação a isso. Não gosto de pagar mais impostos, mas talvez amanhã eu esteja recebendo os recursos dos impostos."

Hopper não propõe, contudo, a volta da monarquia absoluta. Segundo ele mesmo escreveu num artigo, isso seria hoje considerado risível. O que defende é uma sociedade de leis privadas. "Todo indivíduo e toda instituição estariam sujeitos exatamente às mesmas leis. Não haveria nenhuma instituição que pudesse cobrar impostos de outras pessoas ou que tivesse o monopólio da produção de qualquer coisa." Nesse mundo, haveria também livre competição na oferta de segurança, com forças policiais privadas, companhias de seguro privadas e agências privadas de arbitragem, que teriam que oferecer contratos, em contraste com a situação atual. Não temos nenhum contrato com o Estado."

Segundo Hopper, no Estado democrático, quando há conflito entre um cidadão e um órgão estatal, não há arbitragem independente. Há outras pessoas, também empregadas do Estado, que decidem quem está certo. "Além disso, uma companhia privada que o proteja nunca poderia mudar o contrato unilateralmente, como fazem os Estados ao aumentar os impostos, por exemplo. Sempre que eles passam uma nova lei, as regras do jogo mudam. Coisas que eram legais ontem se tornam ilegais amanhã."

Como transição até esse modelo, Hoppe imagina um mundo com "dezenas de milhares de países, regiões e cantões, e centenas de milhares de cidades livres independentes, como as excêntricas Mônaco, San Marino, Liechtenstein, Hong Kong e Cingapura". Para ele, esse seria um mundo de prosperidade, crescimento e avanço cultural sem precedentes. como afirmou em entrevista ao "The Brussels Journal". A vantagem, segundo Hoppe, é que pequenos Estados são menos propensos a recorrer a políticas protecionistas, dando prioridade ao livre comércio.

Tudo isso não é utópico demais? "O que os socialistas queriam era verdadeiramente utópico, porque queriam mudar a natureza do homem. O que estou dizendo, o que os libertários dizem, não é utópico nesse sentido", responde Hoppe. Para ele, um fator que pode levar o mundo a caminhar na direção de maior descentralização é a inviabilidade do Estado de bem-estar social. Os sistemas previdenciários, por exemplo, não podem ser financiados no longo prazo, diz.

"Quando esse colapso ocorrer e o Estado de bem-estar social não puder mais ser financiado, poderá haver uma tendência em direção à descentralização e à secessão", afirma Hoppe. Os alemães podem se cansar de custear o socorro a países como Grécia e Portugal. Também pode ocorrer o mesmo com países mais pobres, como Estônia, Lituânia e Eslováquia, cujo padrão de vida é mais baixo do que na Grécia, mas que adotaram políticas econômicas mais sóbrias que os gregos. O mesmo movimento poderia ocorrer dentro dos países, acredita Hoppe, que vê como possível o colapso do Estado de bem-estar social em algo como 20 anos.

O papel da monarquia

Valor Econômico Cultura
Internacional: O casamento que agora se celebra pode ser tão midiático quanto o de Charles e Diana, mas se faz em bases novas e mais sólidas, para os noivos e para a monarquia.
A realeza mais perto do real
Renato Janine Ribeiro | Para o Valor, de São Paulo
29/04/2011

Microescultura na agulha: o futuro casal real por Willard WiganAmonarquia hoje subsiste melhor quando se vê desprovida de todo poder efetivo e, em compensação, carrega forte poder simbólico. Isso começou com a rainha Vitória, da Grã-Bretanha. Quando subiu ao trono, em 1837, a monarquia estava no seu ponto mais baixo. Não fosse ela, pode ser que as Ilhas Britânicas tivessem adotado o regime republicano. Seu tio, que governara de 1811 a 1830, deixara péssima reputação moral. O que fez Vitória, graças a conselheiros hábeis? Retirou a coroa da política. Investiu na vida em família. Ela e o marido, o príncipe Alberto, se tornaram modelos da decência. A imagem de uma realeza que reúne todas as virtudes da vida burguesa e se afasta dos conflitos políticos garantiu enorme estabilidade ao país, então mais poderoso do mundo.

Assim sucedeu com a maior parte das monarquias hoje respeitadas - basicamente, as europeias e a japonesa. Nos países árabes, a realeza é ditatorial; na Tailândia, quase. Mas no Reino Unido, na Espanha, Escandinávia, Bélgica, Holanda e algumas outras nações, a monarquia consegue respeito porque é símbolo da unidade. A diferença fica por conta dos partidos políticos. São regimes fortemente democráticos porque sabiamente dosam a parcela necessária de unidade nacional - com uma família real, ducal ou o que seja - e a parte imprescindível de conflito e diferença, esta a cargo dos partidos.

Como todo simbolismo, este deita raízes numa ilusão. Mas é uma ilusão produtiva. Nas repúblicas, há o risco de que a competição eleitoral, mesmo respeitando-se a legalidade e a decência, divida a sociedade. Vivemos isso no Brasil, nas últimas eleições gerais. Apesar de termos disputas livres para a Presidência desde 1989, de contarmos com um ramo do poder judicial especializado em assuntos eleitorais e de os candidatos não representarem opções abissalmente opostas entre si, o fato é que o país viveu um clima apocalíptico. Ora, em monarquias constitucionais, ainda que as paixões se acirrem, há um ponto de convergência em torno de um simbolismo que é nacional: o rei é chefe de Estado, enquanto os líderes eleitos são chefes de governo. O poder eleito pode até extinguir a monarquia, se assim o quiser, mas prefere mantê-la, porque confere estabilidade às instituições.

Mas não basta querer para ter isso. Quando houve nosso estranho plebiscito sobre monarquia ou república, em 1993, alguns defensores do regime monárquico mencionaram essa sua qualidade estabilizadora. Mas isso não se introduz a frio, como um elemento de engenharia política. Monarquias que funcionam devem sua eficácia à história do país, na qual de algum modo desempenharam um papel importante. Tomemos alguns exemplos, além do britânico.

Muito se espera do príncipe William, que pode ser o próximo rei. Diana foi uma mãe amorosa e parece tê-lo formado num molde mais moderno
A Espanha: Juan Carlos foi o sucessor preparado pelo ditador Franco, um dos piores déspotas do século XX - mas o príncipe, uma vez coroado, liquidou o legado fascista. E em 1981, quando um coronel ensandecido tentou um golpe de Estado, o monarca acabou com a farra indo à televisão defender a democracia. Já na Bélgica, cujo rei Leopoldo III se rendeu aos alemães em 1940 e colaborou com os ocupantes, uma longa crise se sucedeu à libertação do país, só acabando quando o rei abdicou. Talvez por isso, ainda hoje a monarquia belga não contribui para resolver o problema da unidade nacional de seu país. Em suma, são respeitados os reis que o merecem; os infames, não.

Num livro que cedo se tornou clássico, "A Invenção das Tradições", organizado por Eric Hobsbawm, o historiador David Cannadine - certamente o melhor estudioso atual da monarquia britânica - mostra como os rituais "antigos" da realeza, na verdade, são recentes. Basta pensar nas carruagens, que é o que mais nos impressiona nas cerimônias monárquicas: há pouco mais de um século, eram veículos normais de transporte. Muito da propalada antiguidade monárquica data mesmo do século XIX - desse período em que Vitória retira a monarquia da política e a consolida na moral.

Mas mesmo isso não foi fácil. Alguns monarcas não souberam arcar com o pesado fardo que Vitória legou. Seu filho, Eduardo VII, que reinou de 1901 a 1910, ficou notório por seus casos amorosos. Mais tarde, Eduardo VIII abdicou do trono para se casar com uma americana divorciada e se tornou o duque de Windsor, personagem do jet set internacional e nada mais que isso. Esse breve rei simbolizou, para muitos, o homem que tudo sacrifica por amor; mas sabe-se, hoje, de seu egocentrismo (e de sua mulher), de sua ambição e, pior que tudo, de sua simpatia pelo nazismo.

Em compensação, os dois reis George - o V, que reinou durante a Grande Guerra, e o VI, que sucedeu ao irmão para reinar durante a II Guerra Mundial - desempenharam muito bem o papel de monarcas. O filme "O Discurso do Rei" (2010), de Tom Hooper, mostra o custo que teve, para George VI, assumir o trono quando o irmão renunciou para se casar com Wallis Simpson: ele era gago. Nada previa que ele reinasse, ou sua filha, a rainha Elizabeth II. Mas ele, a mulher e as filhas ficaram em Londres ao longo de todos os bombardeios nazistas e seu exemplo fortaleceu o esforço de guerra de um país que, por mais de um ano, aguentou sozinho o tranco da máquina de guerra alemã. Não foi pouco. Segundo sua mulher, a Rainha Mãe, que morreu em 2002 aos 101 anos, isso abreviou sua vida (por isso, ela nunca perdoou o duque de Windsor).

