sábado, 26 de fevereiro de 2011

Negri e Hardt escrevem sobre a revolta árabe

Negri e Hardt escrevem sobre a revolta árabe
By
Bruno Cava

Do site: http://www.outraspalavras.net/

Por Antônio Negri e Michael Hardt, no Guardian (24.02.2011) | Tradução: Bruno Cava

Um desafio para quem observa as revoltas disseminadas pelo norte da África e no Oriente Médio está em interpretá-las não como mais uma repetição do passado, mas como experiências originais, que abrem novas e relevantes possibilidades políticas, inclusive para além da região, de liberdade e democracia. De fato, nossa expectativa é que, através desse ciclo de lutas, o mundo árabe se torne na próxima década o que a América Latina foi na década passada — isto é, um laboratório de experimentação política entre potentes movimentos sociais e governos progressistas: da Argentina à Venezuela, e do Brasil à Bolívia.

Essas revoltas imediatamente realizaram um tipo de faxina ideológica, varrendo as concepções racistas de choque de civilizações que comprometiam a política árabe no passado. As multidões em Túnis, Cairo e Benghazi destroçaram os estereótipos políticos que amarravam os árabes na opção entre ditaduras seculares e teocracias fanáticas, ou que atribuíam aos muçulmanos uma certa incompatibilidade para a liberdade e a democracia. Mesmo chamar essas lutas “revoluções” parece confundir os comentadores, que consideram que a progressão de eventos obedece à lógica de 1789 ou 1917, ou de alguma outra rebelião européia no passado contra reis e czares.

As revoltas árabes inflamaram a partir da questão do desemprego, e o centro delas tem sido a juventude altamente educada, mas cujas ambições são frustradas — uma população que tem muito em comum com os estudantes nos protestos em Londres e Roma. Apesar de a principal demanda no mundo árabe se concentre no fim da tirania e de governos autoritários, atrás disso existe uma série de demandas sociais relativas ao trabalho e à vida, não somente para acabar com a dependência e a pobreza, mas também empoderar e dar autonomia à população inteligente e altamente capaz. Daí a deposição de Zine Ben Ali, Hosni Mubarak ou Muammar Gaddafi tenha sido apenas o primeiro passo.

A organização da revolta lembra o que tínhamos visto por mais de uma década em outras partes do mundo, de Seattle a Buenos Aires e Gênova e Cochabamba: uma rede horizontal sem líder central ou único. Órgãos tradicionais de oposição podem participar dessa rede, mas não a guiar. Observadores de fora tentaram identificar um líder nas revoltas egípcias desde sua origem: talvez seja Mohamed ElBaradei, talvez o diretor de publicidade do Google, Wael Ghonim. Eles temem que a Fraternidade Muçulmana ou outro grupo possam assumir o controle dos acontecimentos. O que eles não entendem é que a multidão consegue organizar-se sem um centro — que a imposição de um líder ou a cooptação por algum organismo tradicional solapariam sua força. O predomínio das ferramentas das redes sociais nas revoltas, como o facebook, o youtube e o twitter, são sintomas, não causas, dessa estrutura organizacional. Elas são formas de expressão de uma população inteligente, hábil para usar as ferramentas à mão e organizar-se autonomamente.

Embora os movimentos organizados em rede recusem liderança central, eles ainda assim precisam consolidar suas demandas num novo processo constituinte que conecta os segmentos mais ativos da rebelião às necessidades da população como um todo. As insurreições da juventude árabe certamente não almejam pela constituição liberal tradicional, que meramente garante a separação dos poderes e a dinâmica eleitoral regular. Porém, na verdade, visam a uma forma de democracia adequada aos novos modos de expressão e às necessidades da multidão. Isto deve incluir, primeiramente, o reconhecimento constitucional da liberdade de expressão — não na forma típica da mídia dominante, que é constantemente sujeita à corrupção de governos e elites econômicas, mas sim uma representada pelas experiências comuns de relações interconectadas.

Dado que os levantes foram iniciados não apenas pelo desemprego e pobreza disseminados, mas também como sentimento generalizado de não poder produzir e expressar-se, especialmente da parte dos jovens, uma resposta radical constitutiva precisa inventar um plano comum para administrar a produção social e os recursos naturais. Esta é a fronteira que o neoliberalismo não pode ultrapassar, onde o próprio capitalismo é posto em questão. E um regime islâmico é completamente inadequado para atender a essas necessidades. Aqui, a insurreição atinge não só a estabilidade do norte da África e do Oriente Médio, mas também o sistema global de governança econômica.

Portanto, nossa expectativa de o ciclo de lutas pelo mundo árabe tornar-se semelhante à América Latina, inspirar movimentos políticos e incitar aspirações por liberdade e democracia além da região. Cada revolta, é claro, pode falhar: tiranos podem desencadear uma repressão sangrenta; juntas militares podem tentar manter-se no poder; grupos tradicionais de oposição podem tentar aparelhar os movimentos; e hierarquias religiosas podem ardilosamente assumir o controle. Mas o que não vai morrer são as demandas políticas e os desejos que foram deflagrados, as expressões de uma geração jovem e inteligente por uma vida em que eles possam aplicar as suas habilidades.

Enquanto essas demandas e desejos pulsarem de vida, o ciclo de lutas continuará. A questão é: o que os novos experimentos de liberdade e democracia podem ensinar ao mundo, através da próxima década.


Antônio Negri, militante e filósofo italiano, escreveu junto de Michael Hardt, professor de literatura norte-americano, Império (2001), considerado o primeiro manifesto político do novo milênio, bem como suas seqüências Multidão (2005) e Commonwealth (2009).

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Teorias da Justiça

oportunidades que vão surgir com o forte ciclo de investimentos produtivos que está em curso no país
Valor Grandes Grupos
200 maiores com organogramas de participações acionárias
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Caleidoscópio: Amartya Sen debate John Rawls e ilustra o papel de diferentes visões filosóficas no entendimento da justiça. E mais: se existe conflito entre"o bom" e "o certo", como escolher?
Ideias multiformes sobre a justiça
Eliana Cardoso | De São Paulo
25/02/2011

Imagine que você tenha de decidir para quem dar a flauta pela qual brigam três crianças - Ana, Bob e Carla. Ana argumenta que é a única das três que sabe tocar o instrumento. Bob afirma que é tão pobre que a flauta seria o seu primeiro brinquedo. Carla revela que trabalhou todos os dias durante o último mês para fabricar com as próprias mãos o instrumento musical. Para qual das três crianças você daria a flauta?

Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, na introdução de "The Idea of Justice" (Harvard University Press, 2009), afirma que você pode dar a flauta para qualquer uma das três crianças. Sua preferência encontraria justificativa em critério objetivo tão imparcial quanto a oferecida por alguém que, por possuir uma persuasão filosófica diferente da sua, escolhesse outra criança. A prova?

O teórico igualitário daria a flauta a Bob, porque quer reduzir as diferenças de renda. O libertário daria a flauta a Carla, porque ela teria direito ao fruto de seu esforço. O utilitarista daria a flauta a Ana, porque, sendo a única que pode tocar flauta, será a que pode extrair maior prazer de sua posse.

Qualquer uma das decisões tem a seu favor fortes argumentos, que se aplicam não apenas à disputa da flauta entre as três crianças, mas também à alocação de recursos na sociedade e aos princípios que norteiam arranjos sociais e escolhas institucionais. Assim sendo, talvez seja impossível um arranjo social a respeito do qual todos concordem, porque ninguém seria capaz de demonstrar que tal arranjo é o único a preencher os requisitos da imparcialidade objetiva.

