sexta-feira, 31 de julho de 2009

A questão colombiana vista pelo Brasil e Espanha

Folha de São Paulo de 31 de julho de 2009

Brasília se alia a Madri contra bases dos EUA
Governos articulam ação conjunta para lidar com intenção americana de expandir sua presença militar na Colômbia

Negociações entre Bogotá e Washington foram estopim inicial para acirramento das tensões que fez Venezuela congelar relação com vizinho



Os governos da Espanha e do Brasil articulam reações conjuntas da União Europeia e da América Latina contra a intenção dos EUA de ampliarem sua presença militar na Colômbia, com distribuição de soldados e civis americanos em três bases no país.
Para Espanha e Brasil, isso significa trazer para a região a lógica da militarização e uma corrida armamentista, com a Colômbia servindo de plataforma para os EUA e a Venezuela, para a Rússia.
"É preciso cuidado para evitar tensão e militarismo na América Latina. Essa não é a melhor resposta aos problemas na região", disse o chanceler da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, depois de encontros com o presidente Hugo Chávez (Venezuela), anteontem, em Caracas, e com o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores), ontem, em Brasília.
O Itamaraty orientou o embaixador em Washington, Antonio Patriota, a questionar detalhes sobre a ampliação da presença nas três bases, em Malambo, Palanquero e Apiay.
Amorim cobra "transparência" e diz que o Brasil quer saber se o comando das operações ficará com os EUA ou com a Colômbia e se haverá ampliação no limite de até 800 militares e de até 600 civis norte-americanos acertado no chamado Plano Colômbia.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem em São Paulo, ao lado da colega chilena, Michelle Bachelet, que não lhe "agrada" a ideia de que os EUA ampliem a presença militar na Colômbia e defendeu que o acordo entre Washington e Bogotá, ainda em negociação, seja tratado na reunião da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) no Equador, no próximo dia 10.
Lula pediu que seja convocado o Conselho de Defesa da Unasul, criado no ano passado, para discutir o espinhoso tema de segurança nas fronteiras e o futuro acerto militar. Presidente pro-tempore do órgão multilateral, Bachelet, corroborou o chamado.
"Posso dizer que a mim não me agrada mais uma base na Colômbia. Mas como eu não gostaria que o [presidente da Colômbia, Álvaro] Uribe desse palpite nas coisas que eu faço no Brasil, eu prefiro não dar palpite nas coisas do Uribe", continuou o brasileiro. Ele disse preferir "conversar pessoalmente" com Uribe em Quito.
A presidente do Chile defendeu que é preciso chegar a um acordo "porque por certo há países que não estão tranquilos" com a negociação Washington-Bogotá.
Lula traçou paralelo entre o possível acordo dos EUA e a Colômbia e a Quarta Frota Naval americana, reativada no ano passado. O presidente lembrou que o Brasil havia dito a Washington, por carta, que "não via com bons olhos" a reativação da esquadra, comando naval responsável por todas as embarcações militares americanas nas águas da América Latina e do Caribe. O motivo, repetiu Lula, é que "a linha territorial dela [da esquadra] é quase em cima do nosso pré-sal".

Crise bilateral
No discurso do governo Álvaro Uribe, a Colômbia manterá o controle das três bases, que seguirão sendo de combate ao narcotráfico e com o efetivo estrangeiro dentro do limite já anteriormente estabelecido dentro do Plano Colômbia.
No entanto, alastra-se na América Latina e estende-se agora para a Europa, via Espanha, o temor de que o novo governo dos Estados Unidos esteja recuando no discurso antibelicista e anti-invasivo do presidente Barack Obama.
A percepção nos países sul-americanos, levada à Europa, é a de que o governo Obama está usando as bases na Colômbia para neutralizar a crescente aproximação da Venezuela de Chávez tanto com os russos, dos quais adquiriu equipamentos bélicos, quanto com o Irã -adversário de Washington.
Moratinos voou de Caracas para Brasília anteontem à noite para jantar com autoridades brasileiras, inclusive com o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Um dos temas foi a tensão Colômbia-Venezuela.
Garcia está indo para Caracas e para Bogotá como enviado de Lula para obter informações e tentar mediar o diálogo entre Chávez e Uribe. Ele vai tentar articular a ida de Chávez à Colômbia na semana que vem.
A Venezuela retirou na terça seu embaixador do país vizinho, depois de cobranças públicas para que explicasse o achado de armas do Exército venezuelano com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). O governo Chávez diz que a acusação é uma "cortina de fumaça" para desviar a atenção da discussão sobre as bases militares.

Retificação do edital do I Concurso de monografias de direito da UFF

O edital do I concurso de monografia de direito da UFF deve ser corrigido em vez de primeiro de abril de 2009 para primeiro de setembro de 2009 para a inscrição dos trabalhos

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Os Estados Unidos e o Terrorismo

Folha de São Paulo 30 de julho de 2009

EUA vão modificar seu enfoque contra o terror, diz secretária
Para chefe da pasta de Segurança Interna, o governo Obama vai precisar engajar a população no combate ao terrorismo

Janet Napolitano avalia que avanços tecnológicos exigem nova estratégia; "podemos estar mais preparados" que em 2001


Os EUA precisam do engajamento da população para combater o terrorismo, afirmou a secretária de Segurança Interna norte-americana, Janet Napolitano. Segundo ela, é necessária uma atuação conjunta de indivíduos, empresas, órgãos locais, governo federal e países aliados.
Em discurso, ela procurou mostrar que o governo de Barack Obama não deixa de lado os riscos de novos ataques terroristas. Disse que é preciso trocar o temor pela preparação para lidar com as ameaças e com o uso disseminado da tecnologia. Segundo ela, a ameaça terrorista persiste.
Em crítica indireta à política antiterror adotada pelo governo de George W. Bush (2001-2009), Napolitano afirmou que as consequências de viver em um estado de medo, em vez de um estado de prontidão, são enormes para o país.
"Nós podemos estar mais preparados como nação do que estávamos no 11 de Setembro. Mas não estamos nem perto do quanto deveríamos estar", disse, em evento no Council on Foreign Relations, um influente "think tank" de Washington de onde foram selecionados alguns integrantes da equipe do governo Obama.
Porém, com exceção do incentivo à participação da população, os programas mostram continuidade em relação ao governo Bush, sobretudo na questão do reforço das fronteiras. A "guerra ao terror" promovida pelo ex-presidente americano foi alvo de críticas durante as eleições.
Para a secretária, o governo não fez o suficiente para educar o povo americano. A estratégia do novo governo no combate ao terror será focada em quatro pontos: cooperação de países aliados, poder do governo federal, vigilância da polícia e fiscalização por parte dos cidadãos.

Tecnologia
Napolitano destacou que os terroristas têm agora a seu dispor um arsenal tecnológico muito mais amplo do que na época do 11 de Setembro.
Ela citou o ataque de Mumbai, em que foram usados sistemas de GPS, telefones por satélite, sites de mapeamento e TV a cabo. Para combater as ameaças, ela defendeu mais treinamento, tecnologia e compartilhamento de informação entre órgãos de segurança.
"Se o 11 de Setembro ocorreu em um mundo de web 1.0, os terroristas estão certamente em um mundo de web 2.0 agora", afirmou Napolitano. "Muitas das ferramentas tecnológicas que promovem a comunicação hoje ainda estavam em sua infância ou nem existiam ainda em 2001."
Para a secretária, o país precisa fazer com que as fronteiras se tornem "a última linha de defesa e não a primeira".
Os EUA negociam com aliados europeus o compartilhamento de informações com antecedência sobre viajantes

O TPI e o Brasil

Folha de São Paulo, quinta-feira, 30 de julho de 2009




Corte pede dados sobre atividades das Farc no Brasil

As suspeitas sobre o alcance das conexões internacionais da guerrilha colombiana vão muito além da Venezuela.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) está analisando indícios de que uma rede de apoio e financiamento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) atuaria em diversos países, entre eles o Brasil.
A informação foi confirmada à Folha pelo promotor-chefe do TPI, o argentino Luis Moreno-Ocampo, em recente passagem pela Suíça. Seu escritório enviou uma carta às autoridades brasileiras para saber se foi aberta investigação sobre as atividades da guerrilha no país.
Segundo o promotor, os indícios sobre as ações no Brasil aparecem em mensagens encontradas num dos computadores de Raúl Reyes, o número dois das Farc que foi morto num ataque do Exército colombiano a seu acampamento no Equador, no ano passado.
"Estamos avaliando o que está sendo feito na Colômbia e descobrimos que há conexões das Farc em outros países, inclusive no Brasil", disse o promotor, na cidade de Basileia.
No ano passado, o governo brasileiro negou qualquer envolvimento com as Farc depois que e-mails obtidos do computador de Raúl Reyes revelaram esforços da guerrilha em abrir um diálogo com PT e Planalto.
Moreno-Ocampo também confirmou que há suspeita de atividades de apoio às Farc em outros países, entre eles a Suíça, onde as Farc estariam usando os bancos locais para fazer lavagem de dinheiro oriundo de atividades criminosas.
O pedido de informação do TPI sobre as operações internacionais das Farc foi enviado a dez países, além de Brasil e Suíça: Colômbia, Venezuela, Equador, México, Costa Rica, Peru, Panamá, Nicarágua, Espanha e Dinamarca.
O embaixador do Brasil em Haia (Holanda), onde fica a sede do TPI, José Artur Denot Medeiros, confirmou que recebeu a comunicação no segundo semestre de 2008. Mas disse que ele não continha solicitação sobre dados específicos.
A Promotoria do TPI esclareceu que está no estágio de "análise". "Ainda não há uma decisão. O escritório está analisando se há base razoável para crer que foram cometidos crimes sob sua jurisdição", explicou Cornelia Schneider, assessora de Moreno-Ocampo.
Pelo Estatuto de Roma, que rege o TPI, o promotor pode pedir informações quando há suspeita de que foram cometidos os delitos que estão sob sua jurisdição: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.

MST e o Movimento Zapatista

Texto proveniente do Le Monde Diplomatique de autoria de Neblina Orrico.
Acessado em:
http://diplo.uol.com.br/2009-04,a2843

Movimentos sociais conectados: o MST e o Exército Zapatista
Os movimentos sociais do século 21 consolidaram suas identidades e afinaram os seus discursos na tentativa de conquistar a opinião pública. Nesse processo, o uso da Internet como instrumento estratégico para comunicação e para organização de suas luta tem sido fundamental.

Neblina Orrico

(28/04/2009)

O protagonismo social e político dos movimentos sociais na América Latina ganhou uma nova forma de expressão com a utilização da Internet como aliada e ferramenta de luta. Dois movimentos sociais fazem uso da rede mundial de computadores como arma estratégica: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, e o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), no México [1].

Por meio do uso da Internet, esses dois protagonistas disponibilizam informações divulgando a “sua versão” dos fatos e dos objetivos da sua luta, na tentativa de construir novos canais para uma nova sociabilidade [2].

Na construção do discurso dos sites “oficiais” dos dois movimentos foram desenvolvidas e utilizadas uma nova visão e uma nova representação das maneiras dos integrantes desses movimentos sociais lutarem por seus objetivos. Muitas vezes, esses sites – e todo o seu conteúdo – funcionam como principal instrumento de comunicação e como arma estratégica na elaboração das agendas dos movimentos sociais da atualidade. Funcionam ainda como contraponto ao discurso construído pelos meios de comunicação acerca das suas identidades. A construção de novos discursos que geram impactos na sociedade e se transformam em notícia é uma preocupação permanente da maioria dos movimentos sociais da atualidade, pois essa é uma maneira de legitimar suas ações e construir suas identidades.