Mas, após esses períodos quase heroicos, a realeza entrou em forte crise, especialmente naquele que Elizabeth chamou o "ano horrível" de 1992 - quando seus filhos Andrew, Anne e Charles se separaram de seus cônjuges. A sociedade sentiu que os príncipes, longe de colocarem a vida pessoal em segundo plano para cumprir seus deveres - pelos quais são regiamente pagos -, queriam o melhor de dois mundos: dinheiro e prazer. A monarquia moral de Vitória entrava em colapso, e a rigidez do príncipe Philip - que vemos no belo filme "A Rainha" (2006), de Stephen Frears - não conseguiu enquadrar a família; talvez só tenha piorado as coisas.

Mas a esperança está na nova geração. É verdade que o príncipe Charles, que se tornara impopular depois que sua mulher, Diana, disse que o casamento deles era "a bit crowded" (que havia uma multidão na relação, aludindo ao amor dele por Camila Parker-Bowles), recuperou o respeito nos últimos anos. Mas, sobretudo, muito se espera do príncipe William. Ele é filho de Diana, que foi uma mãe amorosa e parece tê-lo formado num molde mais moderno. Vive com a namorada há anos, de modo que sumiu a mística da virgindade da noiva. Parece que a ideia de uma família real moralista e casta - que seu pai e tios não conseguiram sustentar, porque se tornou deslocada em nosso mundo - está dando lugar à de um casal que se conhece e se ama. E ele pode ser o próximo rei. Elizabeth II, se for longeva como a mãe, poderá sobreviver ao filho - ou Charles poderá herdar o trono, mas por poucos anos. O casamento que agora se celebra pode ser tão midiático quanto o de Charles e Diana, mas se faz em bases novas e mais sólidas, para os noivos e para a instituição monárquica.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Direitos Humanos e a guerra

O direito humano à guerra
José Luís Fiori
27/04/2011 Valor Econômico "Eu via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras. Por causas fúteis ou mesmo sem motivo se corria às armas e quando já com elas às mãos, não se observava mais respeito algum para com o direito divino nem para com o direito humano, como se pela força de um edito, o furor tivesse sido desencadeado sobre todos os crimes". Hugo Grotius, "O Direito da Guerra e da Paz", 1625

Hugo Grotius (1583- 1645), pai do direito internacional moderno, foi herdeiro da tradição humanista e cosmopolita da filosofia estóica, que formulou, pela primeira vez, a ideia de uma sociedade internacional solidária e submetida à leis universais. Mesmo sendo cristão e teólogo, Grotius desenvolveu a tese de que essas leis universais faziam parte de um "direito natural comum a todos os povos...tão imutável que não poderia ser mudado nem pelo próprio Deus". Para o jurista holandês, o direito à segurança e à paz faziam parte desses direitos fundamentais dos homens e das nações. Apesar disso, Grotius considerava que o recurso à guerra também era um direito natural dos povos que viviam dentro de um sistema internacional composto por múltiplos estados, desde que a guerra visasse "assegurar a conservação da vida e do corpo e a aquisição das coisas úteis à existência". Mas apesar disso, Grotius não concebeu nem defendeu a possibilidade de que se propusesse como objetivo a defesa ou promoção internacional dos próprios direitos humanos. Em parte, porque ele era católico e conhecia a decisão do Concílio de Constança (1414- 1418) que fixara a doutrina da ilegitimidade da "conversão forçada", e de todo tipo de guerra visando a conversão de outros povos, como tinha sido o caso das Cruzadas, nos séculos anteriores.

Direitos Humanos é um terreno cercado de boas intenções, mas minado pela hipocrisia e pelo oportunismo
Depois do Concílio de Constança, o conceito de "guerra justa" ficou restrito - para os católicos, e para quase todos os europeus - às guerras que respondessem a uma agressão, e que fossem caracterizadas como um ato jurídico, destinado a reconstituir o status quo ante. Grotius não desenvolveu o argumento, mas se pode deduzir, do seu ponto de vista, que os direitos humanos, como a fé religiosa, são uma luta e uma conquista de cada homem, e da cada povo em particular. Sobretudo, porque ele foi um dos primeiros a se dar conta que num sistema internacional formado por múltiplos estados, era inevitável que coexistissem várias "inocências subjetivas", frente à uma mesma "justiça objetiva". Não havendo forma de arbitrar - "objetivamente" - sobre a razão ou legitimidade de uma guerra declarada entre dois povos que reivindicassem uma interpretação diferente, dos mesmos direitos fundamentais, dos homens e das nações. Nesse sentido, a própria ideia de uma guerra em nome dos "direitos humanos", contém uma contradição conceitual, e é por isso que todas elas acabam se transformando, inevitavelmente, numa "guerra de conversão", ou numa nova forma de Cruzada.

Em última instância, esse também é o motivo pelo qual a discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, se transformou - depois do fim da Guerra Fria - num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a arrogância de alguns estados e governos que se auto-atribuem o "direito natural" de arbitrar e difundir, pela força, a tábua ocidental dos direitos humanos. Para compreender a complexidade e a fluidez dessa fronteira, basta ler um outro grande filósofo iluminista e cosmopolita, o alemão Immanuel Kant, dividido entre a sua utopia de uma "paz perpétua", e o seu desejo de converter o "gênero humano" à "ética internacional civilizada". Para Kant, "no grau de cultura em que ainda se encontra o gênero humano, a guerra é um meio inevitável para estender a civilização, e só depois que a cultura tenha se desenvolvido (Deus sabe quando), será saudável e possível uma paz perpétua". ("Começo verossímil da história humana", 1796)

Para ver na prática, como se desenvolvem essas guerra kantianas, basta observar o caso mais recente da intervenção na Líbia, iniciada por um governo francês de direita e em estado de decomposição, seguido por um governo inglês conservador e absolutamente inexpressivo, e por um governo americano ameaçado por graves dificuldades internas. Tudo começou sob o aplauso internacional de quase todos os defensores dos direitos humanos, de direita e de esquerda, que consideravam se tratar de um caso indiscutível de "guerra legítima", feita em nome da defesa de uma população agredida e desarmada. Mas já agora, depois de algumas semanas de morticínio, de lado e lado, vai ficando cada vez mais claro que o que está em questão, não é o direito à vida e à liberdade dos líbios, nem tampouco, a promoção de uma democracia universal. Ao mesmo tempo e na medida mesmo em que a guerra da Líbia vai se transformando, de forma cada vez mais clara, num exercício militar experimental de implantação de uma cabeça-de-ponte, para uma intervenção futura, eventual e mais ampla, das forças da OTAN, na África.

Agora bem, olhando de outro ângulo, se pode observar uma recorrência e uma dificuldade análoga, no debate e nas iniciativas dos organismos internacionais, com relação à defesa e à promoção dos "direitos fundamentais", ao redor do mundo. O que se tem assistido nos últimos anos é quase sempre o mesmo filme: de um lado se posicionam e votam os inocentes úteis e os defensores generosos do princípio, do projeto e da utopia; e do outro, se posicionam os países que se utilizam do seu apoio e da sua mesma retórica para projetarem seu poder e sua estratégia geopolítica. Por meio de "guerras humanitárias", promovidas ou lideradas, invariavelmente, pelos mesmos países que compõem o atual "diretório ético e militar do mundo", ou seja: EUA, Grã Bretanha e França.

José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007. Escreve mensalmente às quartas-feiras.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Crise Econômica

Folha de São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 2011




ENTREVISTA CARMEN REINHART

Países desenvolvidos terão anos sem brilho, com crescimento fraco

ECONOMISTA QUE ESTUDOU CRISES APONTA QUE ENTRADA DE CAPITAL EXTERNO PODE SER PERIGOSA A EMERGENTES

ÁLVARO FAGUNDES
DE NOVA YORK

A crise global como vimos em 2008 e 2009 chegou ao fim, mas a "sombra" dela ainda vai permanecer por muitos anos.
Uma das consequências é que os países ricos, como os Estados Unidos, deverão ter anos sem brilho, com baixo crescimento.
Essa é a opinião de Carmen Reinhart, uma das mais importantes economistas americanas e autora, ao lado de Kenneth Rogoff, do elogiado livro "Oito Séculos de Delírios Financeiros", em que analisam diversas crises ao longo do tempo.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha - Nos últimos meses, os mercados, especialmente nos EUA, têm se comportado como se a crise tivesse chegado ao fim. A crise acabou?
Carmen Reinhart - O drama que vimos no fim de 2008 e no início de 2009 chegou ao fim. Não se vê algo algo daquela dimensão muito frequentemente.
Mas uma solução duradoura ainda não foi atingida. As economias avançadas -a maioria das europeias, os EUA e o Japão- têm dívidas pesando sobre suas cabeças.
Você veio do Brasil, sabe que o grande drama da crise da dívida na América Latina foi quando o sistema começou a implodir no início dos anos 1980, mas levou um bom tempo até que fosse resolvido.
Os mercados sobem e descem. Para falar a verdade, os mercados começaram a contar com o ovo antes de a galinha pô-lo, antecipando uma recuperação mais forte do que o que ocorreu realmente.