Mas, se concordamos que existe amplo espaço para desacordo, como garantir que a sociedade prefira uma solução à outra? Existe uma forma de combinar as opiniões e valores individuais numa escolha coletiva que seja a melhor possível?

Sen argumenta que, assim como os consumidores podem ordenar suas preferências, dadas as restrições orçamentárias, nós deveríamos ser capazes de avaliar e ordenar situações sociais alternativas levando em consideração os valores sociais. Poderíamos então avaliar as consequências dessas situações sociais para o bem-estar comum e decidir qual a melhor alternativa.

Para chegar a essa conclusão, Sen parte da crítica da obra de John Rawls, autor de "A Theory of Justice" (Harvard University Press, 1971). Rawls demonstra que a justiça requer que a sociedade seja governada por princípios sobre os quais pessoas livres, racionais e em situação de igualdade estariam de acordo.

Considere o argumento de Rawls. Imagine a situação em que cada um de nós se encontra antes de nascer, ignorante de seus dotes pessoais e das particularidades da situação que ocupará na sociedade em que vai viver. Imagine que dessa "posição original" pudéssemos entrar em acordo sobre os princípios de justiça que deveriam reger a sociedade à qual iremos pertencer. Rawls demonstra que o acordo seria tal que preencheria três princípios. O primeiro garantiria a todos a liberdade de consciência, pensamento e expressão, a liberdade de associação e a igualdade política. O segundo princípio atribuiria a todos a igualdade de oportunidade para desenvolver os próprios talentos e competir por posições sociais. O terceiro princípio exigiria que a sociedade enfrentasse as desigualdades econômicas transferindo renda para os mais pobres.

A principal crítica que Sen faz da teoria de Rawls é que ela é "transcendentalista", isto é, usa princípios universais para criar a sociedade ideal que seria perfeitamente justa. Sen, que está interessado em tratar das injustiças observadas no mundo de hoje, considera que tal teoria é irrelevante.

Será? Sen parece se esquecer que a idealização da sociedade perfeita é um passo importante, porque permite o uso de um filtro, que deixa de lado considerações irrelevantes, para se concentrar nos fatores que de fato determinam a justiça social. Muitas questões de reformas e políticas sociais precisam dos fundamentos da teoria ideal de justiça para sua elucidação.

A contraproposta de análise comparativa que Sen oferece talvez possa ser usada nas deliberações legislativas em que os congressistas precisam fechar acordos. Mas mesmo a legislação que resulta desses acordos e compromissos é produto de propostas alternativas baseadas em justificações de princípio.

As discussões de políticas para a educação utilizam o princípio de igualdade de oportunidades de Rawls. E seu princípio de enfrentamento das desigualdades através da assistência aos grupos mais pobres é invocado com frequência para contrabalançar o utilitarismo: os governos não devem perseguir apenas a maximização da riqueza nacional, mas precisam tomar em consideração as consequências de suas políticas para os grupos mais pobres e cuidar para que seus benefícios cheguem a eles.

A divergência entre Sen e Rawls se encaixa na tradição que distingue "o bom" e "o certo". Os "consequencialistas" (preocupados com o que é bom para os homens) dizem que a justiça requer instituições que promovam o máximo de bem-estar para a maioria da população. Os "deontologistas" (preocupados com o que é certo) dizem que a justiça deve restringir os meios utilizados na conquista do bem-estar e impor o respeito aos direitos individuais e à distribuição equitativa. Rawls (como outros kantianos promotores do contrato social) são deontólogos. Sen (como os utilitaristas) pende para o consequencialismo.

Sen ilustra o dilema com o diálogo entre Arjuna - o grande guerreiro do épico "Mahabharata"- e seu amigo e conselheiro, Krishna, na véspera da batalha em Kurukshetra. A batalha será entre os Pandavas, de cuja virtuosa família real Arjuna é membro, e os Kauravas, seus primos, que usurparam o trono. Arjuna é o guerreiro invencível que deve liderar os Pandavas e Krishna - a encarnação em forma humana de um deus indiano - conduz o veículo de Arjuna.

Arjuna e Krishna observam os exércitos dos dois lados e refletem sobre a gigantesca batalha que terá lugar no dia seguinte. Arjuna então se pergunta se deve lutar. Ele não duvida de que está defendendo uma causa justa e que vencerá a batalha. Mas as mortes serão numerosas e ele terá que matar muitas pessoas que nada fizeram de errado, exceto divergir sobre quem deveria ocupar o trono e, muitas vezes, o fizeram por lealdade e laços de família. Sua ansiedade reflete não apenas a repugnância pela carnificina, mas um sentimento de horror pelas mortes de pessoas com quem tem ligação de parentesco ou amizade e pelas quais será pessoalmente responsável. Arjuna sugere que se sente disposto a desistir da batalha e deixar os Kauravas reinar.

Krishna se opõe. Seu argumento se concentra na prioridade do dever, sejam quais forem as consequências dos atos ditados por ele. Argumenta que Arjuna terá de cumpri-lo, aconteça o que acontecer. A causa é justa. Arjuna é o general do qual seu exército depende e, portanto, não pode fugir de suas obrigações.

O diálogo continua e cada um desfia seus argumentos até que Arjuna reconhece que Krishna tem razão. O discurso de Krishna se tornou tão influente que até Gandhi, o maior defensor da não-violência, se dizia inspirado pelas palavras de Krishna sobre o cumprimento do dever.

Sen, entretanto, pergunta se era Arjuna quem estava de fato errado. Será que a crença no cumprimento do dever de lutar por uma causa justa independe de suas consequências? Será que o dever pode dominar o desejo de não querer matar outras pessoas?

São perguntas difíceis. Mais difíceis do que encontrar a representação pictórica adequada à justiça. Em 1625, Rubens a pintou como uma mulher roliça, de espada na mão, a esmagar uma cobra com o pé. Um cordeiro se aconchega ao seu lado direito, enquanto, do outro lado, uma raposa se põe em fuga. Mas, na década de 1930, Ellsworth Kelly preferiu representá-la pelo equilíbrio entre painéis quadrados de cores diferentes na parede oval da corte de Boston. Dessa forma, o espectador poderia criar seus próprios significados.

Eliana Cardoso, economista, escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). www.elianacardoso.com

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Morte de jovens negros tem cenário de 'extermínio'

Do Estadão e do site de notícia MSN
Por Lisandra Paraguassu, Rafal Moraes Moura e Lígia Formenti, estadao.com.br, Atualizado: 24/2/2011 12:11
Morte de jovens negros tem cenário de 'extermínio'

BRASÍLIA - O Mapa da Violência 2011 mostra que a vitimização juvenil por homicídios continua a crescer. O número de homicídios entre a população negra é explosivo e, o que é pior ainda, a vitimização entre jovens negros tem índices muito altos, beirando um cenário de 'extermínio'. Após uma década (1998-2008), continua praticamente inalterada a marca histórica de 92% da masculinidade nas vítimas de homicídio.

Levando em conta o tamanho da população, o Mapa mostra que a taxa de homicídios entre os jovens passou de 30 (em 100 mil jovens), em 1980, para 52,9 no ano de 2008. Já a taxa na população não-jovem permaneceu praticamente constante. O estudo concluiu que o incremento da violência homicida no Brasil das últimas décadas teve 'como motor exclusivo e excludente a morte de jovens'.

Em 1998, a taxa de homicídios de jovens (idade 15 e 24 anos) era 232% maior que a taxa de homicídios da população não-jovem. Em 2008, as taxas juvenis já eram 258% maiores. Essa é média nacional, mas há Estados com índices de vitimização jovem acima de 300%, como Paraná e o Distrito Federal.