Além disso, esses dois movimentos passaram a atuar em rede entre si e com outros atores sociais e construíram uma forma de luta, coordenando e conduzindo suas ações com o uso da Internet. Foram capazes de criar novas oportunidades de se apresentar ao mundo, de legitimar as ações, de divulgar as demandas pelas quais lutam, de pressionar os meios de comunicação tradicionais a noticiarem com menos parcialidade fatos ligados a eles e de eles próprios noticiarem fatos ligados às suas lutas.

Uma das características mais fortes do EZLN é a importância que seus membros dão para a opinião pública. Sabendo que as informações transmitidas na rede mundial de computadores podem chegar sem nenhum “tratamento” ao computador do público, os zapatistas têm o cuidado de utilizar uma comunicação estrategicamente transparente, uma linguagem simples e capaz de comunicar quem são e o que querem. Ela traz detalhes do dia-a-dia das comunidades zapatistas para o cotidiano das pessoas, ganhando a confiança de quem busca informações sobre eles de uma forma nunca antes feita por outros movimentos sociais latino-americanos.

Ao iniciar a utilização da internet como estratégia de luta, há mais ou menos seis anos, o MST também deu início a um “burilamento” de seu discurso, abandonando a sua velha tática discursiva para usar uma nova maneira de divulgar informações sobre o movimento para o resto da sociedade. Isso é consequência do processo de aquisição de identidade e consciência próprias pelo qual os trabalhadores e trabalhadores rurais sem-terra se afirmam como sujeitos sociais atuantes. Concomitantemente com o início da informatização do MST, foi iniciada a etapa de mostrar ao mundo que o movimento é integrado por pessoas altamente comprometidas com a luta pela democratização da terra no Brasil e não por arruaceiros, como tenta mostrar a mídia tradicional. Além disso, é preciso destacar a iniciativa do movimento de investir em um ambicioso projeto de inclusão digital dos trabalhadores rurais que já estão assentados. Para o MST, é importante que os camponeses e seus filhos tenham acesso às novas tecnologias como tentativa de incentivá-los a permanecer no campo, sem deixar de estarem informados sobre o que se passa no mundo.

O cotejo entre o discurso do MST e do EZLN mostrou que os dois movimentos sociais utilizam maneiras diferentes para atingir a sociedade por meio da rede mundial de computadores. O discurso emancipatório dos movimentos sociais, agora veiculado também pela internet, representa uma nova maneira de lutar pela mudança social. Enquanto os zapatistas preferem uma linguagem muito mais poética e metafórica, que resgata elementos da linguagem indígena dos Chiapas, mas que, mesmo assim, é simples e transparente, o MST investe na objetividade e em textos jornalísticos para alcançar o internauta. Numa época em que a linguagem adquiriu evidência e centralidade na constituição, manutenção e desenvolvimento das nossas sociedades, os sites dos movimentos se tornaram verdadeiros cartões de visita, apresentando e divulgado a bandeira de luta do movimento, seja pela realização da reforma agrária, seja por justiça social e por democracia. Graças à Internet, eles obtêm visibilidade pública e angariam simpatizantes que se tornam adeptos das suas bandeiras de luta e apoiam suas causas.

As análises sobre os movimentos sociais constituídos no fim do século passado ou mesmo no início deste século devem necessariamente levar em consideração que esses novos movimentos sociais do século 21 aprenderam a utilizar a internet como ferramenta para criar novas conexões que buscam diminuir as fronteiras entre eles e a sociedade, vinculando a sua luta particular a uma luta maior contra as velhas e as novas formas de dominação. Atualmente, os movimentos sociais tentam mudar a realidade social, contribuindo com a (re)construção de uma simetria das relações de poder por meio do discurso divulgado em suas páginas de internet.


[1] As constatações deste artigo são resultado de uma pesquisa qualitativa, feita em 2005, que analisou textos virtuais e entrevistas com representantes dos dois movimentos em questão para a realização da dissertação de mestrado Movimentos sociais e a internet da mesma autora.

[2] Lévy (1999, p. 256)

quarta-feira, 29 de julho de 2009

I Concurso de monografias de Direito da UFF

Aproveitamos para divulgar que o edital para 4° edição encontra-se aberto para receber novos textos até o dia 1° de abril. Disponível em
http://www.uff.br/rdm/eventos.php. Foi a informação dada pelo graduando de direito da uff Siddharta Legale Ferreira

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O movimento em Agamben

Tradução portuguesa da intervenção feita por Giorgio AGAMBEN, em italiano, em encontro realizado emVeneza. Audio acessado em junho de 2005: http://www.globalproject.info/IMG/mp3/03_agamben.mp3.
Conservou-se em geral, na tradução portuguesa, o estilo da intervenção falada, embora se tenha cotejado áudio em italiano com a transcrição feita e traduzida para o inglês – por Arianna Bove - acessada, emagosto de 2005, na revista eletrônica Multitudes: http://multitudes.samidzat.net/article.php3?id_article=1914

Também presente no site: http://brigadasinternacionais.blogspot.com/2007/04/texto-de-giorgio-agamben270407.html

Texto

As reflexões que farei hoje nascem de um mal-estar, ou melhor, de uma série de
perguntas que me pus, assistindo, há algum tempo atrás, em Veneza, a um encontro em
que estavam presentes algumas pessoas que também estão aqui hoje (Toni, Casarini...).
Um termo era repetidamente usado pelos que falavam e discutiam: era o termo “movimento”. Trata-se de um termo que, em nossa tradição, tem uma longa história. Mesmo hoje, na intervenção de Toni (Negri), o termo movimento parece ter sido o mais recorrente. Também no seu livro tem uma posição estratégica, toda vez que se trata de definir o termo multidão, por exemplo, para escapar da falsa alternativa entre soberania e anarquia. De onde vinha meu mal-estar, que se repete também hoje? Do fato de me dar conta, pela primeira vez, de que este termo nunca era definido. Quem o usava provavelmente não o poderia definir, ou em todo caso, nunca o definia. Eu mesmo não o teria conseguido definir. No passado muitas vezes me servi, como regra implícita de minha prática de pensamento, da fórmula: quando há movimento, fazer como se não
houvesse, e quando não há movimento, fazer como se houvesse. Agora me dou conta de
que não sabia o que significava o termo movimento, para além de toda a sua genericidade. Trata-se de um termo que todos acham que entendem, mas que não se define. Por exemplo: de onde provinha este termo? Por que se passa em certo momento a chamar movimento uma instância política decisiva? Assim, as considerações que faço
hoje nascem da consciência de que não era possível deixar indefinido esse termo, esse conceito. Devemos pensar o movimento porque o conceito é de algum modo o nosso
impensado, que, por isso mesmo, corre o risco de comprometer eventualmente nossas
escolhas e nossas
estratégias. Não é apenas um escrúpulo filológico, ou porque a
terminologia é o momento poético e, portanto, produtivo do pensamento, ou porque o meu trabalho consiste em definir conceitos, o que por hábito costumo fazer, mas porque o uso a-crítico de certos conceitos pode ser responsável de muitas derrotas. Lembro que estou apenas no início de uma pesquisa sobre este conceito, e por isso hoje quero apenas plantar algumas balizas, que poderiam servir para endereçar a investigação futura.
Em primeiro lugar, alguns dados históricos banais: o conceito de movimento, que nas ciências e na filosofia tem uma longa história, por sua vez adquire na política um significado técnicorelevante apenas no século XIX.. Um dos primeiros aparecimentos ocorre na Revolução de julho de 1830 na França, na qual os defensores de mudança se denominavam do “partie du mouvement” e os seus adversários do “partie de l’ordre”. De modo breve, talvez só com Lorenz von Stein, autor que, como se sabe, influenciou tanto Marx quanto Carl Schmitt, que este conceito se torna mais preciso e começa a definir um âmbito estratégico de aplicação. Na sua História do Movimento Social na França (1850), Von Stein joga a noção de movimento em contraposição dialética à noção de Estado. O Estado é o elemento estático, legal, enquanto o movimento é a expressão das forças dinâmicas da sociedade. Dessa forma, o movimento é sempre movimento social, em antagonismo com o Estado, e expressa o primado dinâmico da sociedade sobre as instituições jurídicas e estatais. Assim, nem sequer Von Stein define o que entende por movimento; ele atribui a ele uma dinâmica e descreve sua função, mas não lhe dá uma definição nem uma tópica. Algumas indicações interessantes sobre a história dos movimentos podem ser encontradas no livro de Arendt sobre o totalitarismo. Mas também nele o termo acaba não sendo definido. Ou seja, todos sabem o que é, mas ninguém o define. O que Arendt mostra é que por volta da Primeira Guerra Mundial, imediatamente antes e imediatamente depois, os movimentos adquirem na Europa um desenvolvimento extraordinário, mas agora em contraposição aos partidos. Por volta da primeira Guerra Mundial, os
movimentos estendem sua influência em contraposição estratégica contra os partidos.
Assiste-se então a uma verdadeira explosão do conceito e do fenômeno do movimento. Tal terminologia é usada tanto pela direita quanto pela esquerda: Fascismo e Nazismo sempre se definem como movimentos, e só secundariamente como partidos. De toda forma, trata-se de um termo que neste momento ultrapassa o âmbito
político. Muitas pessoas conhecem a importância que, nesse momento, têm na própria formação o Jugendbewegung (movimento de juventude). Para dar um exemplo de fora da política: quando Freud, em 1914, pretende escrever um texto para definir o que é isso, a psicanálise, ele não a define nem como escola, nem como instituição, e nem como disciplina, mas como “movimento psicanalítico”. Mas também aqui não aparece uma
definição. De toda forma, se percebe claramente que há em determinados momentos históricos palavras e conceitos que se impõem como palavras de ordem irresistíveis, que são adotadas por posições antagônicas, sem que, porém, nunca se exija uma definição. O ponto perturbador desta minha pesquisa, o ponto em que se evidencia a cegueira deste conceito, é me ter dado conta que o único que havia tentado definir no âmbito político e também jurídico este termo foi um jurista nazista: Carl Schmitt. No ensaio de 1933, intitulado “Staat, Bewegung, Volk” (Estado, Movimento, Povo), e cujo subtítulo é Die Dreigliederung der politischen Einheit (A tripartição da unidade política), Schmitt procura definir claramente a função político-constitucional da noção de movimento. O que é perturbador é o fato de Schmitt querer definir nesse ensaio a estrutura constitucional do Reich nazista. Trata-se de definir o que ele denomina “heutige Verfassunglage”, ou seja, a situação constitucional do Estado nacional-socialista. Eis um breve resumo das teses de
Schmitt. Parece-me que esta promiscuidade terminológica com um pensador do nazismo exige clareza e lucidez. Portanto, sem uma análise dessa promiscuidade, no caso da análise como a de Schmitt, não é possível esclarecer e sair dessa promiscuidade. Segundo Schmitt, a política do Reich nazista se funda sobre três elementos ou membros: Estado, movimento e povo. Por conseguinte, a articulação constitucional do Reich nazista é resultado da articulação e da distinção desses três elementos. O primeiro elemento é o Estado - declara Schmitt – e importa prestar atenção na definição que ele dá: o Estado é a parte política estática. Trata-se do aparato das repartições. O povo –


