domingo, 10 de março de 2013

O islã e o poscolonialismo

Por um islã cosmopolita Folha de São Paulo 10 de março de 2013




O mundo muçulmano pós-Primavera Árabe



RESUMO Intelectual nascido no Irã e radicado nos EUA analisa reação islamita após queda de regimes ditatoriais na Primavera Árabe. Para professor, ascensão de grupos religiosos esconde processo mais profundo de rompimento de amarras identitárias que se dará conforme islã recupere vocação cultural cosmopolita.



SAMY ADGHIRNI



O Ocidente assiste, impotente e preocupado, à consolidação de governos islamitas no rastro das revoltas árabes que derrubaram ditaduras na Tunísia, no Egito e na Líbia. À convulsão social surgida com a ascensão de forças conservadoras soma-se a guerra civil na Síria, onde grupos próximos à Al Qaeda assumiram as rédeas da incompleta revolução contra o regime do ditador Bashar Assad.



Esse cenário sombrio esconde uma profunda transformação que implica não somente a libertação dos jugos autoritários como também a das amarras identitárias e culturais remanescentes da era colonial.



O autor dessa tese é o intelectual americano nascido no Irã Hamid Dabashi, 61. Professor de estudos iranianos e literatura comparada na Universidade Columbia, em Nova York, ele é adepto de uma filosofia da geopolítica que o tornou um dos mais respeitados especialistas em temas árabes e islâmicos nos EUA.



Autor de vários livros, entre eles o recém-lançado "Being a Muslim in the World" (sendo muçulmano no mundo, em tradução livre), Dabashi disse à Folha, em entrevista por e-mail, que os muçulmanos estão recuperando a vocação cosmopolita de sua religião e criticou a Europa pela estigmatização dos imigrantes islâmicos.





Folha - Por que os islamitas saíram como os maiores vitoriosos das revoluções árabes?

Hamid Dabashi - É uma vitória sem fôlego. Os islamitas foram bem-sucedidos em dominar eleições porque apostaram em redes de mobilização política costuradas ao longo de décadas de ditadura dos antigos regimes.

Mas esses islamitas no Egito, na Tunísia e em outros países estão sendo duramente contestados, desta vez não por regimes opressores, como o do [ex-ditador egípcio Hosni] Mubarak ou do [ex-ditador tunisiano Zine el Abidine] Ben Ali, mas pela própria população.

No Egito, os escritórios da Irmandade Muçulmana estão sendo incendiados, e o lema da revolução, "o povo quer a queda do sistema", virou "o povo quer a queda da Irmandade Muçulmana".

Na Tunísia, os sindicatos estão mobilizados contra o partido governista Al Nahda. Essas siglas islamitas se reivindicam donas do islã e do espaço público nos países muçulmanos, e essa apropriação está sendo seriamente contestada por outros muçulmanos.

No longo prazo, será uma batalha perdida para as forças islamitas, que na Tunísia recorreram ao assassinato do opositor Chokri Belaid e no Egito ameaçam de morte líderes oposicionistas como Mohamed ElBaradei.

Usar e abusar do sistema eleitoral é apenas um subterfúgio, que está sendo aos poucos desmascarado.



As sociedades árabes e muçulmanas estão se tornando mais radicais?

De forma alguma. O que acontece é o contrário. Do Irã ao Marrocos, as sociedades estão se abrindo. Sua vocação cosmopolita, que se manifesta melhor nas artes visuais e literárias, após ter sido camuflada sob a falsa oposição secularismo versus islamismo, está desabrochando.

Essas vozes podem ainda não ser ouvidas devido aos sons da guerra na Síria ou por causa das pressões geopolíticas mantidas por Arábia Saudita e Israel. Mas essas vozes (e essa visão) existem e estão tomando forma. Regimes conservadores, como o saudita, estão fazendo de tudo para instigar violência sectária como forma de polarizar extremos, mas essa onda de revoluções está se voltando contra isso.



Por que o senhor contesta a distinção entre seculares e religiosos nos países árabes e muçulmanos?

Essa distinção é uma fabricação pós-colonial, construída por meio de coação. É uma forma de conhecimento que esgotou suas possibilidades epistemológicas e que já não corresponde à realidade das experiências de vida das pessoas nem reflete seus ideais e aspirações.

Isso se nota nos filmes, na ficção e na poesia [dos países muçulmanos]. O contorno moral e criativo de tudo aquilo que é belo e sublime não pode ser reduzido a essa distinção grosseira e equivocada. Você pode ser muçulmano e feminista, muçulmano e marxista, muçulmano e psicanalista e, para reforçar o argumento via hipérbole, até mesmo muçulmano e ateu.

A vida das pessoas transcende esse falso antagonismo.



O senhor acredita que as petromonarquias do Golfo Pérsico se tornaram a força motora por trás do sucesso dos partidos islamitas?

Com certeza. As petromonarquias do golfo se sentem ameaçadas, com razão, aliás. Por isso acreditam que seu dinheiro pode comprar tudo, inclusive a capacidade de orientar o futuro dessas revoluções.

Mas isso é um engano. Tendências históricas e movimentos políticos não são como o último modelo de Mercedes que se pode comprar. [Os regimes do golfo] acabarão atropelados por esses movimentos.



Por que países árabes, ocidentais e a Turquia estão apoiando a rebelião islamita na Síria, hoje dominada por jihadistas perigosos?

A revolta síria não começou como uma rebelião islamita. Como em todos os outros palcos da Primavera Árabe, começou de forma pacífica por impulso da multifacetada sociedade síria, incluindo intelectuais, jornalistas, artistas, sindicalistas, feministas etc.

