segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A flexibilização do direito do trabalho pela ordem comunitária européia

A flexibilização do direito do trabalho pela ordem comunitária européia
http://journaldumauss.net/spip.php?article283 A Profa. Deyse Ventura envia o citado endereço eletrônico que traz texto de Supiot publicado na revista Mauss. Este artigo reproduz, na verdade, um artigo desse jurista francês publicado originalmente em Le Monde de janeiro de 2008. Supiot reforça, assim, a sua tese que, nas decisões da Corte de Luxemburgo, se consolida um direito comunitário a favor da flexibilização do Direito do Trabalho notadamente na garantia do direito de greve. Nessa linha, direitos nacionais como a ordem normativa francesa é um exemplo de resistência a essa degradação no tocante a defesa de direitos fundamentais sociais por parte do direito comunitário europeu.

A volta dos partidos socialistas na Europa?

A volta dos partidos socialistas na Europa?
(http://www.newstatesman.com/europe/2008/12/socialist-party-socialism).O Professor Josué Mastrodi envia o endereço eletrônico mencionado abrindo o acesso para a revista "New Stateman"de 04 de dezembro de 2008 abrindo o debate sobre a volta dos partidos socialistas na Europa

domingo, 28 de dezembro de 2008

Patriotismo constitucional e a razão de estado

A revista francesa “Le Magazine Littéraire” de novembro de 2008, número 480 traz duas reflexões importantes. Uma é a respeito da relação França e Alemanha no contexto da construção unidade européia. O pensador alemão Peter Sloterdijk afirma que as relações entre as duas sociedades estarão condenadas a uma indiferença mútua. Na citada edição, tanto a filosófa francesa Blandine Kriegel e quanto o historiador alemão Rudolf com Thaden rebatem essa afirmativa ao discorrerem a trajetória franco-alemã pós o iluminismo. Ressalte-se os caminhos diferenciados por cada um no século XIX. A França, por exemplo, segundo o mencionado debate distancia-se por uma via de ruptura tendo como base uma epistemologia crítica da ciência enquanto a Alemanha se orienta pela força do idealismo. Entretanto, merece sublinhar a assertiva de Rudolf Von Thaden a respeito do patriotismo constitucional bastante conveniente a uma sociedade alemã não reunificada. Com as duas Alemanhas separadas, era óbvio que um patriotismo nacional era impossível. A reunificação, segundo o mesmo historia, aponta para uma oportunidade única, “nós podemos de novo exprimir as experiências e as aspriações nacionais sem esquecer que há ainda de válido no patriotismo constitucional, afirma Rudolf von Thaden. A França tem de questionar a sua tradição jacobinista e reconhecer o fato do patriotismo soberanista não é mais um horizonte suficiente para o seu futuro e Alemanha não deve mais esquecer a sua própria história nacional, acrescenta o referido historiador alemão. Blandine Kriegel mostra que o patriotismo constitucional pós- 1945 serviu para afirmar moralmente a superioridade da Alemanha Federal sobre a República Democrática alemã (RDA) inclusive sobre a própria Áustria.
A outra reflexão da citada revista francesa é sobre a obra de Agamben, “Le régne et La Gloire. Pour une généalogie théologique de l´économie et du gouvernement (Paris: Éditions Seuil, 2008), o resenhista Máxime Rovere ressalta a importância do pensamento do autor de Homo Sacer ao provar, exemplo, a necessidade de uma arqueologia de um conceito deva atravessar os campos de saber diferentes (na ocorrência de passar da política para à teologia) para nele reconecer uma “assinatura” proveniente de uma passagem : no acontecimento do paradigma econômico-gestionário (próprio da idéia de governabilidade a partir do século XVI com a transformação do poder político em Estado, seguindo Michel Foucault) indicando uma via para a diferença entre o poder de deliberação e execução fundamentado na esfera teleolócia.
A relevância dessas análises é de que se encontra, nesse início do século XXI, numa transição de conceitos próprios do período pós Segunda Guerra Mundial (patriotismo constitucional e a noção laica de poder) para novos aspectos a respeito do que é o político e sua articulação com o Direito (Agamben).

