quarta-feira, 19 de março de 2014

Link do texto de Chomsky sobre a universidade


>> http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Chomsky-Sobre-a-precarizacao-do-trabalho-e-da-educacao-na-universidade/13/30389

quarta-feira, 5 de março de 2014

Crise Econômica matéria do Jornal O Valor


"Sementes de uma nova crise" estão postas, diz Chesnais

Por Vanessa Jurgenfeld | De São Paulo
Emiliano Capozoli/Valor / Emiliano Capozoli/Valor
Chesnais destaca "massa de capital fictício indestrutível" como fator para recuperações cíclicas apenas de curto prazo
O economista francês François Chesnais costuma fazer uma visita por ano ao Brasil, para rever amigos e participar de conferências. Na sua mais recente estada, há pouco dias, aproveitou para conhecer Alter do Chão (PA), onde ficou por uma semana, após uma passagem pelo Rio, onde participou de seminário e recebeu uma homenagem por seus 80 anos, com a publicação do livro "O Brasil e o Pensamento de François Chesnais", organizado por professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Crítico do neoliberalismo, em entrevista concedida ao Valor por e-mail, após retorno a Paris, Chesnais disse acreditar que a qualquer momento uma nova crise mundial pode ocorrer por conta, sobretudo, da falta de maior regulação sobre o sistema financeiro. Após o colapso mundial de 2007/2008, algumas instituições financeiras "têm feito suas operações ainda mais opacas e difíceis de identificar". Além disso, ressalta que a imensa massa de capital fictício (sem lastro na economia real) leva à perspectiva da existência de apenas recuperações cíclicas de curto prazo em certas economias, como ele acredita que acontece nos Estados Unidos hoje.
Sobre o Brasil, a avaliação do economista é a de que a falta de crescimento mais robusto decorre da reprimarização da economia e pelo fato de o país ter eleito a indústria automobilística como o grande motor do seu desenvolvimento e mantê-la neste papel, mesmo com a perda do seu poder.
Chesnais ganhou notoriedade com o livro "A Mundialização do Capital", publicado no Brasil em 1996 [editora Xamã ]. Ex-diretor da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e professor da Universidade Paris XIII (agora Paris-Nord), ele chamou a atenção para um movimento que se evidenciava de forma mais intensa a partir dos anos 1980: a internacionalização do capital produtivo facilitada pela desregulamentação dos fluxos de capitais e pelo avanço na comunicação e nos transportes.
Com uma interpretação teórica marxista, ele mostrou que este processo propiciou a expansão dos grandes grupos transnacionais que, por meio de fusões e aquisições, aumentaram a concentração da produção, formando oligopólios mundiais em diversos setores.
Atualmente, Chesnais finaliza uma edição em inglês de um livro que trará sua interpretação sobre a crise financeira mundial mais recente.
Confira a seguir a entrevista:
Valor: Uma das suas principais ideias é que a globalização financeira cria um mundo mais instável e estimula crises econômicas. Bancos, governos, fundos mútuos e as grandes corporações seriam a grande força por trás desse movimento? E na sua avaliação ele estaria se tornando cada vez mais forte?
François Chesnais: A massa de juros cobrada por bancos e fundos, em particular por meio do mecanismo de emissão de títulos de dívidas governamentais, somada à massa de lucros empresariais distribuídos como dividendos, é canalizada para os mercados financeiros. E ela acaba nas mãos de um pequeno número, altamente concentrado, de grandes bancos, fundos, empresas e indivíduos muito ricos. A maior parte dessa massa de juros e dividendos nunca deixa a arena dos mercados financeiros globais. Isso infla o volume do que é chamado de "capital fictício à enésima potência", com negociações por meio de derivativos, mercados de câmbio e papéis securitizados que germinaram nos anos 2000 - como os "asset-backet security" (ABS, na sigla em inglês) e os "collateralized debt obligations" (CDOs, na sigla em inglês) - e rendendo lucros fictícios, como meus colegas Mauricio Sabadini, Paulo Nakatani e Rosa Marques os chamam. Essas somas imensas movem-se cada vez mais de um mercado a outro. E elas o fazem cada vez mais rápido, por meio das negociações de alta velocidade.
Valor: Os mercados emergentes enfrentam neste momento um período difícil, especialmente países como Turquia e Argentina. Como o sr. interpreta esse momento?
Chesnais: Isso mostra que a desaceleração do crescimento desses países e as tensões políticas internas, combinadas com uma perspectiva de mudança da política monetária americana, estão levando os fundos especulativos de curto prazo a arbitrar em favor de investimentos em outros mercados.
"Maior parte dessa massa de juros e dividendos nunca deixa a arena dos mercados financeiros"
Valor: O sr. acredita que ainda há efeitos da crise mundial de 2007-08 sobre a economia global? Por que está sendo tão demorada a superação dessa crise?