Na população não jovem, só 9,9% do total de óbitos são atribuíveis a causas externas (homicídios, suicídios e acidentes de transporte). Já entre os jovens, as causas externas são responsáveis por 73,6% das mortes. Se na população não-jovem só 1,8% dos óbitos são causados por homicídios, entre os jovens, os homicídios são responsáveis por 39,7% das mortes.

O Estado de menor vitimização juvenil, Roraima, no ano de 2008, tinha proporcionalmente 66% mais vítimas juvenis. No outro extremo, Amapá e Paraná e Distrito Federal ostentam quatro vezes mais mortes juvenis do que as outras faixas.

Negros e jovens. A partir de 2002 fica evidente um forte crescimento na vitimização da população negra. Se em 2002 morriam proporcionalmente 46% mais negros que brancos, esse percentual eleva-se para 67% em 2005 e mais ainda, para 103% em 2008. Assim, morrem proporcionalmente mais do dobro de negros do que brancos.

Segundo o Mapa da Violência/2011, isso acontece porque, por um lado, as taxas de homicídios brancos caíram de 20,6 homicídios em 100 mil brancos em 2002 para 15,9 em 2008. Já entre os negros, as taxas subiram: de 30 em 100 mil negros em 2002 para 33,6 em 2008.

Entre os jovens, esse processo de vitimização por raça/cor foi mais grave ainda. O diferencial (índice de vitimização) que em 2002 era também de 46% eleva-se para 78% em 2005 e pula para 127% em 2008. Mas essas são médias nacionais.

'Esmiuçando os dados, vemos que há estados como Paraíba ou Alagoas em que por cada jovem branco assassinado morrem proporcionalmente mais de 13 jovens negros (13 em Alagoas, mas são 20 na Paraíba', descreve o Mapa.

Autores italianos e o caso Battisti

Aguardando a "nova decisão" do STF do caso Battisti, sai em março (ainda não está a venda) pelo editorial Trotta a nova obra de Ferrajoli na Espanha Poderes Salvages. É uma critica durissima ao sistema politico italiando e denuncia essas novas formas de estado mafiosos. Não era do nosso conhecimento que na Espanha foi publicada em 2010 a nova obra de Zagrebelsky sobre a dúvida e a ética. É uma critica a dogmática. Mas o livro de Ferrajoli é importante para perceber o contexto politico-institucional no qual Battisti será recebido, caso fosse extraditado

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Carta a um amigo tunisiano, por Antônio Negri

Por Antônio Negri, da Universidade Nômade (publicado em 28.01.2011) | Tradução: Bruno Cava | Foto: Antônio Negri e Michael Hardt, co-autores de Império (Record, 2001), considerado por alguns o primeiro manifesto do novo milênio.

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Bruno Cava
– 10/02/2011Posted in: Capa
FONTE: http://www.outraspalavras.net/2011/02/10/carta-a-um-amigo-tunisiano-por-antonio-negri/

24 de janeiro de 2011

Caro A.,

Realmente, quando há vinte anos você era meu aluno na Universidade de Paris 8 (Nanterre), não poderíamos imaginar que a revolução tunisiana tivesse características semelhantes e levantado problemas constitucionais
análogos àqueles da conturbação social e política no centro da Europa. À época, estudávamos juntos a expulsão da classe operária das minas de fosfato do sul tunisiano, o início de grandes ondas de migração interna e externa, e o lento processo de transformação que a terceirização da produção de tecidos coloridos europeus determinava em teu país. Tu te extenuavas em mostrar-me a potencialidade produtiva de teu país, além, anoto, da atividade têxtil ou da indústria do turismo ou dos serviços petrolíferos (que só mais tarde atingiram certa expansão). Tudo se encaminhou terrivelmente e com pressa. Vinte anos faz balbuciávamos sobre a globalização e hoje aí está, a ponto que a Tunísia se tornou uma província da Europa e, portanto, do mundo. Vinte anos faz, apenas começávamos a perceber a transformação do trabalho industrial ao imaterial/cognitivo e hoje a Tunísia conhece uma superabundância da última figura da força-trabalho.

E ainda, depois de vinte anos, assinalamos a transformação terrível que o neoliberalismo impôs sobre e através aquelas mudanças da figura do mercado e da natureza da força-trabalho: o fim do sistema salarial clássico, e com isso uma desocupação mortífera da massa e uma insustentável precarização — 35% da população jovem são força-trabalho cognitiva, mas só 10% trabalham; e mais, na Tunísia, se produziram e acumularam a destruição da primazia do Welfare [estado de bem-estar social], desigualdades regionais ferozes, efeitos desastrosos do processo migratório (concluídos ou interrompidos), o bloco dos investimentos externos etc.

No final, esses últimos vinte anos nos deram a consolidação de uma ditadura mafiosa, uma corrupção insustentável e um sistema repressivo cruel e torpe (torpe por secundar e legitimar pelo medo ocidental de uma ameaça islâmica, cruel porque foi pura e simplesmente dominação de classe, exploração e opressão dos poderes corruptos contra os trabalhadores e a gente honesta).

Que fazer, me perguntas, a hora veio em que o conhecimento da exploração é insurgente e o desejo de liberdade se rebela? A insurreição criou novas forças: como usá-la, como movê-la contra os velhos inimigos e contra os novos que rapidamente aparecerão?

Caro professor, me escreves, lembra quando ironizávamos sobre os iluministas que concorriam a prêmios com projetos sobre as novas Constituições da Córsega ou da Polônia ou ainda para a Carolina [estado dos EUA]? Por que então não discutimos (nessa vez sem rir) sobre os conteúdos de uma nova Constituição da Tunísia, não tanto porque aqui não haja quem seja capaz de fazê-lo bem, (embebido de reflexões solitárias sobre a conspiração, a cultura política política global que aqui em todo caso circula, — decerto mais do que na Itália — a angústia do tumulto e a glória da vitória) mas porque falar da Tunísia, dos novos direitos, das garantias a definir, é hoje também falar da Europa, caso algumas de suas regiões também se libertem dos despotismos atuais!

Meu amigo, companheiro A., não me convenceste [em redigir um projeto de constituição] — que ironia teus juízos não mais me vincularem como de hábito, estou convencido que não nos podemos substituir ao que os protagonistas fazem e propõem. É verdade, no entanto, que o teu problema é quase geral, que uma nova constituição da liberdade não é só um problema tunisiano mas de todos os homens livres. Enfio-te goela baixo então algumas reflexões, a fim de abrir uma discussão, um fórum em que muitos possam participar. Para começar, insisto sobre alguns pontos, que me parecem mais importantes do que outros, para qualificar qual coisa possa ser hoje uma democracia verdadeira — ou mesmo uma “democracia absoluta”, que já à época, faz vinte anos, tínhamos predileção.

1) Aos velhos poderes (legislativo, executivo, judiciário), que é necessário purgar e restaurar com vigor, debaixo de um contínuo e acrescido controle do poder legislativo, vamos incluir ao menos outros dois órgãos de governo democrático, um que aja no “setor midiático” e outro que aja sobre “bancos” e as “finanças”.

Em primeiro lugar, portanto, não é mais possível imaginar um regime democrático em que não haja a possibilidade de obrigar a informação, a comunicação e a construção da opinião pública a respeito da verdade, da liberdade, do valor da multidão. A importância extrema que tiveram as iniciativas na internet durante a insurreição será preservada como uma possibilidade contínua de exercício. Essas práticas serão sacadas da excepcionalidade e traduzidas num exercício de contínuo controle democrático. Mas não basta: as velhas mídias serão também pregadas a um controle social que as livrem de blocos impositivos do poder executivo e dos partidos políticos.