preste-se também atenção – é o elemento impolítico, não político, (unpolistisch), que cresce à sombra e sob a proteção do movimento. O movimento, por sua vez, é o verdadeiro elemento político, elemento político dinâmico, que encontra a sua forma específica na relação com o Partido Nacional
Socialista, com a direção (Führung). Importante é que para Schmitt o próprio Führer não é senão a personificação do movimento. Gostaria ainda de falar sobre as implicações dessa tripartição, que, segundo
Schmitt, também está presente no aparato
constitucional do Estado soviético. Uma primeira consideração importante, rica de conseqüências, é a seguinte: o primado da noção de movimento é função do fato de o povo se tornar impolítico (insistimos que o povo é o elemento impolítico que cresce à sombra e sob a proteção do movimento...). Portanto, eis a primeira conseqüência importante: o movimento torna-se o conceito político decisivo quando o conceito democrático de povo, como corpo político, já está ultrapassado. Isso talvez hoje não nos deixe surpresos, mas se pode dizer que a democracia acaba quando nascem os movimentos. Em sentido substancial, não existem movimentos democráticos (entendendo aqui por democracia aquela tradição que vê no povo o seu elemento político constitutivo – se de fato a democracia possa ou não repousar sobre o conceito de povo, isso é outro problema...). Esse pressuposto – o de que os movimentos estabelecem o fim do conceito de povo como corpo político – parece
ser compartilhado tanto pela tradição revolucionária da esquerda, quanto pelo fascismo e
pelo nazismo. Não é por acaso que pensadores políticos contemporâneos, como Toni (Negri), procuram pensar o novo corpo político recorrendo a outras noções, como multidão, e não à de povo. Em Hobbes, a noção de multidão também aparece contraposta à noção de povo. Para mim também é significativo que em volta de Jesus não há nunca laos nem demos (termos técnicos no grego para “povo”), mas apenas oclos (uma massa, uma “turba”, conforme a tradução de São Jerônimo, uma multidão). Em volta de Jesus nunca há povo, mas somente multidão. Portanto, o conceito de movimento pressupõe o eclipse do conceito democrático de povo como sujeito político constitutivo, como corpo político. Esta é a primeira conseqüência do uso do termo movimento. E nisso concordam nazismo e fascismo: estes nascem da consciência de que o conceito de povo como corpo político está ultrapassado. A segunda conseqüência desse conceito schmittiano de movimento é a de que o povo é um elemento impolítico cujo crescimento o movimento precisa proteger e sustentar (Schmitt usa o termo “wachsen”, que tem a ver com crescimento biológico, de plantas e animais). Conforme declara Schmitt, isso corresponde não à esfera não política do povo, mas à esfera impolítica da administração (Selbstverwaltung). Schmitt lembra também o estado corporativo fascista. Olhando as coisas com os olhos de hoje, parece que não se pode deixar de ver - nessa determinação do povo como elemento não-político - o implícito reconhecimento, que Schmitt nunca ousa articular, do seu caráter biopolítico. O povo, deixa de ser corpo político constitutivo, e se transformou em população, ou seja, em entidade demográfico-biológica, e, como tal, impolítica. Uma entidade que o movimento deve sustentar, proteger e fazer crescer. Quando, durante o século XIX, o povo se transforma de entidade política em entidade demográfica e biológica, em populações, o movimento se torna uma necessidade. Disso também devemos ter consciência: vivemos em uma época na qual a transformação do povo em população, de uma entidade política em entidade demográfica, é um fato cabal. O povo hoje é uma realidade biopolítica, no sentido de Foucault, no sentido restrito do termo, e é essa transformação biopolítica do antigo sujeito político, que torna necessário o conceito de movimento. Se, porventura, quisermos pensar de forma diferente o conceito de biopolítica, como o faz Toni (Negri), mesmo que em perspectiva diferente, e da qual eu me sinto muito próximo, se quisermos, pois, pensar a intrínseca politicidade do biopolítico – se o elemento biopolítico é visto como político desde sempre , e por isso não precisa ser politizado através do movimento ¾ então precisaremos repensar, desde a raiz, o conceito de movimento. Não poderemos usar a-criticamente o conceito de movimento se, por exemplo, quisermos pensar a
politicidade do elemento biopolítico. Tal trabalho de definição torna-se necessário também porque, continuando a ler o texto de Schmitt, verificamos como aparecem, a partir do conceito de movimento, aporias especialmente ameaçadoras. Se, na perspectiva de Schmitt, o elemento político determinante, se o elemento político autônomo é o movimento, e se o povo, por sua vez,
é um elemento impolítico, então o movimento só poderá encontrar sua politicidade na
medida em que sinalizar no corpo biopolítico do povo para cesuras internas que permitam
a sua politicização. Essa cesura é denominada por Schmitt de identidade de espécie, ou
seja, racismo. Podemos verificar que aqui Schmitt alcança a máxima identificação com o



racismo e a máxima co-responsabilidade com o nazismo. Isso é um fato e, ao mesmo tempo nos devemos dar conta de que essa escolha, a de ser obrigado a identificar uma cesura, no corpo impolítico do povo, é a conseqüência imediata da sua concepção da função do movimento. Se o elemento político não for o povo, mas o movimento como entidade autônoma, de onde o movimento pode tirar sua politicidade? A politicidade do movimento poderá basear-se unicamente na sua capacidade de identificar no interior do povo um inimigo, ou seja, um elemento racialmente estranho – no caso de Schmitt. Onde há movimento sempre haverá uma cesura que corta o povo, que divide o povo, nesse caso identificando um inimigo. Eis porque me parece tão urgente repensar o conceito de movimento, e esclarecer a sua relação com o de povo e de multidão. Em Schmitt vemos
que o elemento excluído do movimento como impolítico volta a apresentar-se como aquilo que precisa, cada vez, ser decidido; trata-se de um decisão política sobre o impolítico, sobre o que é impolítico no político. Em Schmitt, o movimento é um órgão que decide sobre o impolítico. É uma decisão política sobre o impolítico. Isso pode ter a forma de uma cesura étnica ou racial, mas também, como acontece hoje, a forma de indicar uma tarefa de gestão e de governo daquele elemento impolítico que são as populações, o corpo biológico da humanidade, dos povos, que o poder hoje deve governar. Há algumas perguntas que hoje se põem para nós. Em primeiro lugar: devemos continuar usando o conceito de movimento, ou devemos abandoná-lo? Se, por exemplo, o conceito de movimento sinaliza para uma espécie de politização do impolítico, poderia acontecer um movimento que fosse diferente, por exemplo, de uma guerra civil? Ou então, outra pergunta: em que direção poderíamos repensar o conceito de movimento e sua relação com o biopolítico? Com esta pergunta gostaria de terminar. Não darei aqui uma resposta, para uma pesquisa que tomará muito tempo, mas gostaria apenas de dar algumas indicações de horizonte, para onde nos podemos movimentar ou onde podemos pesquisar.


Sabemos que o conceito de movimento é o conceito central no pensamento de Aristóteles. No interior do seu pensamento, o conceito de movimento, kinesis, cumpre uma função estratégica num âmbito muito importante, como o da relação entre potência e ato. Aristóteles apresenta uma definição muito interessante: movimento é o ato de uma potência enquanto potência, mais do que uma passagem para o ato. Noutro lugar ele afirma que o movimento é um ato imperfeito, ateles, que não se possui no seu fim, que não tem fim. Neste caso, sugeriria uma pequena modificação em Aristóteles, que vai numa direção - entre as muitas diferenças que nos opõem - que Toni poderia compartilhar comigo: o movimento é a constituição de uma potência enquanto potência. Mas se isso for verdade, então nunca conseguiremos pensar que o movimento seja externo ou autônomo em relação à multidão, ao povo. Assim, o movimento nunca poderá ser sujeito de uma decisão, organização, direção do povo, ou nunca poderá ser elemento de politicização da multidão ou do povo. Outra coisa que me parece interessante em Aristóteles é que o movimento é um ato ao qual falta um fim, ateles, incompleto, in-finito, no sentido de lhe faltar um telos. Isso significa que o movimento se mantém numa relação essencial com uma privação, com uma ausência de telos, com uma imperfeição. Movimento é sempre, constitutivamente, relação com o próprio faltar, com a própria ausência de um ergon, de um telos e também de uma obra. Aquilo sobre o que nunca estou de acordo com Toni é a ênfase posta na produtividade. Há que reivindicar também a inoperosidade, a ausência de obra como
elemento central... Por conseguinte, o movimento é algo que nunca se possui em um
ergon, em um telos, em uma obra. Movimento expressa nesta perspectiva a impossibilidade de um telos, de um ergon, ou de um fim de uma obra para a política. Movimento significa precisamente o fato de ser indefinida (indefinitezza) e a imperfeição de toda política. Nesse sentido, o movimento deixa sempre um resíduo. Sob esta perspectiva, o mote que havia citado inicialmente, e que servia de regra interna para o meu pensamento - quando há movimento, fazer como se não houvesse; e quando não há movimento, fazer como se houvesse – poderia ser reformulado, em sentido ontológico, da seguinte maneira: o movimento é aquilo que, se existe, é como se não existisse, ele falta a si mesmo (manca a se stesso), e quando não existe, é como se existisse, excede a si mesmo (eccede a se stesso). Há, pois, um umbral de indeterminação entre o excesso e a falta que marca o limite e o resíduo de qualquer política na sua constitutiva imperfeição.

Luc Ferry e a crise econômica

Folha de São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 2009




ENTREVISTA DA 2ª - LUC FERRY

"Crise mostra impotência pública atual de políticos"
Para pensador francês, globalização gerou "desapropriação democrática"

A CRISE ECONÔMICA mostra que os dirigentes políticos sofreram nos últimos anos uma "desapropriação democrática" gerada pela globalização, e por isso estão hoje relegados à condição de "impotência pública".
A opinião é de um dos maiores pensadores europeus, o filósofo e intelectual francês Luc Ferry, que fala com a autoridade de quem atuou tanto na esfera acadêmica como no setor privado e no governo.
Antes de chefiar um grupo de reflexão socioeconômica no governo do presidente Nicolas Sarkozy, deu aulas na prestigiosa École Normale Supérieure, foi consultor de multinacional e ministro da Educação entre 2002 e 2004, no governo Jacques Chirac

Em entrevista à Folha por e-mail, Luc Ferry previu um fortalecimento das instâncias de governo e traçou semelhanças entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu colega francês, Nicolas Sarkozy, e o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. O filósofo também rebateu críticas de que teria se alienado ao vestir a camisa de um governo.






FOLHA - O sr. crê que a globalização mudou a maneira de governar e de fazer política?
LUC FERRY - Sim. No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra. É o que eu chamo de desapropriação democrática. Há 50 anos essas interrogações não existiam, e as políticas funcionavam num plano essencialmente nacional.

FOLHA - O sr. acredita que as instâncias de governo sairão fortalecidas da atual crise econômica global?
FERRY - Sim, claro. Isso será necessário para resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico. É esse o grande desafio do G20 [grupo das 20 maiores economias do mundo], e é por isso que o grupo tem um longo caminho pela frente.

FOLHA - A crise revelou alguma falha estrutural no funcionamento das sociedades modernas?
FERRY - Antes de mais nada, é preciso refletir sobre a natureza da crise, pois há muita besteira sendo contada por aí. Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma "boa economia", a economia "real" e uma economia "ruim", a economia especulativa, não resiste à análise. Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam. Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos "subprimes". A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco. Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura. É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real. O que é evidentemente bem mais grave...