Os mercados desenvolvidos vão enfrentar o mesmo problema que os latino-americanos nos anos 1980?
Eles não vão, eles estão. Em 2006, dava para imaginar uma conversa envolvendo a reestruturação da dívida de países europeus?
É preciso colocar as coisas sob perspectiva. Não acredito que as condições serão as mesmas, porque os emergentes perderam o acesso aos mercados internacionais de capital de uma maneira que os países desenvolvidos não perderam.
Não tenho dúvida de que, se a Grécia e a Irlanda não tivessem a União Europeia por trás, nós teríamos "default" (calote), reestruturação.
Se nós olharmos quem está comprando os títulos da dívida deles, é o BCE (Banco Central Europeu), e não investidores privados.
Então, quando você me pergunta se a crise já acabou, eu acho que a sombra que ela projetou é grande e que nós ainda não a superamos.


Então, a sra. não vê o desemprego nos Estados Unidos recuando nos próximos dez anos para o nível do fim de 2007, próximo a 5%?
Acho que vai demorar um tempo até voltarmos a 5%. A minha expectativa é de que o desemprego nos EUA permaneça teimosamente alto, acima de 8%.
Para começar, os preços do setor imobiliário estão muito longe da recuperação e o setor de construção é um que exige muita mão de obra.
Eu acho que os EUA e a maioria dos países avançados terão anos sem brilho, com crescimento abaixo da média.
As dívidas das famílias americanas estão perto do seu nível recorde e as empresas financeiras estão altamente endividadas.
Nos EUA, o único setor que está relativamente enxuto é o de empresas não-financeiras, mas, ao mesmo tempo, os planos de investimento delas, quanta gente mais pretendem empregar, dependem da expectativa de como será o consumo.
E isso nos traz de volta à questão das dívidas das famílias.


Voltando à questão fiscal, quais serão as consequências dessa crise na economia real dos Estados Unidos?
Não estamos ainda no nível de uma crise fiscal nos padrões de Portugal, da Grécia e da Irlanda, mas os efeitos serão mentais.
As expectativas das pessoas serão reduzidas, os valores de aposentadorias não serão os entregues em sua plenitude e os impostos também devem subir.


Qual é a sua avaliação sobre a atuação do governo Obama e do Fed [Federal Reserve, o banco central dos EUA]?
Eu acho que o Fed tem atuado de maneira bastante agressiva e rápida, mas ele precisa convencer o mercado e o setor privado de que, quando chegar o momento, também vai agir agressivamente e rapidamente para aumentar os juros.
Sobre a administração Obama, acho que já chegou a hora de apresentar um plano para reduzir a dívida.
Uma coisa é dizer que temos, com a crise, uma situação fora do comum e estímulo é necessário.
Mas é preciso estabelecer uma estratégia para reduzir a dívida. Dizer que a dívida vai se estabilizar em 77% [em 2021] é realmente medíocre.


E quais efeitos os países emergentes devem sofrer?
Ainda não acabou o ciclo de busca por rendimentos maiores nos países emergentes, neste momento de juros baixos nas economias avançadas.
A combinação do desemprego nas economias avançadas e de dívida alta nesses países inclina a política monetária para o afrouxamento e para a manutenção dos juros baixos.
Então acredito que os países emergentes terão provavelmente que continuar a lidar com essa faca de dois gumes que é a enorme entrada de capital estrangeiro.


Por que é uma faca de dois gumes?
Entrada de capital externo, como os brasileiros bem sabem, está geralmente associada à alta da moeda.
A valorização cambial pode ser tolerada até o ponto em que não começa a deteriorar a conta-corrente, o que já começou a ocorrer no Brasil. Ela também só pode ser tolerada enquanto não começa a afetar a capacidade competitiva de um país, especialmente do setor industrial, o que também já ocorre no Brasil.
O problema com a entrada de capital é que ou você não recebe nada ou recebe demais. Eu acho que essas questões de administração do ingresso de capital externo vão perdurar por mais algum tempo nos países emergentes.


Qual é a sua opinião sobre a forma como o Brasil está administrando a entrada de capital externo?
Tenho algumas preocupações. Acho que o Brasil está indo no caminho certo ao aumentar os tributos sobre o capital especulativo, mas temo que, se o país continuar com a intervenção esterilizada [no câmbio] e perpetuar o diferencial de juros, isso é um negócio perigoso.


Por quê?
Porque, com base na minha própria pesquisa, quando você tem políticas que perpetuam o diferencial de juros você tende a dar mais força para esse processo, ou seja, atrair mais capital.


A China está tentando conter a inflação. Quais são os riscos que ela pode trazer para a economia global?
Os riscos que a China traz têm a ver com o seu tamanho, é a segunda maior economia do mundo, e tem grande influência sobre os mercados de commodities.
A China enfrenta algumas questões parecidas com as do Brasil, mas não de maneira tão aguda, porque ela tem mecanismos de controle de capital.
O dilema que eles enfrentam é que, quanto mais tempo eles tentarem impedir a valorização do yuan, mais as pressões inflacionárias durarão e mais serão crônicas.
A China vai ter um período difícil, tentando conter a inflação sem tirar muito do crescimento. Eu preciso acrescentar, porém, que a questão da inflação na China é pior do que os dados oficiais mostram.


E a inflação no mundo? Os preços, especialmente nos emergentes, continuam a subir. É um problema que vai continuar?
Acho que é um problema para os emergentes agora, mas que deve se generalizar.
Porém, até isso ocorrer deve ser um período de longa gestação. A inflação é uma questão para os emergentes, devido à entrada de capital.
Para os desenvolvidos, é uma questão ainda menor, especialmente pela falta de força das suas economias. E é um problema ainda menor para os EUA, porque, ao contrário da libra e do euro, o dólar não teve um enfraquecimento sustentado.

Bloco Liberal na América Latina

Folha de São Paulo de 25 de abril de 2011

Bloco "liberal" deve ser contraponto a hegemonia do Brasil

Países latino-americanos da costa do oceano Pacífico pretendem assinar acordo comercial no dia 2 de maio

Chamado de AIP, deverá reunir Peru, Chile, México e Colômbia; analistas veem reação a grupo "bolivariano"

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO

Em 2 de maio, os presidentes de Peru, Chile, México e Colômbia vão oficializar em Lima a criação de um novo bloco econômico que vem sendo chamado de Área de Integração Profunda (AIP), ou "bloco do Pacífico".
Um dos objetivos é ser um contraponto ao poder regional do Brasil e ao Mercosul.
O Brasil vê com ceticismo a iniciativa, capitaneada pelo peruano Alan García, presidente em fim de mandato.
O governo brasileiro aposta na guinada da política externa da Colômbia, que, sob a égide do presidente Juan Manuel Santos, reaproximou-se da Venezuela.
A Colômbia tem também se distanciado um pouco dos EUA, diante da resistência do Congresso americano em aprovar o acordo de livre comércio entre os dois países.
Mas Santos, em entrevista ao jornal "New York Times" em março, deixou claro o objetivo estratégico do novo bloco. "De certa maneira, o bloco vai contrabalançar o Brasil", disse.

ESTRIDÊNCIA
"Trata-se de uma reação instintiva dos vizinhos formar um contraponto ao Brasil, que é a grande potência regional; é um movimento de defesa natural", diz Amado Cervo, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. "Eles estão procurando outras vias para atração de investimentos, dando uma dimensão mais atraente a seus mercados."
A AIP reúne os países "liberais" da região, em oposição à Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), mais à esquerda, cria do venezuelano Hugo Chávez.
A AIP vai conectar 200 milhões de pessoas, 16 mil km de costa no Pacífico e mais de US$ 2,5 trilhão de PIB.
Ou seja, é um bloco que se aproxima das dimensões do Brasil, que tem aproximadamente 200 milhões de habitantes e US$ 2,2 trilhões de PIB. O AIP também é três vezes maior que a Alba.
Os países participantes já mantêm acordos de livre comércio entre si, com a exceção de Peru e México. Todos têm tratados com os EUA, exceto a Colômbia.
"A Alba é muito estridente, mas não traz muitos resultados práticos; já esse bloco pode ter resultados bem mais palpáveis", diz Shannon O'Neil, do Council on Foreign Relations.
"O acordo vai dar a esses países maior poder de barganha para negociar com o Brasil, por exemplo."
Para Cervo, esse novo bloco "só dá continuação a uma dispersão que existe hoje na América Latina

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Neoparamilitares e Colômbia

Fonte: Jornal Brasil de Fato

Neoparamilitares ampliam domínio territorial e aterrorizam o país
qui, 2011-04-07 21:06 — admin

* Internacional

A polícia colombiana acredita que, entre 2008 e 2009, o número de homicídios aumentou em quatro das sete maiores cidades do país


11/04/2011



Simone Bruno
Opera Mundi


Eles surgiram no final dos anos 1960, com a justificativa do combate às FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Em 1997, os paramilitares se agruparam em torno das AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), cujo objetivo permanecia sendo a extinção da guerrilha. No entanto, sem controle do governo, cometeram verdadeiros massacres e forçaram o deslocamento de dezenas de milhares de camponeses, de olho no controle do tráfico de drogas e a pedido de grandes latifundiários e políticos.