Chesnais: A raiz da crise foram as quedas na taxa de lucro das economias centrais do G7 e a construção de um investimento excessivo e de superprodução em vários lugares do sistema mundial, incluindo a China, claro, por conta do seu programa de investimentos e regime de orientação exportadora. Em 1998 e de novo em 2001, a explosão da crise global foi postergada, notadamente pelo governo americano e pela emissão de moeda pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano). A partir de 2002, uma grande quantidade de dívida do setor imobiliário, sustentada pela explosão da securitização, retornou para a aquisição de residências e edifícios comerciais. Isso criou uma dupla bolha de ativos, no mercado imobiliário e nos títulos lastreados por hipotecas [Mortgage Backed Securities (MBS)]. Casas e apartamentos não eram vistos apenas - ou se é que eram vistos - como valor de uso, mas como ativos financeiros cujos preços continuariam a subir e nunca haveria um colapso. Os empréstimos "subprime" para famílias muito pobres foram só a ponta do iceberg. Hoje, a persistência da acumulação excessiva global e da superprodução, conjuntamente com a existência de uma massa de capital fictício indestrutível como dito antes, significa que a única perspectiva é que só existem recuperações cíclicas de curto prazo em certas economias, como é temporariamente o caso dos Estados Unidos. É interessante notar que no Japão o "Abeconomics" já está tendo efeitos reduzidos. A taxa de crescimento do Japão nos últimos dois trimestres caiu significativamente e também houve redução de suas exportações, mesmo com taxa de câmbio favorável ao exportador.
Valor: Na sua opinião, as novas formas que assumiram as grandes corporações, principalmente pós-70, seriam uma das mais importantes causas da desigualdade mundial, pela preocupação maior do negócio empresarial em obter ganhos para os acionistas do que em melhorar os salários dos seus funcionários, por exemplo?
Chesnais: Nenhuma corporação jamais teve o aumento do salário dos seus trabalhadores como um objetivo! Aumentos salariais apenas têm sido obtidos pela classe trabalhadora por meio de sindicatos e ações políticas. O recente desenvolvimento na organização e no gerenciamento das grandes corporações é o degrau por meio do qual o poder oligopolístico e monopsônico [situação onde há um único comprador, que concentra poder de mercado, diante de inúmeros vendedores] permite a elas atacar as pequenas firmas, valendo-se de práticas predatórias. Esse poder força as pequenas firmas a reduzir os salários e a aumentar a produtividade dos seus próprios trabalhadores. Esta é uma das grandes causas do aumento da desigualdade que vem conjuntamente aos grandes ganhos obtidos por meio do mercado financeiro e, claro, com a baixa taxação sobre a riqueza.
Valor: O sr. acredita que a financeirização se tornou maior na estrutura de capital das empresas em diferentes países? Ou é possível ver algumas exceções como na China, por exemplo?
Chesnais: O que é chamado de "financeirização das corporações industriais" contempla duas grandes áreas: as suas operações no mercado financeiro e os seus métodos atuais de gerenciamento global não tão direcionados à produção de mais-valia quanto à sua apropriação, ou seja, [direcionados] à caça predatória das pequenas firmas. Desde os anos 1960, primeiramente as firmas americanas e então todas as transnacionais se tornaram organizações engajadas tanto em produzir valor e mais-valia quanto em operações no mercado financeiro e empréstimos. Isso simplesmente se tornou mais visível e estudado um pouco melhor [nos últimos anos]. O parasitismo difundido pelo capital financeiro contemporâneo são essas novas formas de organização da corporação, que agora focam menos na exploração do trabalho "intra-muros" e mais na apropriação predatória de mais-valia em cima das firmas mais frágeis, o que é permitido pela posição de monopólio e de monopsônio que ocupam nas "cadeias de valor globais" (global value chains, em inglês). As corporações chinesas estão em uma situação diferente. Mesmo quando o Estado não tem fatia no capital, elas estão protegidas contra a interferência de "hedge funds" na sua administração e ainda estão em uma fase de cuidadosamente focar em "joint ventures" para acesso à tecnologia estrangeira. Mas, como mostra o desenvolvimento do sistema bancário paralelo [que engloba instituições que na prática cumprem funções de bancos, mas não são bancos e não estão sujeitas à regulamentação dos bancos, chamado em inglês de "shadow banking system"), a China não está fora do movimento de globalização e financeirização.
"O capital financeiro resulta da centralização e concentração do capital bancário, industrial e mercantil"