FOLHA - Como o sr. explica o fato de Lula, mesmo após dois mandatos repletos de denúncias contra seu partido e seus aliados, ainda ter popularidade tão alta?
FERRY - Pode se dizer a mesma coisa de [Silvio] Berlusconi na Itália ou de [Nicolas] Sarkozy na França. Boa parte da imprensa os vive criticando, e mesmo assim ganham eleições. De onde vem essa defasagem entre a população e a imprensa? A mídia, na sua essência, precisa ser crítica. Como se diz na França, não se pode escrever uma boa matéria para falar dos trens que chegam na hora. Esse é, de fato, o papel da mídia, mas isso pode acabar a distanciando do povo. A população não tem a obrigação de sempre criticar e, paradoxalmente, às vezes entende melhor que os observadores profissionais a dificuldade de ser político.

FOLHA - O que o sr. acha dos presidentes Sarkozy e Barack Obama, que divulgam abertamente sua vida privada?
FERRY - É antes de mais nada um bom tema de reflexão para os jornalistas. Afinal de contas, são eles que correm atrás dos furos relacionados à vida privada dos políticos. O público adora e dá audiência, só isso.

FOLHA - Como o sr. avalia a onda de esperança global gerada pela chegada ao poder de Obama?
FERRY - Há 50 anos, Obama nem sequer teria sido aceito em uma universidade em seu país. E hoje ele é presidente. É normal que essa mudança absoluta exerça um fascínio, não? A esperança é formidável, éramos milhões a contar os dias para a saída de [George W.] Bush. Afinal, Obama vem de uma família de muçulmanos, o que significa que ele pode melhor do que ninguém ajudar a evitar o famoso conflito de civilizações, principal ameaça que pesa sobre o século 21.

FOLHA - O debate sobre a burca [véu muçulmano que cobre inteiramente o corpo da mulher] na França traz à tona a questão do relativismo cultural: impor um modo de pensar como sendo melhor que outro não contribui para acirrar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington?
FERRY - Muita gente atribui um monte de besteiras a Samuel Huntington sem ter lido seu livro ("O Choque das Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial"), que na verdade é ótimo. Em primeiro lugar, ele nunca estimulou o choque de civilizações, muito pelo contrário. Ele sempre recomendou que o governo americano praticasse o diálogo e a moderação diante do islã. Huntington inclusive se opôs à Guerra do Iraque. Mas é fato que existe, sim, um verdadeiro choque com o islã radical, e a burca, ao contrário de uma opinião comum totalmente errada, não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos.

FOLHA - Um filósofo que, como o senhor, se associa a um governo não acaba perdendo sua liberdade de pensar e falar?
FERRY - Enquanto se é membro de um governo, é preciso ater-se ao princípio de solidariedade, o que obviamente ofusca a liberdade de expressão. Mas ninguém é obrigado a entrar num governo, nem a ficar nele. Nada impede de ir embora, mas quando se decide permanecer, é preciso ser coerente com seu compromisso.
Muitos pensadores franceses, inclusive alguns dos maiores, como [Alexis de] Tocqueville, [André] Malraux e Victor Hugo encararam esse desafio inerente à vida política. Por quê? Simplesmente porque aquele que não se compromete pode se gabar de ter mãos puras, mas na verdade ele não tem mãos. Tenho paixão por filosofia, é sem sombra de dúvida a vocação da minha vida.
Mas eu não poderia ter passado a vida inteira como professor de universidade sem ter a curiosidade de observar de perto a realidade histórica e sem participar, ainda que modestamente, da construção da história. É apaixonante, e aprende-se muito sobre a realidade, da qual o filósofo jamais deve se afastar.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Flavia Piovesan e os Direitos Humanos

Folha de São Paulo, sexta-feira, 24 de julho de 2009




Por uma nova arquitetura global
FLÁVIA PIOVESAN


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Em uma arena cada vez mais complexa, fundamental é avançar na afirmação da justiça global nos campos social, econômico e político
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O S PAÍSES ricos decidiram expandir a cúpula do G8 (EUA, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Rússia) para incluir as economias emergentes, transformando-o em G14 (com a adição de Brasil, Índia, China, África do Sul, México e Egito), com vistas a fortalecer a "governança global".
No dizer de Sarkozy: "Parece pouco razoável tratar das mais importantes questões internacionais sem a África, a América Latina e a China". Para Obama, é inadmissível enfrentar os desafios globais "sem a representação adequada de continentes inteiros como a África e a América Latina nos fóruns internacionais". Atualmente, cerca de 80% da população mundial vive em países em desenvolvimento. Dois deles -Índia e China- totalizam quase um um terço da população mundial.
Contudo, os 15% mais ricos concentram 85% da renda mundial, enquanto os 85% mais pobres detêm apenas 15%, sendo a pobreza a principal causa mortis do mundo. O próprio FMI, na voz de Michel Camdessus, já advertiu que "a pobreza é uma ameaça sistêmica fundamental à estabilidade em um mundo que se globaliza".
Instaura-se um círculo vicioso em que a desigualdade econômica fomenta a desigualdade política no exercício do poder no plano internacional e vice-versa. Atente-se para o fato de que 48% do poder de voto no FMI concentra-se em sete Estados (EUA, Japão, França, Reino Unido, Arábia Saudita, China e Rússia) e, no Banco Mundial, 46% do poder de voto concentra-se nesses mesmos Estados.
Há que fortalecer a democratização, a transparência e a "accountability" dessas instituições, ecoando a voz dos países em desenvolvimento. Esse mesmo imperativo é lançado à ONU, criada em 1945, na geopolítica do pós-guerra, da qual participavam em média 60 Estados -hoje a ordem internacional conta com quase 200.
Daí a necessidade de revitalizar o papel das Nações Unidas e assegurar aos seus órgãos (principalmente ao Conselho de Segurança) maiores legitimidade e representatividade.
Além de ter de assegurar espaços decisórios mais democráticos, a agenda internacional enfrenta um desafio central: garantir o direito ao desenvolvimento, em sua dimensão nacional e internacional, o que envolve: a) a proteção às necessidades básicas de justiça social; b) o componente democrático na formulação e implementação de políticas públicas; e c) a adoção de políticas nacionais, bem como de cooperação internacional.
Observa Thomas Pogge que, "em 2000, os países ricos gastaram cerca de US$ 4,650 bilhões em assistência ao desenvolvimento aos países pobres. Contudo, venderam aos países em desenvolvimento aproximadamente US$ 25,438 bilhões em armamentos -o que representa 69% do total do comércio internacional de armas. Os maiores vendedores de armas são: EUA (com mais de 50% das vendas), Rússia, França, Alemanha e Reino Unido".
No mesmo sentido, afirma Amartya Sen: "Os principais vendedores de armamentos no mercado global são os países do G8, responsáveis por 84% da venda de armas no período de 1998 a 2003. (...) Os EUA, sozinhos, foram responsáveis pela venda de metade das armas comercializadas no mercado global, e dois terços dessas exportações foram direcionadas aos países em desenvolvimento".
Esses desafios se inserem em um momento estratégico, marcado não apenas pela reinvenção da arquitetura internacional mas também por uma política renovada no campo das relações internacionais por parte da única superpotência mundial.
Se a era Bush adotou como vértice uma política internacional guiada pelo unilateralismo extremo, pelo direito da força e pelo "hard power", a era Obama aponta a uma política internacional guiada pelo "clever power", a propiciar o multilateralismo e o diálogo intercultural, transitando da ideia do "choque civilizatório" para a ideia do "diálogo civilizatório".
Desenvolvimento, segurança, democracia e direitos humanos são termos inderdependentes e inter-relacionados. Em uma arena cada vez mais complexa, fundamental é avançar na afirmação da justiça global nos campos social, econômico e político, a compor uma nova arquitetura capaz de responder aos desafios da agenda contemporânea, da nova dinâmica de poder no âmbito internacional e da necessária transformação das organizações internacionais, em um crescente quadro de responsabilidades compartilhadas.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Texto de Agamben

Outro texto de Agamben, aparentemente antigo, mas com conceitos fundamentais para compreensão da realidade contemporânea.

Martes 20 de enero de 2004 Año VII N° 2850
TRIBUNA

El control que EE.UU. acaba de imponer a todos los extranjeros que ingresan al país no sólo implica una situación jurídico-política humillante, sino que aleja a los hombres de Atenas y los acerca a Auschwitz.

La humanidad, clase peligrosa
Giorgio Agamben.

Los diarios no dejan lugar a duda: quien, de ahora en más, vaya a Estados Unidos con una visa será fichado y deberá dejar sus huellas digitales al entrar al país. Personalmente, no tengo ninguna intención de someterme a tales procedimientos y es por eso que anulé, de inmediato, el curso que debía iniciar en marzo en la Universidad de Nueva York.
Me gustaría explicar aquí la razón de esta decisión, es decir, por qué, a pesar del cariño que me une desde hace varios años a mis colegas norteamericanos y a sus alumnos, considero que esta decisión es necesaria y a la vez inapelable y me gustaría que fuera compartida por otros intelectuales y profesores europeos.
No se trata solamente de una reacción epidérmica frente a un procedimiento que se impuso, durante mucho tiempo, a criminales y acusados políticos. Si sólo se tratara de eso, es obvio que podríamos aceptar moralmente el hecho de compartir, por solidaridad, las condiciones humillantes a las que son sometidos hoy tantos seres humanos.
Pero eso no es lo esencial. El problema excede los límites de la sensibilidad personal y tiene que ver, simplemente, con la condición jurídico-política (tal vez sería más sencillo decir biopolítica) de los ciudadanos en los Estados supuestamente democráticos en los que vivimos.
Desde hace algunos años, intentan convencernos de que debemos aceptar, como dimensiones humanas y normales de nuestra existencia, prácticas de control que siempre habían sido consideradas excepcionales y verdaderamente inhumanas.
Nadie ignora, entonces, que el control ejercido por el Estado sobre los individuos a través del uso de dispositivos electrónicos, como las tarjetas de crédito o los teléfonos celulares, alcanzó límites hasta no hace mucho insospechados.
Sin embargo, es imposible traspasar ciertos umbrales en el control y la manipulación del cuerpo sin ingresar en una nueva era biopolítica, sin avanzar un paso más hacia lo que Michel Foucault llamaba una animalización progresiva del hombre implementada a través de las técnicas más sofisticadas.
El fichaje electrónico de las huellas digitales y de la retina, el tatuaje subcutáneo así como otras prácticas de la misma índole son elementos que contribuyen a definir este umbral. Las razones de seguridad que se invocan para justificarlas no deben impresionarnos. La historia nos enseña que las prácticas que en un principio estaban reservadas a los extranjeros luego se aplican al conjunto de los ciudadanos.
Lo que está en juego aquí no es nada menos que la nueva relación biopolítica "normal" entre los ciudadanos y el Estado. Esta relación ya no tiene más que ver con la participación libre y activa en la esfera pública, sino que concierne a la inscripción y al fichaje del elemento más privado y más incomunicable de la subjetividad: me refiero a la vida biológica del cuerpo.
A los dispositivos mediáticos que controlan y manipulan la palabra pública se suman así los dispositivos tecnológicos que inscriben e identifican la vida desnuda: entre estos dos extremos de una palabra sin cuerpo y de un cuerpo sin palabra, el espacio de lo que antes llamábamos política es cada vez más reducido.
De esta manera, al aplicar al ciudadano, o más bien al ser humano, las técnicas y los dispositivos que habían inventado para las clases peligrosas, los Estados, que deberían representar el lugar mismo de la vida política, lo convirtieron en el sospechoso por excelencia, al punto que es la humanidad misma la que se transformó en la clase peligrosa.
Hace algunos años, había escrito que el paradigma político de Occidente ya no era la ciudad, sino el campo de concentración, y que habíamos pasado de Atenas a Auschwitz. Se trataba de una tesis filosófica y no de un relato histórico, ya que no hay que confundir fenómenos.
Me gustaría sugerir que el tatuaje había surgido en Auschiwtz como la manera más normal y más económica de reglamentar el registro de los deportados en los campos de concentración. El tatuaje biopolítico que hoy nos impone Estados Unidos para ingresar en su territorio bien podría ser el signo precursor de lo que nos pedirán aceptar más adelante como la inscripción normal de la identidad del buen ciudadano en los mecanismos y los engranajes del Estado. Es por eso que hay que oponerse.