Assim, há um só modo de afirmar essa figura democrática: o direito de expressão é libertado do poder do dinheiro. A pluralidade da informação não pode representar o caminho para a sua capitalização, e vai garantida pela soberania popular a fimde multiplicar a discussão, o confronto de opiniões, as decisões. O direito de expressão não se assegura somente ao indivíduo, mas também se direciona ao exercício coletivo, excluindo toda pretensão capitalista de exploração e toda tentativa de assujeitá-lo. O direito de expressão se afirma como potência constituinte, aberta à legitimação do comum.

2) Os “bancos”, as “finanças”, foram transformadas durante o desenvolvimento do capitalismo em um poder à parte, controlado pelas elites industriais e políticas. No neoliberalismo ainda seu controle foi determinado e as finanças se tornaram totalmente independentes, fundando no nível global a legitimidade de sua intervenção. Na Tunísia, como tu diceste, na passagem à democracia está em jogo também uma progressão da forma de controle capitalista sobre a vida civil. O capital financeiro já está aparecendo de maneira mais agressiva. Na comunicação, enquanto a censura está definitivamente desaparecendo, novas formas de controle se apresentam.

O problema é por conseguinte aquele de bloquear esse processo, de transformar os bancos em serviço público, de modo que a alocação de fundos financeiros e a elaboração das políticas de investimento sejam decididas em comum. Os instrumentos das finanças devem colocar-se a serviço da multidão. É claro que isto implica a construção de poderes democráticos para os programas financeiros, coordenados às atividades legislativa e executiva, e logo poderes monetários expurgados daquela independência postiça e hipócrita do Banco central — que serve como instrumento do capital global. Este é um caminho difícil de percorrer.

Achamo-nos não só contra os banqueiros nacionais como também os interesses globais do capital. Mas é um caminho que se deve percorrer com grande determinação — prudentemente, mas com determinação. Assim, de fato, se lança uma pedra primeira para uma sublevação global contra o neoliberalismo e o capitalismo financeiro, uma sublevação mais madura!

O New York Times se deu conta imediatamente: “a small revolution” [uma pequena revolução], como aquela tunisiana, pode inflamar não só o norte da África, mas o mundo árabe como um todo. É preciso, por isso, ter em mente, ao abordá-la, que um autocrata pode fazer concessões (ao povo mas sobretudo aos bancos e às empresas multinacionais) mais facilmente do que poderia fazer um líder democrático porém fraco — como aquele que ao fim os tunisianos elegerão. Eis porque o prognóstico americano. Eis a consequência de nossa hipótese: não é possível hoje imaginar uma revolução democrática que não realize, antes de qualquer outra operação, uma nacionalização dos bancos, uma reapropriação dos lucros, ao que se deve seguir a instauração de um direito comum. Somente assim a potência da multidão pode constituir-se.

Ao fim da qual se faz essa agência financeira, democraticamente gerida, que pode propiciar um Welfare à população tunisiana, contra a precariedade, estabelecendo uma renda garantida, a possibilidade de uma educação completa e de uma assistência de saúde adequada a cada cidadão. Hoje não há liberdade que não passe pelo comum. Expressivamente a ditadura privatizou tudo o que na Tunísia podia fazê-lo — é preciso portanto retomá-lo.

Caro A, só sobre o comum e sobre a gestão comum depende agora o futuro de vossa geração e de vossos filhos. Certo, o desastre que herdaste não se cancela de um golpe só — assim que as nuvens que seguem a insurreição se dissipem, serão [o comum e a gestão comum] a prioridade ao redor da qual se concentrar e decidir. Mas o dispositivo de um governo constituinte não pode senão proteger o comum. Não largar a proposta do comum (esta é também a tua preocupação, companheiro A.) aos islâmicos. É sobre uma falsa propaganda do comum que desenvolve a atividade deles.

3) O terceiro ponto se refere à forma de governo. Como tu dizes, a revolta tunisiana foi social, nasceu da inteira sociedade que trabalha. Ben Ali tinha compreendido bem que não podia, acima de tudo, permitir à revolta social expressar-se politicamente e cada político sabia que nessa desocupação da juventude estava a bomba relógio pronta a explodir. Por quê?

A juventude — força-trabalho cognitiva — é hoje a verdadeira classe trabalhadora do pós-industrial. Porque é força-trabalho cognitiva, esta juventude não é impotente; antes, tem os meios de superar essa frustração que tem paralisado os estamentos mais pobres e antigos da população. A cultura da impotência foi quebrada com a força das ruas da Tunísia.

Então, essa juventude deve manter aberto o processo revolucionário, transformando a insurreição na máquina de governo constituinte. Não pode deixar nas mãos das velhas elites (nem socialistas nem democráticas nem islâmicas) as transformações da constituição do país. De outro lado, os tunisianos tem menos necessidade hoje de uma nova constituição do que de um processo constituinte alargado ao país inteiro — inclusive as forças armadas, os juízes, a universidade. O poder legislativo e a governança necessárias para repor em movimento o país devem ser diretamente exercitados pelos jovens e pelos grupos revolucionários, organizados em todos os lugares e nos quais seja possível e urgente.

Mas tudo isso se pode fazer se puder evitar, pelo maior tempo possível (segundo aqueles projetos iluministas de constituição democrática do qual falávamos, esse tempo não podia ser inferior a uma década), a fixação de formas de representação estável. A agilidade do poder global, de seus bancos, de suas instituições centrais, é verdadeiramente grande: não terão dificuldade, esses senhores, de achar (e pagar) alguns socialistas ou alguns islâmicos para determinar o equilíbrio a favor deles! A insurreição foi ágil e deve achar tanta agilidade quanto ao mover-se contra o poder global e sua emanação mediterrânea, que já estão se concentrando contra o perigo extremo da insurreição tunisiana e sua expansão ao Magreb [norte da África]. Recordamos (não era a propósito a sua preocupação, companheiro A.?): se não construirmos comitês de ação constituinte, serão os islâmicos que, radicais ou moderados, retomarão a política nas mesquitas. Entretanto, mais será a política democrática e constituinte, quanto mais for laica…

Tchau, continuemos a trocar informações. Respiram-se ares novos e, em algum tempo, por todo lugar. Esperando pela Argélia!

Toni Negri.

P.S.: Se abres os jornais econômicos ocidentais, estão aqueles que, à direita, primeiro de tudo conversam sobre a queda dos títulos da dívida soberana tunisiana, da parte das agências de cálculo. A [agência de consultoria financeira] Moody´s já depreciou o título da dívida soberana tunisiana e mudou a avaliação de estável à negativa. Sobre o mesmo argumento, à esquerda, lamenta-se essa decisão porque, ao contrário, insiste-se sobre o fato que também a insurreição é… produtiva. O fim da dominação mafiosa sobre a indústria tunisiana deveria permitir uma retomada do crescimento. Mas de qual crescimento? Da pobreza, da precariedade?

Quanto à etiqueta política, à direita se multiplicam as ameaças. Atenção, cidadãos tunisianos, porque se exagerais, o exército está já a postos para a repressão. Exatamente o mesmo exército que vos ajudou a libertar-se de Ben Ali — continuam os comentadores da direita. Não aumentais o medo do vazio. Mas à esquerda, exaurido um primeiro momento de alegria, que coisa se pede agora? A hora que Ben Alì se foi, o país saberá reconstruir o seu aparato de Estado e conduzir uma transição pacífica para a Democracia? Só isto pede a esquerda?

Na realidade, de um lado e do outro, a preocupação é tão grande quanto a surpresa. Tornar-se-á a transição da Tunísia à democracia um exemplo, um laboratório, para todo o mundo muçulmano? Mas se é só isso que se quer, é realmente pouco novo; antes, é realmente velho: é simplesmente um novo colonialismo.