Em 2005, durante o mandato de Álvaro Uribe, depuseram as armas após a criação da Lei de Justiça e Paz, uma espécie de anistia aos agressores. Finalmente, em 2008, foram extraditados aos Estados Unidos por narcotráfico e se viram livres das condenações.

Cinco anos depois, o paramilitarismo está de volta à Colômbia ou, como analistas e políticos afirmam, só mudou de nome. Os novos grupos, chamados de Bacrim (bandos criminosos emergentes), surgiram na ocasião do processo de paz com as AUC, substituindo as antigas lideranças. A diferença? Eles agora também atuam nas grandes cidades.

"O triste é que todos os problemas e debates ocorreram por conta do assassinato de dois estudantes da Universidade dos Andes, e não pelos quase 600 colombianos que morreram em Córdoba em 2010", lamenta María Jimena Duzán, da revista colombiana Semana. Segundo a colunista, o país só começou a perceber a existência dos neoparamilitares depois que, em 10 de janeiro, morreram no departamento de Córdoba dois estudantes da universidade mais cara e prestigiada de Bogotá.

A partir de 2005, durante as audiências de Justiça e Paz, como são chamados os processos públicos previstos pela lei de reinserção dos paramilitares, entre 2006 e 2010 foram documentados quase 180 mil homicídios e 40 mil desaparecimentos de responsabilidade dos paramilitares, o que coloca o conflito colombiano entre os mais sangrentos da América Latina.

Há cinco anos, em 1º de março de 2006, surgiram as primeiras críticas sérias ao processo de paz promovido pelo governo Uribe. Naquele dia, a missão na Colômbia da OEA (Organização dos Estados Americanos) publicou um relatório afirmando: "À exceção de algumas regiões, o programa de reinserção está em crise e põe em perigo a viabilidade do processo de paz no longo prazo."

A missão, que desde 2004 acompanhava o processo de paz, se dizia preocupada porque "comandos médios assumem o controle de ações delitivas tradicionalmente realizadas pelo bloco ou frente ali assentados [extorsão, cobrança de dinheiro, limpeza social, alianças com administradores locais] e se organizam em pequenos grupos, dotados de armas curtas, e permanecem nas zonas urbanas comunicando-se por meio de celulares".

Ou seja, a OEA, no início de 2006, avisou o governo colombiano que paramilitares se reagrupavam e controlavam os negócios ilegais de sempre, mas ao mesmo tempo surgiam novos grupos que recrutavam os desmobilizados.

De acordo com Juanita León, diretora do portal informativo La Silla Vacía, durante o processo de paz, os chefes paramilitares se entregaram, mas deixaram escondida boa parte das armas e mantiveram o controle dos negócios ilícitos. Além disso, passaram a liderança a seus coronéis, que rapidamente os substituíram na cadeia de comando quando muitos foram extraditados aos EUA.

A polícia colombiana acredita que, entre 2008 e 2009, o número de homicídios aumentou em quatro das sete maiores cidades do país. Em Cartagena, o aumento foi de 27%, e em Medellín, de até 60%, tanto que o necrotério da cidade já não comporta todos os mortos diários. As pesquisas dizem que a percepção da segurança nas cidades colombianas se deteriorou dramaticamente. A razão principal é que os Bacrim, diferentemente dos velhos paramilitares, operam principalmente nas cidades. O assassinato dos dois estudantes fez com que essa realidade chegasse à primeira página dos jornais.

O candidato à presidência em 2010, Rafael Pardo, chefe do Partido Liberal, explicou ao Opera Mundi que os bandos criminosos são resultado do processo de paz com os paramilitares no governo Uribe. "A única coisa que conseguiram foi jogar terra para ocultar o problema. O paramilitarismo não acabou, apenas mudou de nome".

O ex-presidente Andres Pastrana (1998-2002) comentou durante uma entrevista que Uribe havia deixado “uma herança maldita”. Pastrana apoiou o governo de Juan Manuel Santos e seu ministro da Defesa, Rodrigo Rivera, definido por membros do Partido Conservador e do U como "ministro da insegurança democrática". O ex-presidente ainda acrescentou que Santos tem apenas seis meses e, por isso, não pode ser responsabilizado pelos problemas de segurança.

Ricardo Galán, ex-assessor de Uribe, respondeu a Pastrana: "O ministro da Defesa estrela do governo Uribe foi precisamente o atual presidente Santos. Dizer que os Bacrim são uma herança do governo anterior equivale a responsabilizar Santos pelo problema, porque, por ação ou omissão, ele permitiu a criação e o crescimento desses grupos."

Providências e estatísticas

Diante da emergência com os Bacrim, o governo de Santos decidiu empreender uma mudança de estratégia. Primeiro anunciou uma virada na segurança democrática afirmando que "combater os Bacrim é a nova prioridade da estratégia de segurança nacional e os maiores esforços se concentrarão em fazer frente às ameaças da criminalidade urbana".

O jornalista e professor Juan Diego Restrepo acredita que as autoridades concederam vantagem aos Bacrim, ao acompanhar o crescimento dos grupos e pouco ou nada fazerem no passado para combater a violência. Hoje, quando seu domínio territorial é amplo, o governo nacional desperta da letargia e decide enfrentá-los na nova guerra nacional.

De fato, um informe de 2006 da polícia nacional falava em 22 novos grupos armados integrados por quatro mil homens, enquanto a CNRR (Comissão Nacional de Reparação) informou recentemente que existem atualmente sete grupos principais com 6,5 mil homens (mais de sete mil segundo o think tank Nuevo Arco Iris).

De acordo com outras fontes, esses bandos controlariam a produção de quase 148 toneladas de cocaína, a metade do que se produz na Colômbia, e estariam presentes em 27 dos 32 departamentos do país. Os grupos mais importantes chamam-se Rastrojos, Águilas Negras, ERPAC, Paisas, Urabeños, Nueva Generación e Renacer e estão presentes principalmente em Caquetá, Valle, Putumayo, Nariño, Cauca e Córdoba. Alguns analistas dizem que em breve todos esses grupos poderão se unir em três exércitos principais.

Informes de inteligência da polícia afirmam também que, em algumas regiões, os grupos fazem alianças com os guerrilheiros das FARC, enquanto em outras se enfrentam, como em Cauca, onde recentemente a guerrilha matou 19 integrantes dos Rastrojos.

Segundo León Valencia, diretor do Nuevo Arco Iris, o governo exagera ao falar dessas relações. "Sabemos que existem pactos de não-agressão entre eles nas fronteiras entre Meta e Guaviare, em Nariño, no Baixo Cauca antioquenho e na região de Catatumbo", disse. "Também há acordos para permitir a mobilização da cocaína em alguns corredores estratégicos. São aproximações temporárias e instáveis que logo acabarão em disputas e que, em todo caso, não podem ser qualificadas de alianças para enfrentar o Estado ou para construir projetos políticos ou sociais de longo prazo nas regiões."

Soluções

Para Álvaro Villarragas, coordenador da área de desmobilização, desarmamento e reintegração da CNRR e também do informe que faz a radiografia desses bandos, o melhor seria começar "a reconhecer que eles são muito mais que grupos delinquentes". De acordo com o estudo, há cerca de 6,5 mil homens organizados em seis ou sete estruturas principais: "Esses grupos se caracterizam por se transformar, fundir e substituir com grande facilidade." Desses homens, 17% são ex-paramilitares, e "daí saem os líderes, os chefes, o que recrutam, os que dão continuidade a formas de domínio territorial armado".

Martha Ruiz, analista da revista Semana, acredita que esses novos grupos "funcionam mais como escritórios ou redes de ajustes de contas do que como exércitos. Seus homens armados cuidam de laboratórios e rotas, mas não têm capacidade de combate".

Villarragas afirma que não se deveria falar de Bacrim, e sim de neoparamilitares, porque "há vestígios do paramilitarismo, já que eles têm estruturas militares, domínio territorial e, o que é pior, ainda subsistem alguns vínculos com setores estatais, força pública e, em menor proporção, há redes com aliados políticos". As únicas grandes diferenças são que os novos grupos não são federados e não mantêm um discurso anti-insurgente.

Valencia tem a mesma opinião: "O governo e os analistas que lhe são simpáticos se refugiaram neste falso silogismo: os paramilitares que compareceram a Santa Fe de Ralito tinham como propósito principal combater a guerrilha, enquanto os Bacrim, não. Mas as investigações acadêmicas e judiciais dos últimos anos mostraram que os paramilitares dedicaram 80% de suas energias ao narcotráfico, à usurpação de terras e à captura do poder local. É o que fazem os Bacrim. O discurso e a ação antisubversivos daqueles eram mais um ardil para legitimar suas atrocidades contra a população civil do que um componente importante de sua estratégia."

Confirmando a análise, Ariel Ávila, coordenador do Observatório sobre o Conflito Armado do Nuevo Arco Iris, disse ao Opera Mundi que, "em nenhuma região do país, a população reconhece algum tipo de descontinuidade. Dizem-nos que eles são os mesmos, mas sem farda. E se a população não percebe a mudança seis anos depois da desmobilização, é porque as coisas não mudaram".