Valor: Considerando o aumento da importância do capital financeiro dentro das empresas, o sr. acredita que há muitas diferenças entre o capitalista industrial e o capitalista financeiro (bancos)? No capitalismo dominado pelas finanças, eles não são praticamente o mesmo agente? Quais as consequências disso no longo prazo?
Chesnais: As diferenças são muito, muito pequenas. Nas condições contemporâneas da globalização, o capital financeiro é o resultado de um processo contínuo de centralização e concentração. O capital financeiro resulta de um processo incessante de centralização e concentração dos capitais industrial, bancário e mercantil como um todo e de suas inter-relações. O capital financeiro contemporâneo está de forma combinada no "capital produtivo", alojado em corporações industriais - todas corporações transnacionais -, no "capital dinheiro", centralizado em grandes e poderosos conglomerados financeiros (J.P. Morgan, BNP Paribas, Santander [por exemplo]), e no "capital mercantil e comercial" incorporado tanto pelos conglomerados que operam em commodities (Cargill, Dreyfus) como aqueles que operam na comercialização final dos produtos (Walmart, Carrefour). Acionistas e gestores das empresas cada vez mais dividem o mesmo objetivo de maximizar o valor para os acionistas do mercado financeiro. Como consequência de longo prazo, a mais central e dramática é que a relação do ser humano com a natureza está agora principalmente moldada pelo parasitismo criado por esse capital. Esse capital é essencialmente incapaz de aceitar limites para suas operações. E esse capital está direcionado a perseguir um curso no qual desconsidera mudanças climáticas, apesar do trabalho de cientistas no IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change) e do fato de que recursos naturais limitados continuam a alimentar investimentos destrutivos.
Valor: O sr. acredita que esse aumento da financeirização das corporações é parte do problema do baixo crescimento de diversos países nos últimos anos? O Brasil tem enfrentado baixas taxas...
Chesnais: Isso é apenas parte do problema. Em quase todos os países há outros fatores que derivam de decisões escondidas ou implícitas tomadas por industriais nacionais e pelas elites financeiras, e por políticas governamentais deliberadas. Grandes bancos nacionais e estrangeiros estão, claro, envolvidos em todas elas. A queda na taxa de crescimento do Brasil está relacionada com a "reprimarização" da economia, que cria uma alta dependência da demanda estrangeira, sobretudo, da China. A indústria automobilística foi escolhida como o motor do crescimento doméstico e mantida neste papel apesar da visível perda do seu poder e dos problemas sistêmicos urbanos de grande magnitude nas cidades. Essas escolhas e suas possíveis consequências foram de fato alguma vez realmente discutidas? A vulnerabilidade do Brasil à saída repentina do capital externo de curto prazo - que não é tão séria, mas também não é totalmente diferente da de países como Turquia e Argentina - resulta da baixa taxação [sobre o capital externo], alta dívida pública e alta taxa de juros. Isso não está relacionado com o baixo crescimento do PIB? É indiferente para a justiça social, assim como para o crescimento, que mais de 45% do orçamento federal sejam gastos com o serviço da dívida pública brasileira, como revelado por Maria Lucia Facttorelli e a Auditoria Cidadã da Dívida? A mídia permitiu que essa questão fosse discutida?
Valor: Os fundos se tornaram os "grandes vencedores" da economia desregulada, que se evidenciou com a crise de 2007-08? O sr. acha que mesmo após 2007-08, ainda se vive em uma economia mundial muito desregulada?
Chesnais: Sim, isso é, de fato, o caso. Mas é justamente nisso que estão as sementes de uma nova e grande crise financeira. O sistema bancário paralelo (shadow banking system), em particular, tem crescido e tem feito suas operações ainda mais opacas e difíceis de identificar. Mesmo Hank Paulson, que era secretário do Tesouro dos Estados Unidos em 2008, começou a alertar sobre os perigos do sistema bancário paralelo. Apenas uma nova crise financeira e muito mais severa e totalmente em escala global - e o Brasil não vai escapar da próxima vez - poderia criar as condições para qualquer controle real. Essa [nova] crise pode ocorrer em algum momento nos próximos anos.
Valor: Por que diversos governos não conseguiram impor controles mais rigorosos sobre o sistema financeiro?
Chesnais: A razão básica é que os governos defendem uma ordem social hierárquica de divisão de classes, atualmente uma verdadeira ordem oligárquica. Alguns governos consideram essa situação como natural, outros como muito poderosa para ser desafiada e transformada. Os chamados governos esquerdistas não confiam na capacidade criativa de uma grande massa de homens e mulheres. Eles [os chamados governos esquerdistas] nunca pediram seu apoio [o da grande massa], a não ser em alguns poucos e breves momentos, em um pequeno número de países. Na verdade, em sua maioria, eles a temem