Caro A., não nos assustamos em pensar uma nova constituição, um novo processo constituinte, novos instrumentos da potência democrática dos cidadãos. No Magreb, na Argélia, na Tunísia e mais ainda no Egito, se está num momento de grande e profundo desenvolvimento de uma democracia construída de baixo. Contrariemos a pequeneza repressiva dos comentadores americanos e europeus.

P.P.S. Releio esta minha carta antes de mandá-la, estamos em 28 de janeiro, o Egito queima.

Antônio Negri, filósofo político e militante da Universidade Nômade, uma das lideranças do Operaísmo italiano e do movimento Autonomista nos anos 1960 e 1970 na Itália, é autor, dentre outros, de Império, Multidão, Poder Constituinte, Anomalia Selvagem e Cinco Lições sobre o Império, todos com tradução em português.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Günther Grass e irmãos Grimm: a cultura e o estado alemães

Folha de São Paulo de 8 de fevereiro de 2011

CRÍTICA

Grass na trilha de Grimm

Gênese de um monumento linguístico

RESUMO
Em seu novo romance, Günter Grass mescla sua trajetória pessoal à da Alemanha ao narrar a hercúlea empreitada dos irmãos Grimm: um dicionário que retratasse a língua alemã em seus aspectos filológicos, literários e históricos. Deixado inconcluso por seus idealizadores, o dicionário só foi terminado nos anos 1960.

MARCUS VINICIUS MAZZARI

SE LUTAR COM PALAVRAS, como diz Drummond em célebre poema, é coisa vã, contar a história de tal luta pode não ser inteiramente sem fruto. Eis o que se propõe o Nobel de literatura Günter Grass em seu último livro, "Grimms Wörter" ["Palavras de Grimm"; 360 págs., € 29,80], publicado em agosto de 2010, pouco antes de completar 83 anos.
Günter Grass transporta o leitor para uma época em que livros, como o "Dicionário Grimm", eram produzidos de maneira artesanal. Inspirado por essa tradição, o autor não apenas criou as ilustrações para a edição alemã, mas também escolheu cuidadosamente, com o editor Gerhard Steidl e produtores gráficos, os melhores (e ecologicamente mais avançados) componentes da moderna produção de livros, desde o papel -passando por técnicas de impressão (com tintas de alta qualidade) e encadernação- até a tipologia usada, a fonte Bodoni, criada pelo tipógrafo e impressor italiano Giambattista Bodoni (1740-1813).

ALFABETO Em nove capítulos, organizados por letras do alfabeto, narram-se os esforços dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm em elaborar um grande dicionário da língua alemã, contemplando a origem e etimologia de cada palavra (com frequência, recuando-se ao gótico e ao antigo e médio alto-alemão), a mudança das acepções, assim como suas principais ocorrências na literatura, dos "monumentos linguísticos" da Idade Média até Goethe.
Embora não se trate de uma biografia, a narrativa se inicia com um fato marcante na trajetória dos irmãos: em 1837, o príncipe de Hannover -um dos incontáveis Estados alemães da época- revoga a constituição liberal promulgada três anos antes, e sete professores que lhe haviam prestado juramento realizam um ato de protesto. Entre estes estão os irmãos Grimm, que, como os demais, são despedidos e perdem todos os direitos civis. Jacob, mais veemente no protesto, é ainda expulso do principado e busca asilo no vizinho Estado do Hesse, onde foram coligidos, anos antes, os contos maravilhosos que celebrizaram o nome Grimm (depois os irmãos encontrarão asilo definitivo em Berlim). "Asilo" ("Asyl") figura assim no primeiro capítulo das "Palavras de Grimm" e enseja a Grass enveredar polemicamente pela questão do asilo político na atual Alemanha. Esse capítulo, afinal, é todo ele dedicado ao "A", "o mais nobre e primordial de todos os sons, ressoando plenamente do peito e da garganta, o primeiro som que a criança aprende a articular e que os alfabetos da maioria das línguas colocam com razão em seu início", conforme se lê na abertura do verbete "A", redigido por Jacob em nada menos do que sete colunas!

HISTÓRIA No ócio repentino a que os irmãos se veem condenados, chega a proposta de uma editora de Leipzig para a elaboração de um dicionário. Tem início assim um projeto filológico verdadeiramente monumental, em cujo desenvolvimento se espelharão as vicissitudes da história alemã ao longo de 123 anos. Pois, ao acreditar de início que poderiam concluir o dicionário em cerca de dez anos (e em sete volumes), os irmãos subestimaram fragorosamente o trabalho que tinham pela frente: ao falecer em 1859, Wilhelm dera conta apenas da letra "D"; Jacob, mais disciplinado e dotado de incomum capacidade de trabalho, conseguiu vencer o "A", "B", "C", "E" e avançar bastante no "F", falecendo (1863) em meio à redação do verbete "Frucht", fruto(a).
Dezenas de milhares de fichas com verbetes para as demais letras foram legadas aos sucessores, cujo trabalho virou o século, atravessou a Primeira Guerra, a República de Weimar, os doze anos do nacional-socialismo (quando, evidentemente, foram eliminados do dicionário todos os vestígios judaicos) e ainda -agora de maneira "pan-germânica", isto é, conduzido por filólogos das duas Alemanhas- 15 anos da Guerra Fria, concluindo-se em janeiro de 1961, com a publicação do 32º volume. (Ironicamente, o dicionário concebido também como estímulo cultural para a unificação dos Estados alemães -assim como, no plano material, a implantação de estradas de ferro- consuma-se ao mesmo tempo que se levantava o Muro de Berlim.)
Desse modo, narrar a acidentada gênese do dicionário oferece a Grass o ensejo para revisitar momentos cruciais da história alemã, não só os vividos pelos Grimm (como a revolução de 1848), mas também aqueles com os quais se entrelaça sua própria biografia, marcada pela Juventude Hitlerista e pelo posterior engajamento no movimento social-democrata.

FRUTOS O que, contudo, organiza a imbricação de temporalidades e trajetórias são justamente as letras do alfabeto, como o "A" de "asilo" ou o "B" de três ícones da social-democracia alemã (Bebel, Bernstein e Brandt). É fácil imaginar as dificuldades que tal procedimento impõe a uma tradução, pois se nos casos onomásticos ou de palavras próximas ao latim verifica-se larga coincidência (como "fructus": "fruht", em antigo alto-alemão), na maioria dos vocábulos mobilizados por Grass o tradutor terá de valer-se de artifícios para tentar colher alguns frutos.
O próprio capítulo da letra "F" tem por fulcro palavras como "Forschung", "pesquisa", ou "Freiheit", "liberdade" (o slogan "Freie Fahrt für freie Bürger", "caminho livre para cidadãos livres", é revelador da degradação sofrida pelo conceito de liberdade numa sociedade automobilística), enquanto o do "K" vem comandado, entre outras palavras, por "Krieg", "guerra", cujo significado, já para o tempo dos Grimm e ainda mais para o de Grass, não é preciso enfatizar.
Como nenhum outro livro desse autor, "Palavras de Grimm" se caracteriza por uma profusão de paronomásias, aliterações e assonâncias, que se intensificam nos poemas incrustados nos capítulos. Mestre soberano da língua alemã, Grass constrói a narrativa manipulando ludicamente as letras do alfabeto, e isso mesmo nos trechos em que reconstitui seus violentos embates ideológicos durante as décadas do pós-Guerra. Para não poucos leitores serão essas as passagens mais questionáveis do livro, pois em momento algum o autor parece admitir a possibilidade de não estar com a razão.