Ávila acredita na existência de uma economia ilegal que facilita a multiplicação desses grupos: "O narcotráfico, o boom da mineração - por exemplo, os Águilas Negras dedicam-se a defender as minas ilegais - ou o boom do petróleo são formas de financiamento autônomas desses criminosos, mas há também uma relação desses grupos com partes do Estado colombiano. Por isso as pessoas não percebem uma mudança. Se os grupos forem combatidos, mas não os mercados ou poderes que os financiam e apoiam, eles ressurgirão."

Mas Marta Rodríguez acrescenta outra explicação para a contínua multiplicação dos grupos armados colombianos: "Sem dúvida, quem mais contribui com mão de obra para os bandos é a falta de oportunidades para os jovens. Este é o resultado de se viver no país mais desigual do continente depois do Haiti."

Palestra de Dozinassobre Direitos Humanos

http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/o_paradoxo_dos_direitos_humanos.pdf

domingo, 10 de abril de 2011

Nova ordem diplomática

GEOPOLÍTICA Folha de S. Paulo 10 de abril de 2011

Nova ordem diplomática

Populações agora também ditam a narrativa

RESUMO
Artífice do conceito de "soft power", Joseph Nye escrutina em seu mais recente livro o futuro do poder mundial, refletindo sobre as "narrativas" criadas por potências tradicionais e países emergentes, e sobre uma nova cultura geopolítica em que a diplomacia não se pratica apenas entre Estados, mas também entre populações.

Joseph Nye está nadando contra a corrente. A redistribuição de poder à qual assistimos, argumenta, não significa que os EUA serão superados pela China. E preocupar-se com isso é não só um erro, mas um risco -o medo de um conflito alimenta a própria profecia.
O que interessa para Nye é a ascensão de atores não estatais, proporcionada pelo superacesso à informação. "Na era da informação, não interessa só qual é o Exército vencedor. Interessa também qual é a narrativa vencedora", escreve. O recém-lançado "The Future of Power" (o futuro do poder) [PublicAffairs, 320 págs., R$ 45], ainda sem tradução em português, se baseia nesse argumento.
O livro coroa as décadas que Nye passou dissecando o poder por dentro -ele foi assessor para defesa e diplomacia nos governos Carter (1977-81) e Clinton (1993-2001)- e por fora, lecionando em Harvard.
Elogios a seu trabalho vêm dos dois lados do espectro político. Para a ex-secretária de Estado Madeleine Albright, "Nye é o mais proeminente especialista americano na substância, na diversidade, nos usos e abusos do poder". Seu predecessor conservador Henry Kissinger chamou outra obra do professor ("O Paradoxo do Poder Americano", de 2002) de "alerta em boa hora".
Aos 74 anos, Nye é um sujeito discreto -temperamento que contrasta com o de boa parte de seus colegas em Harvard. Seu tom é sempre baixo, embora firme. Suas aulas não têm firulas. Fala, mas se interessa pelo interlocutor.
É dele o conceito de "soft power", o poder que um país ou cultura tem de atrair seguidores e persuadir. Sua influência se mede aí: é rara hoje a análise de relações internacionais que não leve em conta ao menos uma das designações cunhadas por Nye.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o professor sobre as expectativas acerca da diplomacia nos próximos 30 anos.




Folha - Por que a previsão de que a China logo superará os EUA como maior potência global -visão da qual o senhor discorda- se tornou tão popular?
Joseph Nye - Martin Wolf [colunista do "Financial Times"] chamou a China de superpotência prematura. Isso porque as pessoas pegam a taxa de crescimento, superalta, dão como certo que ela vai continuar crescendo sem nenhum obstáculo e concluem que isso a levará a um grande poder. Só que a história está cheia de exemplos de tropeços, quedas e surpresas. Então, é um tanto simplista usar apenas a taxa de crescimento [como paradigma]. Acho que uma taxa de crescimento de 10% é, de fato, impressionante. Mas não significa que a China estará à frente dos EUA. Mesmo alcançando o PIB dos EUA em tamanho, não significa que a composição do PIB chinês seja igual, medida em renda per capita. E eu não acho que a China vá se igualar aos EUA em renda per capita por décadas.

O sr. vê riscos em superestimar a percepção de que a China será a maior potência global. Quais?
O perigo é que, se as pessoas ficarem muito medrosas [em relação à ascensão chinesa], o medo em si se torne uma causa de conflito. Há quem argumente que a Primeira Guerra Mundial foi causada pela ascensão da Alemanha e pelo medo que isso causou no Reino Unido. E há quem diga que haverá um grande conflito neste século causado pela ascensão da China e pelo medo que isso cria nos EUA.
Não acredito nisso, porque a Alemanha de fato superou o Reino Unido em 1900, e eu não acho que a China esteja prestes a passar os EUA. Isso significa que temos mais tempo para moldar o ambiente no qual desenvolvemos nossa relação com a China. E também que temos menos a temer.

Se dividirmos o poder em três dimensões, como o sr. faz, os EUA ainda têm a primazia na primeira, puramente militar, mesmo com suas Forças Armadas levadas ao limite. Como o sr. vê o cenário nas outras duas dimensões: na que trata de controlar a pauta de debate, muitas vezes por meios econômicos, e na que se encarrega de moldar preferências, por meio do "soft power"?
De fato, em termos militares, os EUA continuarão na frente dos chineses. Em termos econômicos, considerando o tamanho total da economia, a China se equiparará aos EUA provavelmente na próxima década, mas não em renda per capita.
E em termos de "soft power", a China está promovendo grandes esforços para aumentar o seu, mas vai ser muito difícil enquanto eles não tiverem um sistema menos autoritário, ou enquanto sua ficha de direitos humanos continuar sob escrutínio. Para realmente superar os EUA nessa área, eles têm de perceber que muito do "soft power" vem da sociedade civil, e não apenas de ações do governo.

Os EUA estão recobrando o "soft power" que perderam com a Guerra do Iraque, durante os anos Bush [2001-09]?
Pesquisas de opinião pública dão a entender que sim. Os EUA perderam parte de seu apelo não só com a Guerra do Iraque, mas também com a crise econômica de 2008, que foi corretamente atribuída ao país.
A eleição de Barack Obama em si ajudou-o a recuperar "soft power". A ideia de que o sistema político americano não é um sistema corrupto, a ideia de que um afroamericano com um nome que soa estrangeiro possa se tornar presidente restabeleceu, em certa medida, a confiança no sistema político americano. Os esforços de Obama para se aproximar de outros países também ajudaram.

Isso é algo que esse governo tinha na cabeça ao tomar a decisão sobre a intervenção militar na Líbia, ao procurar chancela internacional?
Obama percebeu que, se os EUA usassem força contra a Líbia sem que isso fosse legitimado pela Liga Árabe e por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, criaria uma narrativa de que os EUA atacaram um país muçulmano pela terceira vez consecutiva. Seria muito ruim para o poder de atração americano.
Com as resoluções, a narrativa construída por Obama é a de que os EUA ajudaram a ONU a implementar uma responsabilidade de proteger legítima. Isso foi muito importante. E foi diferente de ?[George W.] Bush, que, quando não conseguiu uma segunda resolução [que apoiasse ataques], seguiu adiante assim mesmo, e pagou caro.

Qual o sr. acredita ser a principal mudança da diplomacia neste século?
O fato de a diplomacia não ser mais só feita entre governos. A diplomacia agora é feita entre governos e populações em diferentes países, ou mesmo entre as populações em si. Isso amplia muito o contexto dentro do qual os países se relacionam. Estamos chegamos a um nível muito mais complexo de diplomacia.

Sob a luz dessas mudanças, como ficarão as instituições internacionais e multilaterais? A ONU, a Organização Mundial do Comércio e o FMI estão ultrapassados na forma como existem hoje?
Alguns deles, sim. O Conselho de Segurança da ONU representa um mundo de 1945. Isso está ultrapassado. Mas a existência de um conselho de segurança, não. As cotas de votação do FMI representam um mundo antigo, mas a estrutura do FMI não está ultrapassada. Acho que é possível fazer ajustes. Países emergentes como o Brasil, a Índia, a África do Sul -vou excluir a China aqui- têm exigido mais voz no palco internacional. De certa forma, têm conseguido, mas ainda assim não me parece que se possa dizer que o status quo tenha mudado.

Como ele poderia mudar?
Em certo aspecto, mudou com a criação do G-20 [grupo das 20 principais economias do mundo, que agrega o antigo G8 mais países emergentes]. Ele deixou claro que, para ser válido, o debate precisa ser ampliado. Seria bom vermos um Conselho de Segurança da ONU no qual a Índia, o Brasil, o Japão fossem membros permanentes. Mas um dos problemas com isso é chegar a um consenso para aprovar [a reforma].