domingo, 2 de março de 2014

Escravidão no Brasil












HISTÓRIA

Um pouquinho de Brasil
Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de "12 Anos de Escravidão"

LILIA MORITZ SCHWARCZ
MARIA HELENA P. T. MACHADO Folha 2 de março de 2 de março de 2014
RESUMO

Narrativa de Solomon Northup, que inspirou filme concorrente ao Oscar, enseja ensaio sobre as condições da escravatura no Brasil e nos EUA. Ao contrário do que parecem supor as plateias, as sevícias impostas aos cativos eram tão ferozes aqui como nos EUA, assim como era comum a captura de homens livres por direito.

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Há situações que parecem estar além de qualquer racionalização: diante delas quem sabe a única resposta seja a profunda indignação. Esse é o caso do sistema escravista recriado em bases mercantis a partir do século 16, que instituiu um modelo de trabalho pautado na naturalização da violência, na compra e no tráfico de viventes. Difícil descrever por meio de interpretações objetivas um cotidiano que invadia a todos e se esmerava na aplicação de uma cartografia de castigos, vexações e punições.

"12 Anos de Escravidão" procura traduzir em imagens o que é praticamente indizível em palavras. O filme, que chegou há pouco às nossas telas, foi precedido por debates e críticas, aqui como no contexto norte-americano. Não foram poucos os que acusaram o diretor Steve McQueen de fazer um filme vocacionado para o Oscar --o longa concorre hoje a nove prêmios. Outros destacaram o exagero sentimental, cenas apelativas e o recurso a um fundo musical que tem por objetivo deixar ainda mais tenso um assunto já por si nervoso.

Não por acaso a escravidão permaneceu por muito tempo no silêncio, nos EUA e no Brasil, ou foi tratada como um não tema. Talvez este seja um bom momento para fazer do passado uma indagação. Por que tantos e por tanto tempo sustentaram tal sistema?

O filme se baseia na narrativa de vida de Solomon Northup --negro livre de Nova York, sequestrado e vendido na década de 1840 como escravo para trabalhar nas fazendas nas fronteiras do sul do país. A publicação de sua história, em 1853, serviu como veículo para a difusão das novas ideias abolicionistas. Esquecido desde então, o relato de Northup voltou às livrarias propelido pelo lançamento do filme --no Brasil, saíram duas edições (pela Penguin/Companhia das Letras e pela Seoman).

A reconstituição feita no cinema, minuciosa, realista e muito colada ao livro, se detém nos aspectos sombrios do funcionamento da escravidão no sul dos EUA, trazendo para a tela as engrenagens do tráfico interno e ilegal, a organização do trabalho compulsório nas "plantations", as políticas senhoriais de controle, punição e compensação de escravizados, as regras de submissão, as relações inter-raciais e, sobretudo, a violência de um sistema que supõe a posse de um homem por outro.

Para completar a fatura, "12 Anos" ainda mostra como era frágil a situação civil dos negros livres e libertos --assim como a própria noção de liberdade. A sensação que fica é a de que nada era seguro no período anterior à Guerra Civil, com os negros livres norte-americanos contando apenas com direitos sociais limitados. Tal perfil valia até para o norte dos EUA, que exaltava valores republicanos e cidadãos. O direito ao voto para negros era um privilégio raro e a política de segregação já começava ser implantada em muitos lugares. Sem ter o direito de testemunhar contra brancos ou de a eles igualar-se constitucionalmente, o negro livre era entendido --como bem notou a historiadora Barbara Fields em ensaio clássico-- quase como um estrangeiro. A fronteira entre cativeiro e liberdade era mais fluida do que se podia esperar.