DARWIN E GRIMM Por outro lado, mesmo o leitor mais refratário a Grass dificilmente deixará de admirar passagens como a que desdobra, ainda sob o império da letra "F", um encontro fictício entre dois pesquisadores ("Forscher") contemporâneos: o inglês Charles Darwin, que demonstrou a ininterrupta mutação das espécies (sua origem e extinção por seleção natural, a sobrevivência mediante adaptação bem-sucedida), e o alemão Jacob Grimm, que investigou a fundo deslocamentos de sons, perdas e mutações linguísticas, do sânscrito até o alemão moderno.
Ou ainda a reconstituição do belíssimo "Discurso sobre a Velhice" proferido por Jacob na Academia Prussiana em 1860, um "tema que bate secamente à porta, impõe-se e quer ir para o papel, ainda que seja com mão trêmula", e que enseja assim a Grass considerações sobre a própria velhice (e a aproximação da morte). Fichte, Hegel, Herder e outras celebridades aparecem entre os ouvintes, mas a fantasia de Grass se confessa impotente em juntar-lhes Lutero (presente em centenas de citações do dicionário) e o bispo ariano Ulfila, que no século 4º traduziu o Novo Testamento para o gótico, sistematizando esse idioma já extinto.
A narrativa se fecha com outro extraordinário momento visionário, que suspende o tempo (afinal estamos agora na letra "Z", de "Zeit", "tempo") e mescla as temporalidades: transportando-nos para os dias imediatamente anteriores à construção do Muro, Grass fantasia um encontro com os inseparáveis irmãos no parque em que estes, durante os anos berlinenses, costumavam fazer passeios diários. O objetivo ("Ziel") é comunicar-lhes que o dicionário acaba de ser concluído, graças ao esforço final de filólogos de leste e oeste.
Eis, porém, que os Grimm acolhem a notícia com ceticismo e reserva, compenetrados -e aqui se poderia voltar ao verso drummondiano- do que há de vão na luta com as palavras, pois elas mudam continuamente, geram novos sentidos e levam os antigos à extinção: portanto, pondera Jacob, "não há diques suficientemente fortes para a língua", que, como um rio, "vai sempre fluindo e transbordando das margens".
Sobrevém então, única exceção no fluxo das transformações, a imagem da morte, "marco fronteiriço de todo poder, meta final ["Zielpunkt"] de toda aspiração", nas palavras do grande poeta barroco Gryphius, largamente representado no dicionário. Um melancólico acorde final, sem dúvida, mas o que verdadeiramente ressalta dessas "Palavras de Grimm" é a homenagem que o velho Grass rende aos esforços abnegados desses irmãos e -fruto mais belo ainda- a declaração de amor que faz à língua alemã.

Em nove capítulos, organizados por letras do alfabeto, narram-se os esforços dos irmãos Grimm em elaborar um grande dicionário da língua alemã

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Egito

Acertar con los pasos siguientes en Egipto
Las multitudes que han conseguido la dimisión de Mubarak prueban que Huntington se equivocó sobre el choque de civilizaciones. Los árabes y los musulmanes luchan con valentía en defensa de la dignidad humana
TIMOTHY GARTON ASH 12/02/2011 El Pais

Es indudable que 1989 ha pasado a ser el modelo de cualquier revolución de principios del siglo XXI

La condescendencia del "eso nunca podrá ocurrir allí" ha quedado refutada en Túnez y Egipto
"Para ser sinceros, pensábamos que íbamos a durar unos cinco minutos", recuerda uno de los organizadores de la manifestación original del 25 de enero con la que comenzó esta revolución egipcia. "Pensamos que nos detendrían enseguida". Si hubiera sido así, si las fuerzas de seguridad de Mubarak hubieran vuelto a matar al feto en el vientre, Internet estaría ahora lleno de artículos de expertos que tratarían de explicar por qué "Egipto no es Túnez". Por el contrario, la Red está llena de explicaciones improvisadas pero de una certeza aplastante sobre lo que nadie había previsto. Son las falsas ilusiones del determinismo retrospectivo.

Por consiguiente, antes de seguir, hagamos dos profundas reverencias. La primera, y más profunda, a los que iniciaron esto, corriendo un gran peligro personal, sin ningún apoyo de un Occidente teóricamente defensor de las libertades y contra un régimen que recurre de forma habitual a la tortura. A ellos van toda mi admiración y todo mi respeto. Y en segundo lugar, hay que inclinarse ante la diosa Fortuna, lo imprevisto, que, como observó Maquiavelo, explica la mitad de todo lo que ocurre en la vida de los seres humanos. Ninguna revolución ha conseguido avanzar jamás si no cuenta con unos individuos valientes y buena suerte.

Una correosa víctima de esta revolución, de cuya muerte deberíamos alegrarnos, es la falacia del determinismo cultural, y en concreto la noción de que los árabes y los musulmanes no están preparados para las libertades, la dignidad y los derechos humanos. Su "cultura", nos aseguraban Samuel Huntington y otros, les programaba para otra cosa. Que se lo digan a la gente que baila en la plaza de Tahrir. Eso no quiere decir que los modelos religioso-políticos del islam, tanto radical como conservador, y los legados específicos de la historia árabe moderna, no vayan a hacer que la transición a una democracia liberal consolidada sea más difícil de lo que fue, por ejemplo, en la República Checa. Claro que sí. Todavía es posible que, al final, las cosas salgan terriblemente mal. Pero la idea tan condescendiente de que "eso nunca podría ocurrir allí" ha quedado refutada en las calles de Túnez y El Cairo.

Y, ya que hablamos de determinismos, deshagámonos de otro. En las etiquetas como "La revolución de Facebook", "La revolución de Twitter" y "La revolución de Al Yazira", volvemos a encontrarnos con el espectro del determinismo tecnológico. Después de hablar con algunos amigos en El Cairo, no me cabe la menor duda de que todos estos medios han desempeñado un papel muy importante en la organización y la multiplicación de las protestas populares que comenzaron el 25 de enero. Mientras escribo este artículo, he ido observando el crecimiento de la página de Facebook creada por los egipcios para "autorizar" a Wael Ghonim -el directivo de Google liberado hace unos días de la cárcel y recién designado héroe de la revolución- a hablar en su nombre. La primera vez que la visité, a las 8.51 de la mañana del miércoles, tenía 213.376 seguidores; dos días después, tenía 285.570. Antes, Ghonim había organizado, con seudónimo, otra página en Facebook que contribuyó a las protestas y cuenta ya con más de 600.000 seguidores.

Como sucedió en Túnez, lo que crea el efecto catalítico es la combinación de las redes sociales de Internet y telefonía móvil con el viejo superpoder de la televisión. La cadena de televisión Al Yazira ha ofrecido un relato fascinante de una lucha de liberación con material sacado de blogs e imágenes borrosas tomadas con teléfonos móviles. Ghonim se convirtió en un héroe popular porque poco después de salir de prisión apareció en un programa de la televisión egipcia que le permitió llegar por primera vez a un público de masas. Es decir, las tecnologías de la comunicación, viejas y nuevas, son muy importantes; pero ni impiden que los movimientos populares de protesta acaben aplastados, como se vio en Bielorrusia e Irán, ni deciden el resultado; y el medio no es el mensaje.

Luego están las analogías históricas. He perdido ya la cuenta de cuántos artículos he visto (incluido uno mío, me apresuro a añadir) que se preguntan si este es, o no, el 1989 árabe. "La caída del muro de Berlín del mundo árabe", grita un titular. "Esto no es 1989", clama otro. A la hora de la verdad, la comparación quizá no nos explique gran cosa de lo que ocurre en Egipto, Túnez y Jordania, pero desde luego nos dice algo sobre 1989. Es indudable que 1989 ha pasado a ser el modelo por antonomasia de cualquier revolución de principios del siglo XXI. Lejos están ya 1789, 1917, y 1848.