Foi Bashar Assad quem começou derramando sangue, o que levou à violência alguns setores da oposição, entre eles os islamitas.

Mas não se pode reduzir a revolução síria a essas forças, assim como não se pode reduzir o regime em vigor ao aparato de segurança e inteligência apoiado pelo Irã, pela Rússia e pela China.

Os Estados Unidos e seus aliados regionais, incluindo Arábia Saudita, Qatar e Turquia, estão tentando comandar por controle remoto a revolução síria. Não fosse pela presença de forças islamitas, os Estados Unidos e a Otan já teriam bombardeado o palácio de Assad há muito tempo, como fizeram com [o ex-ditador líbio Muammar] Gaddafi.

Não atacaram até agora para dar a Bashar Assad tempo de acabar com os islamitas que o Ocidente considera indesejáveis. Depois disso, eles irão matá-lo, na esperança de ter um cenário pós-Assad mais aceitável para a Arábia Saudita e Israel.

O problema é que sauditas e israelenses não estão na mesma sintonia. A Arábia Saudita adoraria ter salafistas [muçulmanos ultraconservadores] atuando a seu favor. Já Israel é avesso a todas as forças islamitas, vistas como variações do Hamas. Essa contradição orgânica nas forças contrarrevolucionárias acabará favorecendo o povo sírio e sua revolução.



O que os protestos surgidos após a eleição presidencial no Irã em 2009 e a Primavera Árabe têm em comum? Por que o Irã teve mais êxito que os ditadores árabes para acabar com os protestos, e com muito menos sangue derramado?

Os dois casos têm tudo a ver. O Irã não acabou com os protestos, simplesmente os escondeu debaixo do tapete.

A República Islâmica do Irã está em sérios apuros. Isso se reflete tanto nos seus distúrbios internos quanto na sua perda de poder regional, com a aliada Síria afundada no caos, o Hamas autodesvinculado da Síria, o Hizbollah vivendo sua mais grave crise existencial e a população iraquiana protestando contra seu governo xiita e, por tabela, contra a influência iraniana.

O caso iraniano foi menos sangrento porque o regime aterrorizou os pais dos jovens manifestantes para que mantivessem seus filhos em casa. Além disso, ao longo de suas três décadas no poder, o regime totalitário conseguiu incorporar ao seu aparato de segurança uma parte importante da sociedade.

Em vez de construir universidades e criar empregos, ele consolidou suas fundações com base num aparato de segurança que, a exemplo do professor Harold D. Lasswell [1902-78], eu chamo de

"Estado fortaleza". Mas a ameaça ao regime não vem somente de seus dissidentes, ela vem também da geopolítica regional.



Diante das pressões de algumas comunidades islâmicas na Europa para influenciar as leis locais, não seria compreensível os europeus enxergarem os imigrantes como ameaça à sua cultura e identidade?

Os muçulmanos não foram à Europa atrás de clima agradável e generosa hospitalidade, mas em busca de trabalho. Os franceses não têm nenhum direito de falar em cultura e identidade. Eles deveriam ter pensado nisso quando saíram de seu país para colonizar a África e a Ásia.

Os franceses cruzaram suas fronteiras nacionais muitos antes dos africanos. O que os franceses estão fazendo no Mali neste exato momento? Quando enviam caças para bombardear a África, eles não estão preocupados com identidade nacional nem fronteiras.

Mas, quando africanos vão até a Europa, acabam martelados com discurso sobre fronteira nacional e identidade. Portanto muçulmanos e africanos têm pleno direito de estar na França. E, se isso gera confusões de identidade para franceses racistas, eles podem pedir ao seu governo que ensine direito nas escolas a sua história imperial.



É possível que ocorra um renascimento islâmico?

Não precisamos de renascimento nem de reforma à moda da Europa. Essas são denominações que historiadores europeus atribuíram de forma retroativa à história do continente, e elas hoje são contestadas.

O que nós precisamos, como explico no meu livro "Being a Muslim in the World", é renovar o espírito cosmopolita que sempre foi inerente à cultura islâmica antes de seu fatídico encontro com o colonialismo europeu e o imperialismo americano.

O principal obstáculo nesse caminho é a hiperjuridização do islã -que ocorreu sob pressão colonial e acabou exacerbada por orientalistas cristãos e judeus que enxergavam o islã sob a lente de suas próprias religiões. Esses estudiosos acreditavam que os princípios da lei islâmica a serviço dos califados e sultanados na Idade Média representavam a essência do islã.

Esta é categoricamente uma leitura falsa do islã, que retira a lei islâmica do contexto histórico da intelectualidade islâmica, dando lhe uma influência desproporcional sobre a integralidade da fé para depois esperar que um renascimento ou uma reforma retifique as coisas.

A lei islâmica é parte do islã, mas não representa tudo na religião. O 1,3 bilhão de muçulmanos espalhado pelo mundo e seu mundanismo particular e sua maneira de viver num mundo não islâmico irá conduzir até um pacto renovado com sua religião cosmopolita, desta vez numa mudança epistêmica livre do pesadelo de ter que dar explicações ao Ocidente.



"As petromonarquias do golfo se sentem ameaçadas, com razão. Por isso acreditam que seu dinheiro pode comprar tudo, inclusive a capacidade de orientar o futuro dessas revoluções"



"Os franceses não têm nenhum direito de falar em cultura e identidade. Eles deveriam ter pensado nisso quando saíram de seu país para colonizar África e Ásia"



"Precisamos renovar o espírito cosmopolita inerente à cultura islâmica antes do fatídico encontro com o colonialismo europeu e o imperialismo americano