(Copyright Clarín y Le Monde, 2004. Traducción de Claudia Martínez.)

A Convenção de Viena de tratados entra em vigor

Notícia proveniente do jornal Valor Econômico.

A Convenção de Viena de tratados entra em vigor
Valor Economico de 22 de julho de 2009
Convenção sobre tratados deve entrar em vigor
Quarenta anos após ser assinada, a Convenção de Viena está prestes a ser adotada pelo Brasil. Espécie de "tratado sobre tratados", a norma, que disciplina a forma como os acordos internacionais devem ser internalizados nos países signatários, foi aprovada pelo Senado Federal e publicada no dia 20 no Diário Oficial da União na forma do Decreto nº 436, que agora aguarda a sanção presidencial. Apesar de a convenção ditar regras para os tratados de forma geral, um de seus principais impactos poderá ocorrer no campo tributário - em outras palavras, na forma como os acordos internacionais que impedem a bitributação dos quais o Brasil é signatário são cumpridos no país.

A Convenção de Viena determina que as leis internas de um país não podem permitir o descumprimento de um tratado internacional do qual ele seja signatário. No Poder Judiciário, no entanto, não é pacífico o entendimento de que os acordos internacionais seriam superiores às leis ordinárias no julgamento de disputas que os colocam em confronto. Em 2001, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que os tratados ou convenções internacionais, uma vez incorporados no país, possuem a mesma validade e autoridade que a legislação ordinária - e, portanto, estão submetidos à Constituição Federal. A decisão foi dada durante o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) nº 1.480, que contestava a adoção da Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que protege o trabalhador contra demissões arbitrárias.

A hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, no entanto, deve ser analisada novamente pelo Supremo em um recurso que, desta vez, envolve uma matéria tributária. A corte deve se posicionar sobre a supremacia de acordos internacionais que impedem a dupla tributação em casos de serviços prestados por empresas brasileiras ao exterior. O tema será analisado no julgamento de um recurso ajuizado pela União contra uma empresa do setor de veículos. Relatado pelo presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, o recurso da União questiona uma decisão proferida em 2004 pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a tributação de dividendos enviados a uma empresa no exterior. A disputa se dá porque as empresas entendem que, conforme estabelecem os acordos internacionais, o pagamento pela prestação de serviços para o exterior só poderia ser tributado no país que solicitou a demanda - a argumentação se baseia no artigo 98 do Código Tributário Nacional (CTN), pelo qual os tratados internacionais podem revogar ou modificar a legislação tributária interna e devem ser observados nas legislações posteriores à sua adoção. A Receita Federal do Brasil, no entanto, entende que deve incidir Imposto de Renda (IR) sobre o montante. No caso que chegou ao Supremo, o STJ decidiu pela supremacia de um tratado internacional -- assinado entre o Brasil e a Suécia contra a dupla tributação - sobre as leis ordinárias brasileiras, "sob pena de se desvalorizar as relações internacionais e a convivência entre os países".

A expectativa dos tributaristas é a de que, com a adoção da Convenção de Viena, a corte adote a postura favorável aos contribuintes no julgamento do tema. De acordo com o advogado Sergio André Rocha, do escritório Barbosa, Müssnich e Aragão Advogados, o Brasil possui 28 tratados internacionais envolvendo a dupla tributação, e a assinatura da convenção daria suporte para que se desenvolva uma nova jurisprudência de aplicação do direito internacional em matéria tributária. Ao contrário de muitos países, o Brasil raramente usa os tratados internacionais em julgamentos da área tributária", diz Rocha. Para a advogada Angela Bordim Martinelli, do Celso Botelho de Moraes, a adoção da convenção, aliada a uma nova composição da corte, pode fazer com que o Supremo adote uma postura favorável aos contribuintes em julgamentos como esse.

Texto de Agamben

Segue abaixo texto de Agamben de uma palestra dada em 1995

WE REFUGEES
1. IN 1943, IN A SMALL JEWISH PERIODICAL, The Menorah Journal., Hannah
Arendt published an article titled "We Refugees." In this brief but important
essay, after sketching a polemical portrait of Mr. Cohn, the assimilated Jew
who had been 150 percent German. 150 percent Viennese, and 150 percent
French but finally realizes bitterly that "on ne parvient pas deux fois," Arendt
overturns the condition of refugee and person without a country—in which
she herself was living—in order to propose this condition as the paradigm of
a new historical consciousness. The refugee who has lost all rights, yet stops
wanting to be assimilated al any cost to a new national identity so as to contemplate
his condition lucidly, receives, in exchange for certain unpopularity,
an inestimable advantage: "For him history is no longer a closed book, and
politics ceases to be the privilege of the Gentiles. He knows that the banishment
of the Jewish people in Europe was followed immediately by that of the
majority of the European peoples. Refugees expelled from one country to the
next represent the avant-garde of their people."
It is worth reflecting on the sense of this analysis, which today, precisely
fifty years later, has not lost any of its currency. Not only does tbe problem
arise with the same urgency, both in Europe and elsewhere, but also, in the
context of the inexorable decline of the nation-state and the general corrosion
of traditional legal-political categories, tbe refugee is perhaps tbe only imaginable
figure of the people in our day. At least until the process of the dissolution
of the nation-state and its sovereignty has come to an end. the refugee
is the sole category in which it is possible today to perceive the forms and limits
of a political community to come. Indeed, it may be that if we want to be
equal to the absolutely novel tasks that face us, we will have to abandon witbout
misgivings the basic concepts in which we have represented political subjects
up to now (man and citizen witb tbeir rights, but also the sovereign people,
the worker, etc.) and to reconstruct our political philosophy beginning
with this unique figure. i
2. The first appearance of refugees as a mass phenomenon occurred at the
endof World War I. when the collapse of the Russian, Austro-Hungarian. and
Ottoman empires, and tbe new order created by the peace treaties, profoundly
upset the demographic and territorial structure of Central and Eastern
Europe. In just a short time, a million and a half White Russians, seven hundred
thousand Armenians, five hundred thousand Bulgarians, a million
Greeks, and hundreds of thousands of Germans. Hungarians, and Romanians
114
Agamben SYMPOSIUM 115
left their countries and moved elsewhere. To these masses in motion should be
added the explosive situation determined by the fact that in the new slates created
by (he peace treaties on the model of the nation-state (for example, in
Yugoslavia and in Czechoslovakia), some 30 percent of the populations comprised
minorities that had to be protected through a series of intemational
treaties (the so-called Minority Treaties), which very often remained a dead
letter. A few years later, the racial laws in Germany and the Civil War in Spain
disseminated a new and substantial contingent of refugees throughout Europe.
We are accustomed to distinguishing between stateless persons and
refugees, but this distinction, now as then, is not as simple as it might at first
glance appear. From the beginning, many refugees who technically were not
stateless preferred lo become so rather than to return to their homeland (this
is the case of Polish and Romanian Jews who were in France or Gennany at
the end of the war, or today of victims of political persecution as well as of
those for whom returning to their homeland would mean the impossibility of
survival). On the other hand, the Russian, Armenian and Hungarian relugees
were promptly denationalized by the new Soviet or Turkish governments, etc.
It is important to note that starting with the period of World War I, many European
states began to introduce laws whieh permitted their own citizens to be
denaturalized and denationalized. The first was France, in 1915, with regard
to naturalized citizens of "enemy" origins; in 1922 the example was followed
by Belgium, which revoked the naturalization of citizens who had committed
"anti-national" acts during the war; in 1926 the Fascist regime in Italy passed
a similar law concerning citizens who had shown themselves to be "unworthy
of Italian citizenship"; in 1933 it was Austria's tum. and so forth, until in 1935
the Nuremberg Laws divided German citizens into full citizens and citizens
without political rights. These laws—and the mass statelessness that resulted—
mark a decisive tuming point in the life of the modem nation-state and
its definitive emancipation from che naive notions of "people" atid "citizen."
This is not ihe place to review the history of the various international commissions
through which the states, the League of Nations, and Inter, the United
Nations sttempted to deal with the problem of refugees—from the Nansen
Bureau for Russian and Armenian refugees (1921). to the High Commission
for Refugees from Germany (1936), the Intergovemmental Committee for
Refugees (1938). and the Intemational Refugee Organization of the United
Nations (1946). up to the present High Commission for Refugees (1951)—
whose activity, according to its statute, has only a "humanitarian and social."
not political, character. The basic point is that every time refugees no longer
represent individual cases bui rather a mass phenomenon (as happened
between the two wars, and has happened again now), both these organizations
and the single states have proven, despite the solemn evocations of the inalienable
rights of man. lo he absolulely incapable not only of resolving the problem
but also simply of dealing with it adequately. In this way the entire ques116
SYMPOSIUM Summer 1995
tion was transferred into the hands of the police and of humanitarian organizations.
3. The reasons for this impotence lie not only in the selfishness and blindness
of bureaucratic machines, but in the basic notions themselves that regulate
the inscription of the native (that is, of life) in the legal order of the
nation-state. Hannah Arendt titled chapter 5 of her book Imperialistn. dedicated
to the problem of refugees, "The Decline of the Nation-State and the
End of the Rights of Man." This formulation—which inextricably links the
fates of the rights of man and the modem national state, such that the end of
tbe latter necessarily implies the obsolescence of tbe former—should be taken
seriously. Tbe paradox bere is that precisely the figure tbat should have incarnated
the rights of man par excellence, the refugee, constitutes instead the radical
crisis of this concept. "The concept of the Rights of man." Arendt writes,
"based on the supposed existence of a human being as such, collapsed in ruins
as soon as those who professed it found themselves for the first time before
men wbo had truly lost every other specific quality and connection except for
the mere fact of being humans," in the nation-state system, the so-called
sacred and inalienable rigbts of man prove to be completely unprotected at the
very moment it is no longer possible to characterize them as rights of the citizens
of a state. This is implicit, if one thinks about it, in the ambiguity of the
very title of the Declaration of 1789, Declaration des droits de l'homme e du
citoyen, in which it is unclear whether the two terms name two realities, or
wbetber instead they form a hendiadys, in which the second tenn is, in reality,
already contained in the first.
That there is no autonomous space within the political order of the nationstate
for something like the pure man in himself is evident at least in the fact
that, even in the best of cases, the status of the refugee is always considered a
temporary condition that should lead either to naturalization or to repatriation.
A pennanent status of man in himself is inconceivable for the law of the
nation-state.
4. It is time to stop looking at the Declarations of Rights from 1789 to tbe
present as if they were proclamations of eternal, metajuridical values that bind
legislators to respect them, and to consider them instead according to their real
function in the modem state. In fact, the Rights of Man represent above all the
original figure of the inscription of bare natural life in the legal political order
of the nation-state. That bare life (the human creature) which in the ancien
regime belonged to God, and in the classical world was clearly distinct (as
zoe) from political life {bios), now takes center stage in the state's concems
and becomes, so to speak, its terrestial foundation. Nation-state means a state
that makes nativity or birth (that is, of tbe bare human life) tbe foundation of
its own sovereignty. Tbis is the (not even very obscure) sense of the first three
articles of the Declaration of 1789: only because it wrote tbe native element
into the core of any political association (arts. 1 and 2) could it firmly tie (in
Agamben SYMPOSIUM 117
art. 3) the principle of sovereignty to the nation (in accordance with its etymon,
natio originally meant .simply "birth'"). The fiction implicit here is that
hirth immediately becomes nation, such that there can be no distinction
between the two moments. Rights, that is, are attributable to man only in the
degree to which he is the immediately vanishing presupposition (indeed, he
must never appear simply as man) of the citizen.
5. If in the system of the nation-state the refugee represents such a disquieting
element, it is above all because by breaking up the identity between man
and citizen, between nativity and nationality, the refugee throws into crisis the
original fiction of sovereignty. Single exceptions to this principle have always
existed, of course; the novelty of our era, which threatens the very foundations
of the nation-slate, is that growing portions of humanity can no longer be represented
within it. For this reason—that is. inasmuch as the refugee unhinges
the old trinity of statc/n at ion/territory—this apparently marginal figure
deserves rather to be considered the central figure of our political history. It
would be well not to forget that the first camps in Europe were built as places
to control refugees, and that the progression—internment camps, concentration
camps, extermination camps—represents a pertectly real filiation. One of
the few rules the Nazis faithfully observed in the course of the "final solution"
was that only after the Jews and gypsies were completely denationalized (even
of that second-class citizenship that belonged to them after the Nuremberg
laws) could they be sent to the extermination camps. When the rights of man
are no longer the rights of the citizen, then he is truly sacred, in the sense that
ihis term had in archaic Roman law: destined to die.
6. It is necessary resolutely to separate the concept of the refugee from that
of the "Rights of man." and to cease considering the right of asylum (which
in any case is being drastically restricted in the legislation of the European
states) as the conceptual category in which the phenomenon should be
impressed (a glance at the recent Tesi sul diritto d'asUo by A. Heller shows
that today this can lead only to nauseating confusion). The refugee should be
considered for what he is. that is. nothing less than a border concept that radically
calls into question the principles of the nation-state and. at the same
time, helps clear the field for a no-longer-delayable renewal of categories.
In the meantime, the phenomenon of so-called illegal immigration into the
countries of the European Community has assumed (and will increasingly
assume in coming years, with a foreseen 20 million immigrants from the
countries of central Europe) features and proportions such as to fully justify
this revolution in perspective. What the industrialized states are faced with
today is a permanently resident mass of noncitizens, who neither can be nor
want to be naturalized or repatriated. Often these noncitizens have a nationality
of origin, but inasmuch as they prefer not to make use of their state's protection
they are, like refugees, "stateless de facto." For these noncitizen residents,
T. Hammar created the neologism denizens, whieh has the merit of
118 SYMPOSIUM Summer 1995
showing that the eoneept citizen is no longer adequate to describe the sociopolitical
reality of modem states. On the other hand, citizens of the advanced
industrialized states (both in the United States and in Europe) manifest, by
their growing desertion of the codified instances of political participation, an
evident tendency to transform themselves into denizens, into conformity with
the well-known principle that substantial assimilation in the presence of formal
differences exasperates hatred and intolerance, xenophobic reactions and
defensive mobilizations will increase.
7. Before the extermination camps are reopened in Europe (which is
already starting to happen), nation-states must find the courage to call into
question the very principle of the inscription of nativity and the trinity of
state/nation/territory which is based on it. It is sufifcient here to suggest one
possible direction. As is well known, one of the options considered for the
problem of Jerusalem is that it become the capital, contemporaneously and
without territorial divisions, of two different states. The paradoxical condition
of reciprocal extraterritoriality (or, better, aterritoriality) that this would imply
could be generalized as a model of new international relations. Instead of two
national states separated by uncertain and threatening boundaries, one could
imagine two political communities dwelling in the same region and in exodus
one into the other, divided from each other by a series of reciprocal extraterritorialities,
in which the guiding concept would no longer be the ius of the
citizen, but rather the refugium of the individual. In a similar sense, we could
look to Europe not as an impossible "Europe of nations." whose catastrophic
results can already be perceived in the short terni. but as an aterritoriai or
extraterritorial space in which all the residents of the European states (citizens
and noncitizens) would be in a position of exodus or refuge, and the status of
European would mean the citizen's being-in-exodus (obviously also immobile).
The European space would thus represent an unbridgeable gap between
birth and nation, in which the old concept of people (which, as is well known,
is always a minority) could again find a political sense by decisively opposing
the concept of nation (which until now has unduly usurped it).
This space would not coincide with any homogeneous national territory,
nor with their topographical sum. but would act on these territories, making
holes in them and dividing them topologically like in a Leiden jar or in a Moebius
strip, where exterior and interior are indeterminate. In this new space, the
European cities, entering into a relationship of reciprocal extraterritoriality,
would rediscover their ancient vocation as cities of the world.
Today, in a sort of no-man's-land between Lebanon and Israel, there are
four hundred and twenty-five Palestinians who were expelled by the state of
Israel. According to Hannah Arendt's suggestion, these men constitute "the
avant-garde of their people." But this does not necessarily or only mean that
they might form the original nucleus of a future national state, which would
probably resolve the Palestinian problem just as inadequately as Israel has
Agamben SYMPOSIUM 119
resolved the Jewish question. Rather, the no-man's-land where they have found
rclugc has retroacted on the territory of the state of Israel, making holes in it
and altering it in such a way that the image of that snow-covered hill has
become more an intemal part of that territory than any other region of Herctz
Israel. It is only in a land where the spaces of states will have been perforated
and topologically defonned. and the citizen will have learned to acknowledge
ihe refugee that he himself is, that man's political survival today is imaginable.
Translated by Michael Rocke