Por el contrario, otra analogía que sí se utiliza casi tanto como la de 1989 es el Irán de 1979, que incluye la posibilidad de que los islamistas radicales y violentos salgan vencedores. En The New York Times, Roger Cohen, que ha escrito crónicas espléndidas desde Túnez y Egipto, sigue la primera ley del periodismo ("primero simplificar, luego exagerar") cuando dice que "la cuestión fundamental" en Egipto es: "¿estamos presenciando el Teherán de 1979 o el Berlín de 1989?". Una posible respuesta es: lo que estamos presenciando en El Cairo en 2011 es El Cairo de 2011. No lo digo en el sentido obvio de que cada acontecimiento es único, sino en otro sentido más profundo. Porque lo que caracteriza a una verdadera revolución es la aparición de algo auténticamente nuevo, por un lado, y, por otro, el regreso de un principio humano universal que había estado reprimido.

Es nuevo, en El Cairo en 2011, que los árabes y los musulmanes se manifiesten en masa, con valentía y (en general) disciplina pacífica, en defensa de la dignidad humana y contra los gobernantes corruptos y represores. Son nuevos en 2011 el grado de descentralización y las redes organizativas que están detrás de las manifestaciones, de forma que hasta a los observadores más enterados les cuesta responder a la pregunta: "¿quién organiza esto?". Es nueva en 2011 la extraordinaria presión demográfica, porque la mitad de la población en casi todos estos países es menor de 25 años.

Lo viejo, en este Cairo de 2011 -tan viejo como las pirámides, tan viejo como la civilización humana-, es el grito de los hombres y mujeres oprimidos, que vencen la barrera del miedo y viven, aunque sea de forma pasajera, la sensación de libertad y dignidad. Mi corazón daba saltos de alegría cuando vi las imágenes de las inmensas muchedumbres que se concentraban pacíficamente en el centro de la ciudad celebrando la caída del rais. Sin embargo, cuando acabemos de tararear el coro de los prisioneros compuesto por Beethoven para Fidelio, no olvidemos que estos momentos son siempre efímeros. Queda por delante la dura tarea de consolidar la libertad.

Aquí es donde adquieren importancia las comparaciones históricas, que no pueden sustituir al análisis informado y de primera mano de la situación concreta, pero sí ofrecen una amplia variedad de experiencias que muestran de cuántas formas puede salir mal una revolución y la delicada combinación de factores que hace falta para que salga bien.

Ni en la oposición ni en el sector oficial he visto todavía un ingrediente vital para que salga bien: unos interlocutores organizados y creíbles para negociar la transición. Es cierto que en la plaza de Tahrir ha surgido un embrión de organización. Con Ghonim, los manifestantes tienen a un personaje que es un símbolo y podría llegar a ser un líder. Pero da la impresión de que todavía falta mucho para una alianza de las fuerzas opositoras capaz de canalizar la presión popular hacia la mesa de negociación. En el bando oficial, habría que dejar paso a un gobierno provisional encabezado por alguien que sea aceptable para todos (o al menos casi todos) los bandos, alguien como el viejo y astuto Amr Moussa, secretario general de la Liga Árabe. Solo cuando coincidan esos dos elementos podremos empezar a confiar en que la revolución egipcia está en el buen camino.


Timothy Garton Ash es catedrático de Estudios Europeos en la Universidad de Oxford, investigador titular en la Hoover Institution de la Universidad de Stanford. Traducción de María Luisa Rodríguez Tapia.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Egito

Valor Econômico
Parlamentarismo e alternativa de vários países em transição.
O Egito precisa de um faraó?
Alfred Stepan e Juan Linz
11/02/2011

Enquanto a revolução egípcia pende na balança, quais são os fatores que terão mais probabilidade de determinar seu resultado? Embora todas as atenções pareçam estar voltadas ao Exército, para saber de que lado ficará, outras questões fundamentais estão sendo deixadas de lado.

É claro, o que o Exército faz é de imensa importância. Rachas em um regime autoritário sustentado por militares podem criar diferenças entre os interesses temporários do pequeno grupo mais próximo aos "militares enquanto governo" e o interesse de longo prazo dos "militares enquanto instituição", que é ser uma parte respeitada do Estado e da nação.

O comunicado do Exército egípcio no início dos protestos de que seus soldados não atirariam nos manifestantes contrários a Mubarak foi uma clássica decisão de "militares enquanto instituição" e útil em si própria para uma transição democrática. Em contraste, a decisão do Exército de permitir que seguidores de Mubarak - alguns deles montados em camelos e cavalos - investissem na Praça Tahrir, no Cairo, contra milhares de manifestantes contrários ao governo foi uma atitude clássica de "militares enquanto governo".

Neste momento, uma transição democrática muito provavelmente exigirá que o Exército desempenhe um papel mais ativo na proteção dos manifestantes. O que ficou claro é que o interesse dos "militares enquanto instituição" depende da habilidade do Exército em estabelecer uma separação bem maior em relação ao regime.

Transições políticas bem-sucedidas também são beneficiadas quando mais e mais cidadãos passam a sentir que são "donos" dos protestos e da transição resultante. Nesse sentido, o fato de a exigência de renúncia imediata de Mubarak ter surgido na Praça Tahrir, no Cairo, e não do governo Obama é um acontecimento positivo.

Nas transições bem-sucedidas, o primeiro passo para a unidade necessária para a criação de um governo interino é tomado quando os grupos diversos começam a reunir-se, desenvolver estratégias comuns e divulgar comunicados coletivos.
Muitos dos grupos de oposição, representando um amplo espectro de opiniões - incluindo um partido liberal tradicional, a Irmandade Muçulmana e ativistas do Facebook do Movimento Juvenil 6 de Abril - indicaram que podem apoiar um governo provisório, possivelmente liderado por Mohamed ElBaradei, prêmio Nobel da Paz.

Mas, para escolher um líder, esses grupos precisam aglutinar-se em uma força coerente. Grandes movimentos de protesto da sociedade civil - como os ocorridos no Egito e Tunísia - podem derrubar ditaduras, mas uma democracia genuína precisa de partidos, negociações, regras eleitorais e acordos sobre mudanças constitucionais. Na maior parte das transições bem-sucedidas, o primeiro passo para formar a unidade necessária para a criação de um governo interino é tomado quando esses grupos diversos começam a reunir-se com mais frequência, desenvolver estratégias comuns e divulgar comunicados coletivos.

Independente de quem estiver no comando, há algumas coisas que um governo interino não deve fazer. A julgar pelas transições que estudamos, há mais chances de sucesso quando os governos interinos não sucumbem à tentação de estender seu mandato e de elaborar uma nova constituição. A principal tarefa do governo interino deve ser organizar eleições livres e justas, promovendo apenas as mudanças constitucionais necessárias para realizá-las. É melhor deixar a elaboração de uma nova constituição nas mãos do Parlamento a ser eleito popularmente.

A maioria dos ativistas e comentaristas agora se pergunta quem será ou quem deveria ser o próximo presidente. Mas, por que presumir que será instituído um sistema político presidencial, comandado por um executivo unitário e poderoso? Dos oito países pós-comunistas agora membros da União Europeia, nenhum optou por esse sistema. Todos estabeleceram alguma forma de sistema parlamentar, em que o governo presta contas diretamente ao Congresso e os poderes do presidente são limitados (e, muitas vezes, em grande parte cerimoniais).