No contexto norte-americano, existe uma considerável tradição de narrativas escritas por escravizados e libertos; no cinema, porém, é novidade apresentar a escravidão a partir do ângulo dos afro-americanos. O filme de McQueen, por economia de argumentos ou conservadorismo, optou por deixar a trama mais previsível, conferindo o papel de libertador a um homem branco, educado e canadense --certamente remetendo-se à tradição daquele país de acolher escravos fugidos.

REAÇÕES

O díptico livro-filme fez estourar nos Estados Unidos um debate volumoso. Voltando os olhos para a recepção que o longa de McQueen recebeu por aqui, podemos dizer que é no mínimo revelador observar as reações da plateia, que, entre entristecida e atônita diante da dureza das imagens, sai do cinema com questões do tipo: "Como era dura a escravidão nos Estados Unidos! Os senhores lá eram mesmo cruéis --no Brasil não era assim, não é?".

Esse tipo de resposta denuncia uma espécie de política de compensação e certo "alívio" tentador: joga-se a sensação incômoda sempre para o lado do outro, para bem longe de nós. No entanto o que hoje se sabe é que a escravidão no Brasil não foi essencialmente diferente da retratada em "12 Anos de Escravidão". Ao contrário, foi maior em número de africanos entrados no país, assim como tomou todo o território e por um período de tempo ainda mais extenso.

As similaridades entre os regimes escravocratas de lá e de cá são muitas, a começar pela notável porosidade das fronteiras entre cativeiro e liberdade que são tema de "12 Anos" (o sequestro, aprisionamento, transporte, venda e revenda do protagonista se concretizam quase sem estorvo por parte das autoridades ou da população).

Novos estudos nos EUA e no Brasil têm demonstrado a escandalosa ilegitimidade da escravidão. Amparada firmemente no costume e fazendo vistas grossas a sua flagrante ilegalidade, a escravidão, concluem muitos pesquisadores, foi um sistema marcado pela bastardia jurídica.

Em artigo publicado em 2012 na revista "Afro-Ásia", Rebecca Scott e Jean Hébrard, ao acompanhar a trajetória de Rosalie, da nação poulard, do Haiti dos finais do século 18 até Nova Orleans, nos EUA, passando por Cuba, desvelam os pés de barro da legislação escravista em três contextos jurídicos.

No Brasil, é conhecido o proverbial desrespeito à lei de 1831 que proibia o tráfico atlântico. Tal atitude política produziu gerações de africanos e descendentes submetidos à escravidão ilegal, como denunciou pioneiramente o rábula negro Luiz Gama (1830-82) --ele próprio mantido em cativeiro ilegal por anos de sua juventude--, seguido por muitos outros abolicionistas. A precarização da liberdade foi, assim, o pão de cada dia de negros livres, libertos e africanos livres na sociedade brasileira.

O notável desprezo das sociedades escravistas pelas leis se espraiava por toda a sociedade, facilitando a reescravização. No Brasil, a exigência de passaportes, passes e bilhetes senhoriais que deveriam acompanhar o deslocamento dos cativos comprova a preocupação das autoridades em manter o controle dos escravos --e sobre qualquer indivíduo que apresentasse possíveis traços de pertencimento à escravidão.

Situação comuníssima era a detenção de negros e negras para a conferência dos documentos de deslocamento e comprovação de identidade. Nestas ocasiões, muitos homens livres, detidos fora de seu meio social imediato, foram facilmente aprisionados e vendidos como escravos, conforme mostra uma série de investigações, sugerindo que, no Brasil, existiram milhares de Northups.

TRANSFORMAÇÃO

Outro aspecto a ser lembrado é o da transformação de Northup, homem livre, de certas posses, bem educado e alfabetizado, exímio violinista e carpinteiro --um gentleman negro integrado à burguesia branca-- em escravo do eito, degradado, quebrado por castigos, e que passa ao anonimato como cativo.