domingo, 19 de julho de 2009

Historiografia de 1789

Folha de São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009

Órfãos de majestade
Historiadora Mona Ozouf defende que a Revolução Francesa não foi a luta do povo "bom" contra o rei "mau"

RENATO JANINE RIBEIRO

Nas últimas décadas, as interpretações da Revolução Francesa [1789] se dividiram em duas vertentes. À esquerda, [o historiador francês] Michel Vovelle promoveu o estudo de lutas populares, fazendo também bom uso da história das mentalidades cunhada por [Lucien] Febvre e [Marc] Bloch.

Em 1989, Vovelle foi convidado por Mitterrand [presidente da França de 1981 a 1995] a dirigir as comemorações acadêmicas do bicentenário da Revolução, o que fez com um congresso mundial e pluralista. Já François Furet (1927-97), ex-comunista, comandou uma revisão da historiografia revolucionária, denunciando Robespierre e o terror. Sua equipe, da qual fez parte Mona Ozouf, autora de um belo "Varennes - A Morte da Realeza", que acaba de sair em português, soube estudar a fundo as ideias em jogo na época revolucionária. Digamos que, para ele, a revolução tinha acabado; para Vovelle, ela continuava.
Furet deve muito a Tocqueville - que em 1856 publicou "O Antigo Regime e a Revolução", ora reeditado em português. O grande problema que Tocqueville vê no processo revolucionário (que ele não aplaude nem condena) é que a monarquia absoluta não dera lugar para os cidadãos treinarem o manejo da coisa pública.

Já na Inglaterra, júris e parlamentos treinaram os cidadãos para decidir em matéria política e judiciária, isso desde os séculos 12 e 13.

Teoria ou prática

Sem poderem praticar a política, os franceses a teorizaram. A França tem em 1789 grandes teorias sobre o poder (é o século dos "philosophes"), mas pouco conhecimento prático. Para os ingleses, é o contrário.
Tocqueville prefere, na política, a prática.
Como a teoria francesa quer fundar a sociedade desde o zero (veja-se "O Contrato Social" de Rousseau), a revolução tenta varrer o passado.
Daí, o risco do terror. Para ele, a revolução completa um trabalho de centralização administrativa iniciado pelo Antigo Regime; teria sido preciso tanto sangue e guerra para chegar a um resultado que o governo anterior produziria?



Fernando Novais [historiador], certa vez, criticou Furet e seus mentores: disse que, contra Robespierre, eles retomavam a posição dos "monarchiens", monarquistas constitucionais que ficaram sem lugar naqueles inícios dos anos 1790 em que nem a corte, querendo restaurar o absolutismo, nem os revolucionários, querendo os direitos humanos, aceitavam um compromisso - uma França que seria inglesa, como?
Se não tinha 600 anos de participação nos assuntos públicos...

Revolução e cinema

Mas o melhor, aqui, é passar para o cinema. Ariane Mnouchkine [diretora francesa] filmou em 1974 uma bela peça: "1789". Ela começa em 1791, quando Luís 16 e Maria Antonieta tentam fugir para o estrangeiro, mas são reconhecidos na cidadezinha de Varennes e forçados a voltar a Paris.
No palco vemos todas as mesuras típicas de cortesãos. Mas, de repente, soa um grito:
"Não é assim que vamos contar essa história!". E há um segundo começo: uma camponesa vai dar à luz quando um nobre, vindo da caça, lava as botas na bacia de água quente que estava reservada para o parto. "1789" é uma peça do povo, que revive a revolução, tanto que termina com o público dançando ao som da "Ode à Alegria" de Beethoven.

Ettore Scola [cineasta italiano] rodou, em 1982, "Casanova e a Revolução", obra de ficção em que o aventureiro veneziano [Giacomo Casanova, interpretado pelo ator Marcello Mastroianni] acaba, sem querer, no meio da fuga para Varennes. Parece uma resposta a Mnouchkine.

O momento alto é quando uma condessa (Hanna Schygulla) explica o que o rei pretendia. Ele trajaria suas vestes solenes e, mostrando-se ao povo com elas, sem os (maus) intermediários que eram os deputados à Assembleia, restabeleceria a boa relação entre o pai que tudo sabe e protege seus súditos e estes, que são seus filhos inocentes e ignorantes.

Obviamente, isso já era impossível. Foram-se os tempos da realeza paternalista. Esse filme é Furet, é Ozouf -que ainda não escrevera seu "1791" ["Varennes - A Morte da Realeza"], mas que o termina citando a película.

Maus vizinhos

O que nos mostram Scola e Ozouf? Que a revolução não é a luta do bem contra o mal (ok), nem do bom povo contra o mau rei. É o fim de um tempo em que a realeza era paternal e o começo dos tempos em que vivemos a dificuldade de nos tornarmos irmãos, primos ou mesmo vizinhos, porque já não pensamos o poder na dicotomia entre o bom pai e o usurpador mau (Hamlet é o grande exemplo desse confronto, com um pai homônimo assassinado pelo mau tio Cláudio).

Mas o que falta a Ozouf, cujo livro é primoroso? Falta-lhe enfatizar que, se a realeza morre, quem a mata é a nobreza. "O rei era bom", dizia [o historiador Jules] Michelet em sua "História da Revolução Francesa", e era exatamente esse o problema: atendia a tudo o que lhe pediam os nobres. E eles, mostra H. Taine nas "Origens da França Contemporânea", haviam deixado de cumprir suas obrigações para com os inferiores.

Uma coisa era a nobreza ter prerrogativas, mas também deveres com os pobres. Outra foi ela ficar apenas nos privilégios, desdenhando o povo. O rei era bom, ele poderia aceitar uma monarquia constitucional (e Furet estaria feliz), que evoluiria à inglesa num século 19 pacífico. Mas a aristocracia era a má intermediária -ela, não os revolucionários condenados pela condessa no filme.