Foi uma decisão acertada. Uma eleição presidencial em momentos de grandes incertezas e de ausência de partidos democráticos e experimentados ou de líderes de ampla aceitação é algo repleto de perigos.

Eleger um presidente é comprometer-se com uma pessoa, em geral por pelo menos quatro anos. É incerto, no entanto, que qualquer presidente eleito hoje no Egito mantenha o mesmo apoio mesmo que seja por apenas um ano. Por exemplo, se houver muitos candidatos no primeiro turno de uma eleição presidencial, é concebível que nenhum dos dois candidatos do segundo turno tenha conquistado mais de 20% na primeira rodada. O vencedor, portanto, assumiria todos os fardos da liderança com o apoio de apenas uma minoria pequena do eleitorado.

Também é possível que o novo presidente se revele incompetente ou que fique em posição minoritária permanente, sem capacidade de aprovar leis. Muitas novas democracias, portanto, caem rapidamente em um "superpresidencialismo" com qualidades plebiscitárias.

Por sorte, teóricos e ativistas democráticos do Egito e Tunísia debatem ativamente a alternativa parlamentar. Nesse caso, a primeira eleição livre e justa do Egito originaria uma assembleia constituinte que daria de imediato uma base democrática para o governo, assim como para os esforços para reelaborar ou modificar a constituição.

A partir desse ponto, a assembleia constituinte e o governo poderiam decidir se passariam a uma forma presidencial de governo ou se estabeleceriam um sistema parlamentar de forma permanente. Pelo sistema parlamentar, os futuros governos democráticos dos dois países ganhariam uma inestimável flexibilidade, por dois grandes motivos.

Primeiro, diferentemente do presidencialismo, um sistema parlamentar pode dar origem a coalizões governantes multipartidárias. Segundo, ao contrario do que ocorre com um presidente, que por mais incompetente ou impopular continuará no poder por um mandato fixo, o chefe de governo em um sistema parlamentarista pode ser sacado a qualquer momento por uma moção de desconfiança, abrindo caminho para um novo governo de maioria - ou, na ausência disso, para novas eleições.

Alguns nacionalistas democráticos egípcios defendem o parlamentarismo com um importante novo argumento: um governo de coalizão, provavelmente multipartidário, pluralista e contencioso seria mais difícil de ser dominado pelos Estados Unidos do que um único "superpresidente", como Mubarak.

Os defensores tunisianos do parlamentarismo gostam desse argumento, mas também destacam que o sistema parlamentarista resolveria a imensa tarefa de criar partidos políticos democráticos e eficientes de uma forma melhor que o presidencialismo. O sistema parlamentarista, em vez de um presidente que ao mesmo tempo é faraó, parece ser o melhor caminho para os dois países.

Alfred Stepan e Juan J. Linz são autores de "Problems of Democratic Transition and Consolidation" (algo como, Problemas da Transição e Consolidação Democrática, em inglês). Seu livro mais recente (com Yogendra Yadav) é "Crafting State Nations" (criando Estados-Nações, em inglês).

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Texto sobre cidadania

Citizenship and Diaspora: A State Home for Transnational Politics? ssrn coloque no google e o resultado será um interessante texto de Shapiro.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Justiça Transitional

Valor Econômico
Tribunal Interamericano anulou anistias concedidas na região.
Justiça tardia, porém não negada
Ruti Teitel
07/02/2011

No fim do ano passado, o ex-ditador Jorge Videla foi condenado e sentenciado à prisão perpétua por seu papel na "guerra suja" argentina em 1970, quando ocorreram tortura e execuções de prisioneiros desarmados. Esses crimes foram cometidos décadas atrás. O que pode significar esse veredicto tantos anos após a restauração da democracia na Argentina?

Processar Videla e outros perpetradores tornou-se possível devido à jurisprudência pioneira em que se baseou o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos. O Tribunal decidiu pela anulação das anistias concedidas aos líderes políticos e militares na Argentina e em outros países na região, como parte de uma transição para a democracia. O Tribunal considerou que a cobrança de responsabilidade pelos crimes dos ditadores é um direito humano - e, portanto, prevalece sobre a impunidade que beneficiou muitos ditadores latino-americanos, como condição para permitir as transições democráticas.

A mais recente decisão do tribunal regional, em meados de dezembro, revogou uma lei de anistia que protege 1.979 militares brasileiros contra processos por abusos cometidos durante os de 21 anos de ditadura militar no país. "As disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e a punição por graves violações dos direitos humanos", decidiu o tribunal, são "incompatíveis com a Convenção Americana". O efeito (dessa decisão) é exigir que aqueles que estavam no poder respondam pelo desaparecimento, pela força de armas, de 70 camponeses, no Araguaia, em uma campanha antiguerrilha.

A possibilidade de cobrança pode ser difícil. Mas não desistir da responsabilização, apesar da passagem do tempo, envia uma mensagem importante sobre os direitos humanos e o inequívoco caráter desses delitos como "crimes contra a humanidade".
Nesses casos, as vítimas, advogados ativistas e organizações empenhadas na defesa dos direitos humanos recorreram ao tribunal regional de direitos humanos depois de esgotar suas opções no país. A cultura política e jurídica no país ainda não estava preparada para enfrentar frontalmente os fantasmas do passado autoritário. O próprio Tribunal Superior brasileiro, por exemplo, havia recentemente sustentado a constitucionalidade da lei de anistia, que foi apoiada por sucessivos governos brasileiros, todos "inclusive o governo de centro-esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva" omitiram-se no empenho pela responsabilização pelos crimes cometidos pela anterior ditadura militar no Brasil.

Na Argentina, mesmo sob a presidência de Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito democraticamente após o regime militar, execuções extrajudiciais cometidas pela polícia do país foram responsáveis por um terço de todos os homicídios.

Abusos similares foram cometidos pelos serviços de segurança do Peru durante a década de 1990 - crimes pelos quais o ex-presidente Alberto Fujimori está pagando agora.

Tudo isso mostra a fragilidade do controle e das instituições civis, apesar dos 30 anos de democracia. As novas democracias enfrentam muitos desafios políticos - e muitas vezes econômicos. A possibilidade de cobrança de responsabilidade da polícia e dos serviços de segurança pode ser particularmente difícil nos primeiros anos de um novo, e muitas vezes frágil, regime democrático. Mas não desistir da responsabilização, apesar da passagem do tempo, envia uma mensagem importante sobre os direitos humanos e o inequívoco caráter desses crimes como "crimes contra a humanidade".

Não se trata apenas de uma questão relacionada à peculiar herança latino-americana. Com frequência, líderes políticos e elites militares e de segurança têm se revelado tão sagazes e tenazes ao evitar a justiça quanto mostraram-se astuciosos e brutais ao cometer injustiças. Eles nunca devem viver confiantes em que possam permanecer impunes. O Tribunal Penal Internacional não tem nenhum estatuto de limitações e, com razão, continuamos a processar e punir os perpetradores do Holocausto.

Anos depois (dos fatos ocorridos), o que está em jogo não é apenas punir, mas também a verdade política, que exige a fixação de limites oficiais justificáveis para ações repressivas. O regime militar na Argentina, afinal, caracterizou sua "guerra suja" como sendo uma ofensiva contra os chamados "terroristas", e não como o que foi: perseguição arbitrária contra cidadãos com diversas ideologias e de diferentes classes sociais.

Essa lição, declarada juntamente com a sentença contra Videla, justifica os esforços para estabelecer um Estado de direito mundial. Tiranos em toda parte -- e mais do que um punhado de democratas "deveriam ficar atentos.

Ruti Teitel é argentino e professor de Direito Comparado pela New York Law School, professor visitante na LSE e autor de "Transicional Justice" (Justiça transicional).