Vários analistas no Brasil criticaram a abstenção brasileira na votação sobre a intervenção na Líbia, alegando que isso não se alinha à aspiração do país ao conselho da ONU. Isso nos remete ao seu conceito de "smart power" [combinação do poder duro, de coerção, militar e econômico, com o "soft power"]. Como ele poderia servir ao grupo de países emergentes?
O crescimento econômico do Brasil e da Índia também, de certa, forma, aumenta seu poder duro. E o fato de o Brasil e a Índia serem democracias aumenta seu "soft power". Minha impressão -não sei se isso está correto- é de que a presidente Dilma está dando mais ênfase à política de direitos humanos, algo que acho que também aumenta o "soft power". Assim, o Brasil consegue mais poder duro com seu impressionante crescimento econômico e mais poder de atração por conta deste e de sua política mais orientada aos direitos humanos.

Há paradoxo no fato de um país que aspira ao conselho da ONU evitar o uso do poder militar?
Se um país está no Conselho de Segurança da ONU e não chancela questões de direitos humanos, isso prejudica parte de seu "soft power". É interessante que, na questão da zona de exclusão aérea na Líbia, nenhum dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) tenha votado a favor. Pena.

Com tantas previsões sobre o futuro do poder e da diplomacia, ninguém esperava a onda de revoltas e revoluções no Oriente Médio e Norte da África. Estamos prestando atenção nas coisas erradas?
As pessoas não prestaram muita atenção ao que eu chamo de difusão do poder -ou seja, que a revolução da informação estava dando poder a determinados grupos de indivíduos.
Sobre o Egito, por exemplo, havia uma tendência geral em acreditar que lá ou se apoiava os autocratas, ou se apoiava extremistas religiosos.
Não se prestou atenção suficiente ao fato de que o enorme crescimento de acesso à informação estava criando uma camada política intermediária.

E como os futuros diplomatas devem se preparar para lidar com isso e com atores não estatais?
Deveria se gastar mais tempo aprendendo a lidar com a sociedade, e não só se aprendendo a escrever memorandos e relatórios. Os atores sociais vão se tornar cada vez mais importantes.

"Segundo Nye, "o perigo é que, se as pessoas ficarem muito medrosas [em relação à ascensão chinesa], o medo em si se torne uma causa de conflito"

"Para o professor, a diplomacia se torna mais complexa a partir do momento em que deixa de ser praticada exclusivamente entre governos e passa ?envolver populações"

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O novo imperialismo

Folha de São Paulo, segunda-feira, 04 de abril de 2011




ENTREVISTA DA 2ª JOSÉ LUÍS FIORI

Há agora uma nova corrida imperialista nos países da África

PARA CIENTISTA POLÍTICO, NORTE-AMERICANOS E EUROPEUS PODEM VOLTAR A COGITAR UM SISTEMA RENOVADO DE COLONIALISMO NESTA DÉCADA

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO

A guerra na Líbia é parte de uma nova corrida imperialista que se aprofundará, diz José Luis Fiori, coordenador da pós-graduação em economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos", diz ele.
Nesta entrevista, Fiori fala também sobre o poder dos EUA, que ele enxerga vivendo uma crise de crescimento.




Folha - Como o sr. analisa a guerra na Líbia?
José Luís Fiori - É evidente que não se trata de uma discussão sobre o direito à vida dos líbios, os direitos humanos, a democracia. Nesta, como em todas as demais intervenções de europeus e dos EUA, jamais se esclarece a questão central de quem tem o direito de julgar e arbitrar a existência ou não de desrespeito aos direitos humanos em algum país em particular.
As potências do "diretório militar" jamais intervêm contra um país ou governante aliado, por mais autoritário e antidemocrático que ele seja. Do ponto de vista das relações entre Estados, os direitos humanos são sempre esgrimidos e utilizados como instrumento de legitimação das decisões geopolíticas das grandes potências.
A guerra é sobre o petróleo?
O que está em jogo na Líbia não é apenas petróleo. Nem tudo no mundo da luta de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com economia. Neste caso está em jogo o controle de uma região fronteiriça da Europa, parte importante do Império Romano e território privilegiado do alterego civilizatório da "cristandade".
Foi onde começou o colonialismo europeu, no século 15 e, depois, no século 19. Estamos assistindo a uma nova corrida imperialista na África, e não é impossível que se volte a cogitar alguma forma renovada de colonialismo.

Como explicar essa corrida imperialista?
A África não é simples nem homogênea, com seus 53 Estados e quase 800 milhões de habitantes. O atual sistema estatal africano foi criado pelas potências coloniais europeias e só se manteve, até 1991, graças à Guerra Fria.
Após a Guerra Fria e o fracasso da intervenção norte-americana na Somália (em 1993), os EUA redefiniram sua estratégia para o continente, propondo globalização e democracia. Até o fim do século 20, a preocupação dos EUA com a África se restringiu à disputa das regiões petrolíferas e ao controle das forças islâmicas e dos terroristas do Chifre da África.
Mas deverá ocorrer uma mudança radical do comportamento norte-americano e europeu, graças à invasão econômica da China, Rússia, Índia e Brasil. A África será de novo um ponto central da nova corrida imperialista, que deverá se aprofundar na próxima década.
Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na possibilidade de conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos que foram criados pelos próprios colonialistas europeus.

Os Estados Unidos estão ameaçados de perder poder no Oriente Médio?
Não vejo este risco. Pelo contrário. São os mesmos de sempre que estão redistribuindo as cartas e manipulando as divisões internas dentro dos governos e dos envolvidos nas rebeliões. Quando houver risco real, reprimirão como fizeram no Bahrein. Sempre que possível através de terceiros.

Para o sr. não há perda da hegemonia americana?
Os Estados Unidos estão enfrentando os problemas, contradições e incertezas produzidas pela sua mudança de status -de potência hegemônica do mundo capitalista (até a década de 1980), para potência imperial. Poderia até se chamar de uma crise de crescimento e não uma crise terminal.
Os EUA devem mudar sua forma de administrar o seu poder global. O jogo será este: de um lado, os EUA atuando como cabeça de império, distanciando-se e só intervindo em última instância; de outro, as demais potências regionais tentando escapar do cerco americano.

Não há limites para esse poder americano?
É óbvio que esse novo poder imperial não é absoluto nem será eterno. Esse novo tipo de império não exclui a possibilidade de derrotas ou fracassos militares localizados dos EUA. Pelo contrário: é a própria expansão vitoriosa dos EUA -e não o seu declínio- que vai promovendo os conflitos e as guerras. Do ponto de vista estritamente militar, o essencial para os EUA é impedir alguma potência regional de ameaçar sua supremacia naval em qualquer lugar do mundo.

A China não é uma ameaça?
A nova engenharia econômica mundial transformou a China numa economia com poder de gravitação quase igual ao dos EUA. Isso intensifica a competição capitalista na África e na América do Sul. Mas é certo que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará automaticamente a China em líder do sistema mundial.

Quais as consequências políticas do dinamismo chinês?
O mais provável é que a China se restrinja à luta pela hegemonia regional, mantendo-se fiel à sua estratégia de não provocar nem aceitar confrontos fora dessa sua zona de influência. Mas, em algum momento futuro, terá que combinar a sua nova centralidade com algum tipo de projeção do seu poder político e militar para fora da sua própria região imediata. Há que se considerar que a China tem uma posição geopolítica desfavorável, com um território amplo e cercado e uma fronteira marítima muito extensa. E não conta ainda com um poder naval capaz de se impor ao controle americano do Pacífico Sul.

A crise financeira recente não expôs fragilidades dos EUA?
O dólar flexível e a desregulação dos mercados financeiros transferiu para os EUA um poder monetário e financeiro sem precedentes.
Isso simplesmente porque, segundo as novas regras que não foram consagradas por nenhum tipo de acordo internacional, os EUA passaram a arbitrar simultaneamente o valor da sua moeda, que é nacional e internacional a um só tempo.
Arbitram também o valor dos seus títulos da dívida, que absorvem a poupança de todo o mundo e servem de âncora para o próprio sistema liderado pelo dólar. Os EUA podem redefinir a cada momento o valor das suas próprias dívidas, sem que seus credores possam reclamar sem sair perdendo.
As crises se repetirão, mas elas não são necessariamente um sinal de fragilidade e, às vezes, podem ser até um sinal de poder e o início de um novo ciclo expansivo. As crises não deverão alterar a hierarquia econômica internacional, enquanto o governo e os capitais americanos puderem repassar os seus custos para as demais potências econômicas do sistema.

Como o sr. observa a posição europeia nesse jogo de poder?
A União Europeia está cada vez mais fraca e dividida sobre como conduzir seus assuntos internos. Não dispõe de um poder central unificado e homogêneo. A Alemanha reunificada se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa mais autônoma, centrada nos interesses nacionais. É uma estratégia que recoloca a Alemanha no epicentro da luta pela hegemonia dentro da Europa, ofusca o papel da França e desafia o americanismo da Grã-Bretanha.