Quem matou a monarquia não foi a multidão que em 1792 invadiu as Tulherias [em Paris] em resposta à invasão da França pelas monarquias coligadas.
Foi a própria coalizão reacionária, somada a uma aristocracia idem. Em Varennes, as coisas parecem indefinidas. Quando o rei -preso, não há como esquecê-lo- é trazido a Paris, um cartaz difundido no caminho diz tudo: "Qualquer pessoa que aplaudir o rei será açoitada, quem o insultar será enforcado". Ele continua um personagem sagrado, e por isso a pena para o insulto é maior do que para o aplauso. Mas, se os óleos da coroação ainda ungem o seu corpo, o poder já lhe escapa.
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RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "O Afeto Autoritário" (ed. Ateliê), entre outros livros.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Colômbia e Estados Unidos

Folha de São Paulo, sexta-feira, 17 de julho de 2009



EUA ampliam presença militar na Colômbia
Bogotá diz que está "perto" de fechar acordo que permitirá ao Pentágono usar três bases e provoca crítica interna e dos vizinhos

Washington deve levar ao país atividades antidroga da base americana de Manta, no Equador, que Quito fecha hoje após dez anos de uso

O governo da Colômbia anunciou ontem que está "perto" de fechar um acordo com a Casa Branca para aumentar a presença militar dos EUA em três bases colombianas, provocando críticas da oposição e dos vizinhos esquerdistas.
A confirmação das negociações coincide com o encerramento, hoje, das atividades da única base militar americana formalmente instalada na América do Sul, a de Manta, no Equador.
O presidente equatoriano, Rafael Correa, prometera desde a campanha eleitoral, em 2006, que não renovaria o contrato para o uso da base pelos EUA, que expira neste ano. Em 2008, a nova Constituição do país aprovou veto a qualquer base estrangeira no Equador.
Desde 2006, então, os EUA procuravam um local para reinstalar as atividades de Manta, de onde partiam os aviões de monitoramento de plantações de coca e das rotas de narcotráfico, responsáveis, segundo os EUA, por 60% das apreensões de droga da região.
Ontem, o governo da Colômbia fez uma audiência pública com a presença do chanceler, o ministro do Interior e o ministro da Defesa para explicar as conversas em curso com os americanos, ante os pedidos de maior transparência.
Segundo os funcionários, se o acordo for fechado, a Colômbia ampliará a presença americana nas bases de Malambo, no norte, e Palanquero e Apiay, no centro do país.
A Colômbia, que já é a maior receptora de ajuda militar dos EUA fora do Oriente Médio, tem dito que as bases não serão americanas, já que Bogotá terá o controle das operações.
O governo de Álvaro Uribe diz que não é necessária a aprovação do eventual acordo pelo Congresso americano, uma vez que o reforço se dará dentro dos limites já estabelecidos pelos EUA no Plano Colômbia, de combate ao narcotráfico e à guerrilha: até 800 militares e até 600 civis contratados.
Segundo o governo Uribe, os EUA investirão até US$ 5 bilhões em instalações militares que serão herdadas pela Colômbia, além de terem o compromisso de compartilhar informações de inteligência.
Segundo a Associated Press, o acordo incluiria visitas "mais frequentes" por navios americanos em duas bases navais no Caribe. A Colômbia também teria condições especiais para a compra de armas e aviões.

Desconfiança regional
A audiência de ontem foi marcada pelo esforço do governo em aplacar a desconfiança interna e dos vizinhos, pouco mais de um ano depois do ataque de Bogotá a um acampamento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) no Equador.
Após o bombardeio, que provocou a mais grave crise diplomática regional em dez anos, não faltaram insinuações de que a Colômbia tinha contado com ajuda americana.
"Os políticos latino-americanos que aceitam uma base militar americana são traidores da sua pátria", disse em La Paz o presidente boliviano, Evo Morales. Ele lembrou ter expulsado do país os funcionários da DEA, num outro revés para as atividades antitráfico dos EUA.
O general Freddy Padilla, ministro colombiano da Defesa, repetiu ontem que das bases não partirão missões que "projetem força" em direção a outros países. O Pentágono não comentou as negociações.
No começo de abril, porém, um documento da Força Aérea dos EUA, apresentado num seminário militar no Alabama, citava que a base de Palanquero poderia se transformar num ponto de partida para operações de longo alcance. "Perto de metade do continente pode ser coberta pelo [avião] C-17 sem reabastecer" desde a base, diz o documento.
"É um imenso erro diplomático", diz Rafael Pardo, ex-ministro da Defesa e pré-candidato do Partido Liberal, centrista, à sucessão de Uribe.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A direita americana "rides again"

Folha de São Paulo de 16 de julho de 2009

A direita latina contra-ataca ante a hesitação de Obama
"Distração" dos Estados Unidos permite que a situação golpista em Honduras se cristalize e incentiva setores conservadores em outros países da América Central

IMMANUEL WALLERSTEIN

O GOVERNO de George W. Bush foi o momento da maior onda de vitórias dos partidos à esquerda do centro na América Latina, em mais de dois séculos. O governo de Barack Obama corre o risco de ser o momento da vingança da direita na região.
O motivo pode ser o mesmo: a combinação entre o declínio do poderio americano e a posição central que os EUA ainda mantêm na política mundial. Os EUA são incapazes de se impor, mas ainda assim são vistos como aliados necessários por quase todo o mundo.
O que aconteceu em Honduras? O país vem sendo há muito tempo um dos mais seguros pilares das oligarquias latino-americanas -uma classe dominante arrogante e insubmissa, com estreitas conexões com os EUA, em um país que abriga uma grande base militar americana. As Forças Armadas do país são cuidadosamente recrutadas de maneira a evitar qualquer contágio por oficiais com simpatias populistas.
Como oriundo da classe dominante, a expectativa era a de que Zelaya continuasse a jogar o jogo como os presidentes hondurenhos sempre jogaram. Mas, em vez disso, sua posição política começou a ganhar tons esquerdistas. Zelaya empreendeu programas internos que, na verdade, faziam alguma coisa pela vasta maioria da população -construção de escolas em regiões rurais remotas, aumento no salário mínimo, criação de clínicas de saúde. Após dois anos, aderiu à Alba, a organização de cooperação internacional fundada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez.
Depois, ele propôs realizar um plebiscito sobre a opinião da população quanto à possível convocação de uma Assembleia Constituinte. A oligarquia berrou que isso era uma tentativa de mudar a Constituição para que Zelaya pudesse disputar um segundo mandato. Mas, como o plebiscito seria realizado na mesma data em que a eleição de seu sucessor, a alegação era claramente falsa.
Por que, então, o Exército conduziu um golpe de Estado, com apoio da Corte Suprema, do Legislativo e da Igreja Católica? Dois fatores foram decisivos: a opinião desses grupos sobre Zelaya e sua opinião sobre os EUA. Para a oligarquia hondurenha, Zelaya traiu sua classe e por isso merece ser punido, para servir como exemplo.
E quanto aos EUA? Quando o golpe aconteceu, alguns dos mais ruidosos comentaristas de esquerda da blogosfera o definiram como "golpe de Obama". Mas isso ignora a realidade. Nem Zelaya, nem seus partidários nas ruas, nem Chávez e nem Fidel Castro analisam a situação de maneira tão simplista. Todos eles percebem a diferença entre Obama e a direita americana (políticos ou comandantes militares) e expressaram repetidamente uma análise muito mais balanceada.
Parece bastante claro que a última coisa que o governo Obama desejava era um golpe como esse. O golpe, na verdade, foi uma tentativa de forçar Obama a uma atitude. E essa posição foi sem dúvida encorajada por importantes figuras da direita americana, entre as quais Otto Reich, o americano de origem cubana que assessorava Bush sobre a política regional. Foi algo parecido com a tentativa do presidente Mikhail Saakashvili, da Geórgia, de forçar uma ação dos EUA, ao invadir a Ossétia do Sul. Aquela também foi uma ação empreendida com a conivência da direita dos EUA. Mas não funcionou porque os soldados da Rússia impediram.
Obama está vacilando desde o golpe em Honduras. E por enquanto a direita hondurenha e dos EUA está contente por ter conseguido reverter a política americana. Bastam algumas de suas declarações mais absurdas como prova. O chanceler hondurenho apontado após o golpe, Enrique Ortez, afirmou que Obama era "um negrinho que não sabe nada de nada". O embaixador dos EUA protestou contra o insulto, e Ortez terminou transferido a outro posto.
A direita dos EUA é mais polida, mas não menos feroz. O senador republicano Jim DeMint, a deputada de origem cubana Ileana Ros-Lethinen e o advogado conservador Manuel Estrada vêm insistindo em que o golpe era justificado porque, na verdade, não foi um golpe, e sim uma defesa da Constituição hondurenha. E Jennifer Rubin, uma blogueira de direita, publicou um post intitulado "Obama está errado, errado, errado sobre Honduras".
A direita hondurenha está tentando ganhar tempo, até que se encerre o mandato de Zelaya. Caso consigam realizar esse objetivo, terão vencido. E as direitas guatemalteca, salvadorenha e nicaraguense estão assistindo a tudo, ansiosas por promover golpes contra os governos de seus países.
A esquerda chegou ao poder na América Latina devido ao momento econômico propício e à distração dos EUA. Agora, a distração continua, mas o momento econômico é pior. E a esquerda leva a culpa por estar no poder, ainda que na verdade haja pouco que os governos de esquerda possam fazer quanto à economia mundial.
Será que os EUA podem fazer algo mais com relação ao golpe? Bem, é evidente que sim. Primeiro, Obama poderia oficialmente classificar o golpe como golpe. Isso faria com que passasse a valer a lei americana que dispõe que toda a assistência dos EUA a Honduras seja suspensa. Ele poderia retirar o embaixador americano do país.
Poderia dizer que não há nada a negociar, em lugar de insistir em "mediação" entre o governo legítimo e os líderes do golpe.
Por que não faz tudo isso? É simples. Há pelo menos quatro outros itens de grande urgência em sua agenda: a confirmação de Sonia Sotomayor para a Suprema Corte; a confusão no Oriente Médio; sua necessidade de aprovar ainda neste ano seu pacote de saúde; e a pressão pela abertura de um inquérito sobre os atos ilegais do governo Bush. Lamento, mas Honduras ocupa o quinto lugar.
Assim, Obama vacila. E ninguém ficará satisfeito. Zelaya pode ser restituído ao seu posto, mas talvez só daqui a três meses. Tarde demais. Melhor ficar de olho na Guatemala.

IMMANUEL WALLERSTEIN, pesquisador sênior na Universidade Yale, é autor de "O Declínio do Poder Americano" (Contraponto). Este artigo foi distribuído pela Agence Global.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A.Sen e a teoria da justiça

Matéria enviada pelo doutorando em Direito da Puc e professor da Ucam Farlei Martins




The Guardian, 13.07.2009
Amartya Sen
Pip was right: nothing is so finely felt as injustice. And there the search
begins


Ludwig Wittgenstein wrote in the preface to his first major book in
philosophy, Tractatus Logico-Philosophicus, published in 1921: "What can be
said at all can be said clearly; and whereof one cannot speak thereof one
must be silent." Wittgenstein would re-examine his views on speech in his
later work, but it is wonderful that even as he was writing the Tractatus,
the great philosopher did not always follow his own exacting commandments.
In a remarkably enigmatic letter to Paul Engelmann in 1917, Wittgenstein
said: "I work quite diligently and wish that I were better and smarter. And
these both are one and the same." Really? One and the same thing – being a
better person and a smarter guy? Who is Wittgenstein kidding?

I am, of course, aware that modern American usage has drowned the
distinction between "being good" as a moral quality and "being well" as a
comment on a person's health (no aches and pains, fine blood pressure, and
such), and I have long ceased worrying about the apparent immodesty of those
of my friends who, when asked about how they are, reply with manifest
self-praise: "I am very good." But Wittgenstein was not an American, and
1917 was well before the conquest of the world by vibrant American usage. So
what was this pronouncement about?