Tal mudança encontra paralelo, no Brasil, no quebra-negro, castigo muito utilizado para sazonar escravos novos ou recém-adquiridos, que obrigava os cativos a sempre olhar para o chão diante de qualquer autoridade e, sobretudo, a esconder sua identidade e aptidões. O escravo devia se apresentar como ser ignorante, desprovido de conhecimentos ou especialidades, sendo a obediência e a lealdade qualidades muito apreciadas. Lealdade, por sinal, era atributo necessário também para libertos, sendo que a falta de deferência a um antigo senhor poderia levar à recondução ao cativeiro.

A despeito das altas doses de sadismo, é claro que a violência do sistema tinha um sentido econômico claro: a de moldar a prontidão do escravo e fazê-lo trabalhar ao máximo. Northup recebeu sua dose de sevícias pedagógicas e disciplinares, à semelhança do que ocorria no Brasil, conforme atestam uma série de processos criminais envolvendo escravos.

David de Angola, por exemplo, morador de Campinas no ano de 1861, foi chicoteado por juntar café apenas com uma mão, fazendo o serviço demorar mais. O escravo Caetano de Taubaté, quando voltava da roça no ano de 1885, foi surrado por quebrar uma espiga de milho verde para comer.

Não há como esquecer, ainda, os anúncios de fuga de escravos, presentes cotidianamente nos jornais do país. Neles, os escravizados eram descritos a partir de seus corpos maltratados, das pejas e ganchos ainda neles presas na ocasião das fugas, sendo todos esses detalhes convertidos em formas de reconhecimento e apreensão. Tudo sem peja ou vergonha.

Aliás, se podemos notar uma significativa diferença estrutural entre a escravidão nos EUA e aqui, esta seria contrária ao que espera o público dos nossos cinemas.

No Brasil --e contrariando a ladainha que descreve um sistema menos severo-- os escravos reagiram mais, mataram mais os seus senhores e feitores, se aquilombaram mais e, finalmente, também se revoltaram mais. A provável explicação dessas diferentes reações pode repousar na fragilidade de nossas instituições policiais e jurídicas bem como em uma menor coesão da classe senhorial, dividida entre pequenos, médios e grandes proprietários, espraiados por todo o país. Com certeza mostra, também, como violência chama sempre mais violência.

O filme permite ainda explorar ambivalências que cercaram a escravidão, cuja realidade era atravessada pelo paternalismo e por toda forma de intimidação.

Entre tantas histórias, sobressai no longa a de Patsey, jovem escrava e exímia colhedora de algodão. Seu corpo não é apenas apropriado como produtor de riqueza mas também enquanto instrumento de prazer, gozo e culpa por parte de seu proprietário --e de ódio por conta do ciúmes da senhora.

Aqui aparece pintada, e com tintas ainda mais fortes, a clássica análise de Gilberto Freyre sobre a sexualidade exercida na intimidade da alcova escravista: o autoritarismo senhorial aí se encontrava com a "aparente" passividade da mulher escravizada, a qual era antes uma rendição aterrorizada.

Nada mais angustiante do que o silêncio de Patsey e sua vontade de ser assassinada por outro escravo, que ao menos reconhece sua dor. Pesada é a ironia anotada pela feminista afro-americana Bell Hooks, que critica a incapacidade do filme de dar voz à escrava, já que é Northup quem vocaliza o sofrimento de Patsey. Segundo Hooks, as narrativas de escravas seguem silenciadas e silenciosas.

Não há escravidão melhor ou pior. Sempre e em qualquer lugar ela gera o sadismo, a naturalização da violência e a perversão social. O que resta, nos EUA ou aqui, é a má consciência, a culpa da perpetuação de um sistema como esse por tanto tempo. Pesa na nossa agenda nacional o fato de o Brasil ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Marca pesada, ela ainda é vista como um descuido, uma circunstância. Não foi.

Talvez por isso o Hino da Proclamação da República, criado apenas um ano e meio após a abolição da escravidão em 1888, ainda entoe um envergonhado e indireto apelo: "Nós nem cremos que escravos outrora/tenha havido em tão nobre país". Outrora era ontem, e o país, ao menos no que se refere a essa questão, nada tinha de "nobre". "Crer", nesse caso, não implica no ato libertador de imaginar, mas de esconder.

Lilia Moritz Schwarcz, 56, é professora titular de antropologia da USP e "global scholar" da Universidade de Princeton

Maria Helena Pereira Toledo Machado, 58, é professora titular de história da USP