As crises capitalistas têm muitas vezes desaguado em guerras de grandes proporções. O sr. enxerga essa possibilidade?
Acho que devem se multiplicar os conflitos localizados dentro do sistema mundial, envolvendo sempre os EUA, de uma forma ou outra. Mas não vejo no horizonte a possibilidade de uma grande guerra hegemônica do tipo das duas grandes guerras mundiais do século 20.

domingo, 3 de abril de 2011

Os verdes e Alemanha

LA VICTORIA VERDE
El político que reverdece a Alemania
Días después del histórico éxito electoral, Cem Özdemir, líder alemán de Los Verdes, cuestiona el giro energético de Angela Merkel
JUAN GÓMEZ 03/04/2011


Los efectos de la campaña electoral siguen bien visibles en el rostro de Cem Özdemir. Tras su mejor semana política, el copresidente de Los Verdes alemanes llega a un café a la orilla del Landwehrkanal, en el barrio berlinés de Kreuzberg, protegido del fresco primaveral por un abrigo grueso, una bufanda y las patillas que luce desde hace un par de años. Más o menos desde que accedió a la presidencia del partido en 2008. En Berlín aún no se disfrutaba esta semana del clima comparativamente privilegiado de Baden-Württemberg, el Estado de Alemania donde Özdemir nació en 1965, en una familia de ascendencia turca; y en el que, hace hoy una semana, Los Verdes lograron un resultado histórico del 24,2% de los votos en las elecciones regionales.


Alemania
Capital: Berlín. Gobierno: República Federal. Población: 82,369,552 (est. 2008)

Özdemir, de origen turco, cree que Alemania va camino de quitarse "las gafas étnicas", pese al antimusulmán Sarrazin
Nunca habían obtenido apoyo suficiente para liderar un Gobierno regional en Alemania. Ahora podrán hacerlo en Stuttgart, la capital de un conservador Estado federado donde casi cada pueblo alberga una empresa notable. Porsche y Mercedes fabrican allí sus automóviles de gran cilindrada, pero también alberga múltiples empresas pequeñas y medianas, verdadero motor económico del país. Tras casi 60 años de sucesivos Gobiernos de la Unión Demócrata Cristiana (CDU) de Angela Merkel, el verde Winfried Kretschmann presidirá pronto una coalición con los socialdemócratas para gobernar uno de los territorios más prósperos de la primera economía europea. Su jefe federal en el partido, Cem Özdemir, lo conoce desde la juventud.

Pregunta. ¿Qué ha cambiado más para que esto sea posible, Los Verdes o Alemania?

Respuesta. Ambos. Baden-Württemberg, que es un lugar de innovación y tecnología, también puede ser de vanguardia en otros procesos. Aparte de la clientela típica de Los Verdes, hemos ganado votantes, por ejemplo campesinos, que siempre habían confiado en los democristianos. Es gente que puede estar descontenta con el Gobierno, pero que nunca votaría a la izquierda socialdemócrata. Así que somos la alternativa. Además, hay una clase media muy concienciada ecológicamente. El coche siempre ha sido importante en Baden-Württemberg desde hace más de un siglo, pero ahora la gente ve cómo hemos perdido la carrera de los motores híbridos y se pregunta qué parte tendremos en el coche del futuro.

Ante las urnas, los ciudadanos de Baden-Württemberg no pensaron solo en su idílico land. En lo más profundo de Alemania, donde el filósofo Martin Heidegger escribió sus apologías del provincianismo, un accidente nuclear acaecido en la otra cara del globo ha dado un drástico vuelco al panorama político de toda Alemania. La CDU de Merkel se mantuvo como primera fuerza, con un nada desdeñable 39% de los votos. Pero Los Verdes, cuya principal seña de identidad es la oposición a la energía atómica, se dispararon 12,5 puntos respecto de las elecciones de 2006. "Tras Fukushima", argumenta Özdemir, "apremia saber qué usaremos después del átomo. Los pronucleares no pudieron ofrecer una respuesta. Nosotros la damos".

P. ¿Cree que la conversión antinuclear de CDU y FDP les ha costado el Gobierno de Stuttgart?

R. No solo esa conversión. Defendían el servicio militar obligatorio hasta que lo abolieron casi de improviso. Criticaban nuestra ley de desconexión nuclear de 2002 y ahora la quieren emular. Criticaban nuestra ley de inmigración, pero cuando Wolfgang Schäuble (CDU) accedió a Interior, fundó la Conferencia del Islam y dijo que la religión musulmana es parte de Alemania. El actual jefe de Interior [el socialcristiano bávaro Hans-Peter Friedrich (CSU)] le contradice ahora. Las bases democristianas están desorientadas. Sus líderes hacen una política pendular: dicen una cosa, después la contraria. Podría pasar lo mismo con sus opiniones sobre energía atómica. A Angela Merkel se le ha perdido la brújula y no sabe ni dónde buscarla.

P. Esa coherencia de Los Verdes que destaca ¿no viene de que llevan tantos años sin responsabilidades políticas notables?

R. Hace años que mejoramos en las elecciones, pero no cabe duda de que estamos en un punto de inflexión y ante un reto.

P. Con las posiciones antinucleares va a ser difícil atraer más votantes: casi todos lo son a estas alturas.

R. No soy tan cínico. Me da igual quién apague las nucleares, mientras sea para siempre. En eso creo que descansa nuestra credibilidad.

P. ¿Es un guiño a la CDU para las elecciones generales de 2013? El ministro de Medio Ambiente, Norbert Röttgen (CDU), al que Merkel ignoró cuando él proponía mayor mesura en la prolongación de la vida útil de las nucleares, anduvo estos días con una corbata verde.

R. La CDU sabe que el FDP está tan debilitado que podría quedar fuera de juego en 2013. Si quieren hablar con nosotros, tienen que apagar las nucleares. Con el SPD tenemos más puntos comunes, pero el criterio es: cuanto más verde, mejor.

Que un partido copresidido por una persona de ascendencia turca haya obtenido el éxito en las urnas es otro aspecto destacable de la elección del domingo pasado. Özdemir considera que Alemania va camino de quitarse "las gafas étnicas" para valorar a sus líderes. También aquí percibe un cambio positivo, pese al retroceso que supuso la polémica desatada por el socialdemócrata Thilo Sarrazin y su libro superventas antimusulmán Alemania se suprime. Hace 10 días sorprendía ver al presidente de Los Verdes apoyando en televisión las sanciones contra Gadafi y enfrentándose a representantes de los demás partidos para defender el mandato de la ONU que permitió el ataque al régimen libio.

P. Es usted mucho más crítico con el ministro de Exteriores y líder liberal, Guido Westerwelle, que con Angela Merkel.

R. Ambos cometieron un enorme error. Él fue tan torpe de responder en la ONU a una pregunta que nadie le había hecho: se abstuvo en la votación porque, decía, "no habrá soldados alemanes en Alemania". ¡Pero una cosa no obliga a la otra! Gadafi guerrea con armas alemanas contra los rebeldes... y Westerwelle se abstiene. Merkel y Westerwelle querían ir a la guerra de Irak en 2002, pero resulta que se han convertido a un perverso pacifismo electoralista. Cuando se fundó en 1979, Los Verdes era el partido de los contestatarios y subversivos de 1968. Para sus críticos a la izquierda se ha convertido en "un partido como otro cualquiera", y la oposición al átomo es el único principio fundacional que mantienen. Özdemir ingresó en el partido en 1981, con 15 años de edad. Hoy pasa por un dirigente pragmático. Vivió desde la tercera fila los duelos entre los realistas y los fieles a los principios fundacionales a finales de los años ochenta, que ganaron los primeros con Joschka Fischer a la cabeza, que después fue ministro de Exteriores en el Gabinete del socialdemócrata Gerhard Schröder (1998-2005).

P. Su partido provocaba miedos casi cervales entre los conservadores...

R. No nos presentamos proponiendo la revolución. No prohibiremos los Porsche ni obligaremos a andar en bicicleta. Es un cambio tranquilo.

P. ¿Votar verde no es una especie de bálsamo para las conciencias de personas acomodadas que, en el fondo, no quieren renunciar a su buena vida?

R. Qué quiere que le diga. Es cierto que todos vivimos con contradicciones. Al menos, nosotros hablamos de muchas cosas que otros ignoran. Y tratamos de encontrar soluciones. Tenemos una dirección. Eso es lo que ofrecemos, de modo que eso que dice no es del todo cierto. Tenemos que tratar con las empresas y otras fuerzas sociales. Hay una serie de grandes empresarios que son intratables para nosotros, pero con otros muchos, sobre todo de pymes, estamos de acuerdo en cambiar las cosas sin frenar el crecimiento y creando empleo. Lo que las empresas quieren es lo mismo que la gente: credibilidad.

sábado, 2 de abril de 2011

Mann e Weimar

ELPAIS Babelia 21 de 31 en Babelia anterior siguiente CRÍTICA: PENSAMIENTO
La verdad del mito
JAVIER GOMÁ LANZÓN 02/04/2011

La identidad del hombre depende de la habilidad para crearse una narración creíble sobre el mundo que otorgue a su vida un papel digno

En 1922, cuando pronunció la conferencia Sobre la república alemana, Thomas Mann inició una travesía espiritual que, años más tarde, culminaría en una larga novela sobre la saga bíblica titulada José y sus hermanos. Su escritura fue precedida de una asunción decidida y consciente de la función educativa y civilizatoria del mito. Con ello, verificaba en su persona y en su obra el gran giro que estaba experimentando la cultura de su tiempo. Conforme a la interpretación tradicional, la cultura había nacido al producirse en Grecia el paso "del mito al logos", es decir, la sustitución de la mentalidad mítica y mágica por la racionalidad de la filosofía y la ciencia. En el siglo XX se estaba describiendo el giro inverso: una crítica al "logos" occidental que tenía mucho de vuelta al mito. Claro que el mito que se recupera entonces no es lo que un "logos" excesivamente seguro de sí mismo había imaginado que es: una aleación caprichosa de fantasías coloridas y sugerentes pero completamente irracionales. Se descubre, por el contrario, que hay una verdad en el mito.