Underlying Wittgenstein's claim may be the recognition, in some form, that
many acts of nastiness are committed by people who are deluded, in one way
or another, on the subject. It has been argued that some children carry out
odd acts of brutality to others – other children or animals – precisely
because of their inability to appreciate adequately the nature and intensity
of the pains of others. There is perhaps a strong connection between being
antisocial and the inability to think clearly. We cannot, of course, be
really sure about what Wittgenstein meant, but if this is what Wittgenstein
meant, he was in the powerful tradition of the European Enlightenment that
saw clear-headed reasoning as a major ally of making societies decent and
acceptable.

The leaders of thought in the Enlightenment did not, however, speak with one
voice. In fact, there is a substantial dichotomy between two different lines
of reasoning about justice that can be seen among two groups of leading
philosophers associated with the radical thought of the Enlightenment
period. One approach concentrated on identifying perfectly just social
arrangements, and took the characterisation of "just institutions" to be the
principal – and often the only identified – task of the theory of justice.

Woven in different ways around the idea of a hypothetical "social contract",
major contributions were made in this line of thinking by Thomas Hobbes in
the 17th century, and later by John Locke, Jean-Jacques Rousseau and
Immanuel Kant, among others. The contractarian approach has become the
dominant influence in contemporary political philosophy, led by the most
prominent political philosopher of our time, John Rawls – whose classic book
of 1971, A Theory of Justice, presents a definitive statement on the social
contract approach to justice. The principal theories of justice in
contemporary political philosophy draw in one way or another on the social
contract approach, and concentrate on the search for ideal social
institutions.

In contrast, a number of other Enlightenment theorists (Adam Smith,
Condorcet, Mary Wollstonecraft, Karl Marx and John Stuart Mill, for example)
took a variety of approaches that shared an interest in making comparisons
between different ways in which people's lives may go, jointly influenced by
the working of institutions, people's actual behaviour, their social
interactions, and other factors that significantly impact on what actually
happens. The analytical, and rather mathematical, discipline of "social
choice theory" – which can be traced to the works of Condorcet in the 18th
century, but has been developed in the present form under the leadership of
Kenneth Arrow in the last century – belongs to this second line of
investigation. That approach, suitably adapted, can make a substantial
contribution, I believe, to addressing questions about the enhancement of
justice and the removal of injustice in the world.

In this alternative approach, we don't begin by asking what a perfectly just
society would look like, but asking what remediable injustices could be seen
on the removal of which there would be a reasoned agreement. "In the little
world in which children have their existence," says Pip in Great
Expectations, "there is nothing so finely perceived, and finely felt, as
injustice." In fact, the strong perception of manifest injustice applies to
adult human beings as well. What moves us is not the realisation that the
world falls short of being completely just, which few of us expect, but that
there are clearly remediable injustices around us which we want to
eliminate.

This is evident enough in our day-to-day life, with inequities or
subjugations from which we may suffer and which we have good reason to
resent; but it also applies to more widespread diagnoses of injustice in the
wider world in which we live. One of the limitations of the social contract
approach to justice, which is so pervasive in contemporary political
philosophy, is the unjustified conviction that there could only be one
precise combination of principles that could serve as the basis of ideal
social institutions. In contrast with this rigid insistence, a social choice
approach allows the possibility of a plurality of competing principles, each
of which is given a status, after being subjected to critical scrutiny.


Thanks to this plurality, we may not be able to resolve on grounds of
justice alone all the questions that may be asked: for example, whether a
40% top tax rate is more just – or less just – than a 41% top rate. And yet
we have every reason to try to see whether we can get reasoned agreement on
removing what can be identified as clear injustice in the world, such as
slavery, or the subjugation of women, or extreme exploitation of vulnerable
labour (which so engaged Adam Smith, Condorcet and Mary Wollstonecraft, and
later Karl Marx and John Stuart Mill), or gross medical neglect of the bulk
of the world population today (through the absence of medical facilities in
parts of Africa or Asia, or a lack of universal health coverage in most
countries in the world, including the US), or the prevalence of torture
(which continues to be used with remarkable frequency in the contemporary
world – sometimes practised by pillars of the global establishment), or the
quiet tolerance of chronic hunger (for example in India, despite the
successful abolition of famines).

The idea of justice demands comparisons of actual lives that people can
lead, rather than a remote search for ideal institutions. That is what makes
the idea of justice relevant as well as exciting in practical reasoning.

This article is based on the Southbank Centre Lecture delivered today at the
London Literature Festival

A máquina do Estado e as desigualdades cidadãs

Excelente texto de Beatriz Bissio.
O texto é do jornal Le Monde Diplomatique e também pode ser acessado aqui:
http://diplo.uol.com.br/2009-03,a2816


A máquina do Estado e as desigualdades cidadãs
A cada dia temos mais claras demonstrações de que a ditadura brasileira deixou o espaço político e jurídico minado com bombas de efeito retardado que, ainda hoje, fazem estragos! Não só não foi uma “ditabranda”, como cumpriu o seu papel com brilhantismo: assegurou que uns sejam mais iguais que outros

Beatriz Bissio

(13/03/2009)

Caros colegas, amigos e companheiros,

É muito dificil escrever nestas horas, quando ainda não conseguimos processar o impacto do pronunciamento dos ministros do Supremo Tribunal Eleitoral em favor da cassação do Governador Jackson Lago. Porém, mais difícil seria ficar com estas palavras e esta emoção guardadas dentro de mim sem partilhá-las com vocês.

Aconteceu na madrugada de hoje o que muitos temiamos mas não nos animávamos a dizer com toda a clareza que a gravidade do caso exigia, porque eram tão imprevisíveis e nefastos os desdobramentos que evitávamos nos debruçar diante de um cenário tão desesperador.

Mas aconteceu. E temos que avaliar a situação.

Apesar da (aparentemente) irrefutável defesa dos advogados do Dr. Jackson – e aqui quero deixar expressa a minha admiração pela brilhante e comovente arguição do Dr. Francisco Resek e pela coragem com que colocou algumas verdades que o caso revela – a maioria dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral acolheu a versão da coligação "Maranhão -a Força do Povo", que apoiou a candidata Roseana Sarney nas eleições de 2006. Em consequência disso, cassou o mandato do governador Jackson Lago e do vice–governador, Luis Carlos Porto. E mais, determinou a toma de posse da candidata derrotada.

O Dr. Resek mostrou, na sua intervenção, as implicações de uma decisão como essa. Adiantava-se, assim, ao que veio acontecer. Mostrou que o Maranhão poderia ser levado ao caos, pois a candidatura de Roseana Sarney vem sendo objeto de processo judicial. A imprensa já tem noticiado as investigações da polícia e do Ministério Público sobre as ilegalidades no financiamento da sua campanha, cujo principal responsável era Fernando Sarney.

Dr. Resek também mostrou o que esse grupo vinha mantendo o seu poder graças a uma forma autoritária de controle do Estado e ao controle das principais emissoras de rádio e de televisão e do maior jornal do Maranhão.

O próprio advogado de defesa de Roseana Sarney, Dr. Sepúlveda Pertence e, depois também, o presidente do Tribunal, Dr. Ayres Britto, fizeram uso de uma frase que teria sido proferida pelo então governador José Reinaldo Tavares: “ por primeira vez essa família está tendo contra si a máquina do Estado”. Essa frase indicaria, alegaram, a confissão, do próprio ex-Governador, do uso da máquina do Estado em favor dos candidatos adversários de Roseana Sarney. Mas, na leitura dos magistrados, “escapou” o sentido implícito da frase de Reinaldo Tavares: desde a redemocratização, a família Sarney conseguiu a vitória dos seus candidatos com uso e abuso da máquina do Estado!

Na justificativa de seu voto, o Dr. Ayres Britto alegou que a Constituição coloca para a posse de um cargo majoritário a necessidade de maioria de votos e de lisura na eleição. Parece irrefutável o raciocínio. Porém, esse voto defendia a cassação do Dr. Jackson Lago e, a seguir, a entrega do cargo a Roseana Sarney. Que interpretação sui-generis da letra da lei! Totalmente descontextualizada e ainda utilizada para entregar o cargo a quem em 40 anos demonstradamente utilizou a máquina pública – e a própria justiça para ganhar eleições sem nenhuma lisura e tirar o cargo de quem lutou contra isso!

Que desespero para todos nós, que tanto acreditamos na democracia, ver o quanto ainda estamos longe, neste país, desse sistema de governo que hoje parece só uma utopia!

A cada dia temos mais claras demonstrações de que a ditadura brasileira deixou o espaço político e jurídico minado com bombas de efeito retardado que, ainda hoje, fazem estragos! Não só não foi uma “ditabranda”, como cumpriu o seu papel com brilhantismo: assegurou que uns sejam mais iguais que outros, mesmo depois de vinte anos da promulgação daquela que foi chamada de “Constituição cidadã”, que assegura a todos os homens e mulheres a igualdade de direitos e deveres! E que os privilégios de poucos continuem em detrimento dos anseios da maioria.

As mesmas elites que foram bater na porta dos quartéis quando o governo João Goulart começava a implementar medidas que ameaçavam a sua supremacia, hoje se utilizam do aparato do Estado para – ao amparo da Justiça e dos grandes meios de comunicação – violentar o espírito da nossa Carta maior. Que longe estamos do sonho democrático!

E o que fazer diante dessa constatação?

Naturalmente devemos percorrer todos os caminhos legais que temos ao alcance para tentar fazer Justiça (com maiúscula!) e ficarmos mobilizados!

É o nosso direito mostrar a insatisfação diante da injustiça! É o nosso direito mostrar a insatisfação diante do poder dos grandes meios de comunicação, em permanente conspiração contra os valores democráticos e contra as maiorias! É o nosso direito protestar! É o nosso direito ganhar as ruas com as nossas mensagens! Esse espaço é o único que temos! Foi conquistado e não abriremos mão dele!

Enterraríamos os sonhos de gerações que lutaram e deram a vida pela democracia e pela justiça social se nos deixarmos abater pela aparente derrota. O povo brasileiro está dando demonstrações inequívocas de que não aceita mais que os Collors de Mello, os Sarneys, os Calheiros voltem ao cenário como atores de primeira linha!

É necessário demonstrar que no Brasil de 2009, no Brasil de 2010, 2011, 2012, no Brasil de hoje e de amanhã, não há mais espaço para eles!

Se não formos capazes de dar ao povo a esperança de que o voto efetivamente tem valor, de que a Justiça pode ser confiável, de que a lei pode efetivamente ser igual para todos, estaremos diante de um cenário assustador: um povo desiludido e desesperançado, um povo sem verdadeiros canais de participação democrática, a mercê de cantos de sereia salvadores, com o perigo que isso implica. Se o espaço político e institucional continua tomado pela prepotência e pela corrupção, a lei da selva estará instalada entre nós.

Talvez caiba ao povo do Maranhão iniciar a grande transformação que o Brasil está a exigir: a transformação da apatia e do conformismo, do salve-se-quem-puder, da ação desesperada e isolada, em ação positiva, construtiva, coletiva, organizada, enérgica e solidária de um povo que tem dignidade e não se curva perante ninguém, ciente dos seus direitos. O Dr. Jackson Lago disse, após a sua cassação, que a forma que tinha de agradecer ao povo que o acompanhou, ao longo de meses de vigília democrática, era continuar na luta.

Na luta haveremos de continuar!

Beatriz Bissio, jornalista e historiadora