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Esos cuentos folclóricos sobre héroes no respetan la lógica pero son racionales, bien que su racionalidad no es científica sino artística
La naturaleza sigue unas regularidades que las leyes científicas explican: precisamente porque los hechos naturales se repiten la ciencia puede ser predictiva. El reino natural se compone de sustancias minerales, vegetales, animales y también humanas, aunque la naturaleza no agota la totalidad de lo humano, porque el hombre presenta además un torso no natural, casi podría decirse que antinatural: la libertad. Las creaciones de la libertad son únicas, imprevisibles, sorprendentes incluso para su autor, y esto presta a las realizaciones humanas, que se suceden sin sujetarse a un criterio uniforme, una dimensión temporal. Solemos excusarnos a diario de mil menudencias pretextando que no tenemos tiempo cuando, bien mirado, lo único que tenemos es tiempo, pues somos tiempo; no entidades repetitivas sino fluyentes, ondulantes. Incurrimos en contradicciones, pues el antes y el después de nuestro decurso vital no coinciden. Más aún, somos una contradicción viviente: la naturaleza nos privilegia con una individualidad autoconsciente, pero nos castiga después dispensándonos el mismo destino cruel que al resto de sus criaturas que no tienen conciencia de sí mismas. De ahí las aporías, los dilemas y las tensiones que conforman el humano devenir. La identidad del hombre depende de la habilidad para crearse una narración creíble sobre el mundo que ilumine el sentido de la existencia y otorgue a su vida un papel digno y significativo dentro del conjunto.

La ciencia positiva merece máximo respeto, pero el positivismo -el imperialismo de la ciencia- se equivoca cuando asimila al hombre a la naturaleza, aplicando un método que vale para las realidades repetitivas pero no para las narrativas. No el tratado discursivo ni la ley científica sino sólo el mito, que es un relato, hace justicia a lo inaprehensible de la condición humana y sabe captar ese meollo enigmático de su ser. En términos de Wittgenstein, la ciencia dice mientras que el mito muestra: hay, en efecto, algo en el hombre irreductible a conceptos bien recortados pero dócil a su representación y patentización narrativa. Si se dice, por ejemplo, que Aquiles es al mismo tiempo el más afortunado y el más desdichado de los hombres, tal proposición es absurda para la ciencia, pero la antinomia se deshace si se despliega en una relación de antes-después (afortunado en Esciros, desdichado en Troya) o si comprendemos, como da a entender su mito, que la negatividad de morir joven le proporciona paradójicamente la gran gloria de ser el mejor de todos los griegos.

Esos cuentos folclóricos sobre héroes que realizan grandes hazañas o se enfrentan a monstruos legendarios no respetan la lógica pero son racionales, bien que su racionalidad no es científica sino artística. Como el arte, los mitos seleccionan sus ingredientes de entre lo plural y fragmentario del mundo y, transformando el azar en necesidad, crean con ello la ficción de un orden significativo y unitario que integra lo meramente circunstancial de la experiencia humana en un todo comprensivo y legitimador. Por eso son siempre usados para explicar la fundación de una ciudad o de un pueblo; y por eso en el interior de nuestra conciencia flota también la mitología de nuestra identidad personal, satisfaciendo en nosotros la demanda de narraciones y colaborando con la obligada construcción narrativa de la realidad. Cuando los pintores del Renacimiento vuelven una y otra vez a los mitos grecolatinos y bíblicos, no lo hacen animados exclusiva ni primeramente por motivaciones estéticas sino porque creen que en esas historias transmitidas por la tradición se halla involucrada una profunda verdad humana, no por indefinible menos verdadera.

Por último, el mito, destaca Mircea Elíade, asume siempre una función ejemplar. A diferencia de las novelas modernas, no le interesa las individualidades excéntricas o las situaciones inusitadas, irrepetibles; por el contrario, sus héroes son arquetipos que protagonizan historias paradigmáticas. Busca la identificación de la audiencia con situaciones existenciales esenciales y comunes en el hombre pero amplificadas a un grandioso escenario cósmico. La novela moderna es una autoconciencia aristocrática que se expresa en nombre propio, en tanto que el mito, creación anónima, lo hace siempre en nombre de todos.

Este igualitarismo intrínseco al mito fascinó poderosamente a Thomas Mann al operarse la gran transformación en su vida. En aquella conferencia de 1922 se retractó públicamente de su refinada pero obscena apología del belicismo guillermino contenida en Consideraciones de un apolítico (1918) y abrazó la causa de la Constitución de Weimar y de la democracia. Paralelamente, abandonó los argumentos de sus novelas anteriores centrados en esos (son sus palabras) "burgueses descarriados" y durante los siguientes quince años consumió la madurez de su talento en la recreación del mito del José bíblico. Mann explica esta evolución espiritual en sus ensayos sobre Freud y en su autobiografía: "Di el paso de lo individual-burgués a lo típico-mítico". Ambas transiciones, la política y la literaria, coinciden en lo sustancial, porque, para Mann, el mito es la representación artística de la democracia

Sandel

ELPAIS. ENTREVISTA: MICHAEL J. SANDEL Filósofo
"La fe en el mercado elimina el debate sobre ética y justicia"
J. A. ROJO - Madrid - 02/04/2011

Ya sean la tortura, la eutanasia, el aborto, los negocios sucios, el patriotismo o las altas finanzas, Michael J. Sandel (Minneapolis, 1963) desentraña cada asunto en Justicia (Debate) analizándolo desde distintas perspectivas y mostrando su complejidad. El ensayo ha vendido ya un millón de ejemplares, pero Sandel se ha hecho célebre también por el éxito de la adaptación a televisión de sus lecciones en Harvard, donde ocupa una cátedra de Ciencias Políticas. Justicia utiliza la filosofía para acercarse de la mano de Aristóteles, Kant, Jeremy Bentham, John Stuart Mill y John Rawls a las cuestiones de nuestro tiempo.

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Pregunta. ¿Por qué ocuparse de la justicia ahora, y hacerlo con una mirada global?

Respuesta. En los últimos años se impuso la idea de que era suficiente con que la economía funcionara. Y ha sido un error: no se pueden eliminar los argumentos políticos, y no se puede pensar que el mercado establece por sí mismo la justicia y la equidad. La fe en el mercado ha eliminado cualquier debate público sobre ética y justicia.

P. Y ha generado mayores desigualdades. Gracias a los bonus millonarios que reciben los ejecutivos financieros, por ejemplo.

R. Conviene preguntarse por qué los contribuyentes tienen que contribuir al enriquecimiento de aquellos que propiciaron la crisis por sus conductas imprudentes. Pero no solo conviene fijarse en lo que pasa ahora: hay que analizar lo que sucedió en los tiempos de bonanza. Habría que ver si los altos sueldos que se fijaron entonces banqueros y agentes financieros respondían a su talento y a su dedicación o si, más bien, obedecían a causas externas.

P. Con el argumento de defender la libertad muchas veces se han tolerado ignominias, como las dictaduras de los países árabes.

R. Los manifestantes de la plaza de Tahrir, por referirme a un caso concreto, no solo han conseguido que Mubarak abandonara el poder sino que han obligado a Occidente a enfrentarse al conflicto que existe entre sus políticas reales y sus grandes ideales. A veces conviene pasar un poco de vergüenza para hacer autocrítica.

P. Es difícil manejarse en el presente, pero nuestras sociedades también reclaman que se haga justicia con casos que ocurrieron en el pasado.

R. En las sociedades que han estado divididas o han sufrido guerras civiles y atrocidades se produce siempre una tensión entre la justicia que debe hacerse y la reconciliación que se necesita para seguir avanzando. Pero no es posible reparar el tejido social que se ha roto sin tener en cuenta la memoria histórica. La responsabilidad moral no es solo individual, tiene una proyección histórica y colectiva, así que debe transmitirse de generación en generación. Frente al pasado, la responsabilidad moral es la de superar divisiones y odios heredados para convivir en el presente. También ante el futuro, en retos como el del cambio climático, existe esa responsabilidad moral. Es justo que procuremos dejarles a los hijos de nuestros hijos un mundo que sea habitable.

Juiz argentino e os armênios

Um juiz argentino de foro penal com base no principio da justiça universal
condenou a Turquia pelos crimes praticados contra os armênios segundo El
Pais de 2 de abril de 2011