"O choque de civilizações" e a crise do capitalismo

A "Folha de Sâo Paulo" de 28 de dezembro de 2008 noticia a motre de Samuel Huntington. Antes mesmo do seu famoso texto na revista "Foreign Affairs" sobre o choque das civilizações mais tarde transformado em livro, o pensador americano foi um grande especialista em estudo sobre os militares e a respeito do autoritarismo. Os anos 90 do século passado foram marcados pela obra de Fukyama "o fim da história", o início do século XXI Hntington mostrou que ela não tinha morrido apelando para o fator "cultural" ou "civilizatório". O que Huntington talvez não tenha percebido, nesses últimas horas do ano de 2008, que a questão central é o capitalismo, este internacionalizado da forma como se apresenta. A grave crise do sistema capitalista global ora travada demarca que essa a dinâmica principal do processo histórico. O "civilizatório" muitas vezes entra como uma forma de resistência heróica contra o carater devastador da acumulação capitalista dos dias atuais.

Morre teórico do "choque de civilizações"
Aos 81 anos e no centro dos debates internacionais, Samuel Huntington enfatizava dicotomia entre Ocidente e islã

Polêmicas como a defesa de uma abertura democrática "lenta" nos anos 70 marcam a trajetória intelectual do veterano de Harvard

Samuel Phillips Huntington, autor do célebre artigo "O Choque de Civilizações?" e um dos mais proeminentes teóricos políticos dos últimos 50 anos, morreu na quarta-feira, véspera do Natal, aos 81 anos, anunciou ontem a Universidade Harvard. Nascido em Nova York, Huntington formou-se na Universidade Yale e aos 23 já lecionava em Harvard.
Professor por 58 anos e mentor de gerações de intelectuais, Huntington foi um dos fundadores da revista "Foreign Affairs" e aposentou-se de Harvard no ano passado. Suas opiniões polêmicas em temas como a imigração hispânica nos EUA, que via com pessimismo, e a influência de sua tese sobre os conflitos internacionais contemporâneos o mantinham no centro dos debates.
"Ele foi certamente um dos mais influentes cientistas políticos dos últimos 50 anos", disse o economista Henry Rosovsky, colega e amigo de Huntington por seis décadas.
Huntington morreu em casa, na ilha de Martha's Vineyard, Massachusetts. Deixa mulher, dois filhos, quatro netos e inúmeros discípulos acadêmicos.
Embora suas idéias tenham influenciado políticas conservadoras -como o ritmo lento da redemocratização do Brasil e a doutrina de "guerra ao terror" de George W. Bush- , Huntington foi durante toda a vida um defensor da democracia, segundo a viúva, Nancy.
Controvérsias marcam a trajetória intelectual de Huntington desde seu primeiro livro, publicado em 1957. No início dos anos 1970, ele defendeu uma transição lenta e gradual dos regimes autoritários do bloco capitalista, alertando sobre os riscos de uma abertura política súbita. A tese, que em larga medida influenciou a transição democrática brasileira, foi criticada pela esquerda latino-americana.
Sexagenário, Huntington transformou-se em celebridade midiática internacional após lançar a sua mais famosa tese, a de que os conflitos mundiais têm como principal origem a competição entre identidades culturais de "sete ou oito civilizações". A idéia, inicialmente controvertida, ganhou força após o 11 de Setembro.
A hipótese de Huntington sobre os conflitos no pós-Guerra Fria -publicada pela primeira vez no artigo "O Choque de Civilizações?", em 1993, e desenvolvida em livro lançado em 1996-, foi vista como profética por muitos intelectuais.
Para o acadêmico, as fricções ideológico-culturais entre as civilizações se tornariam "a fonte fundamental de conflito" após a dissolução do bloco soviético, com crescente animosidade entre a civilização islâmica e a ocidental -para ele constituída apenas pela Europa ocidental e países anglófonos desenvolvidos.
"Estados-nação continuarão os atores mais poderosos das relações internacionais, mas os principais conflitos da política global irão ocorrer entre nações e grupos de diferentes civilizações", escreveu em 1993.
A tese do "conflito de civilizações" -apresentada como contraponto à tese do "fim da história" elaborada por Francis Fukuyama após a queda da União Soviética- foi criticada por intelectuais como Edward Said, da Universidade Columbia, por perpetuar a mentalidade de "Ocidente versus resto do mundo". Aclamada ou combatida, a hipótese de Huntington está no centro do debate contemporâneo sobre relações internacionais.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Universidade brasileira e democracia

Segue abaixo texto da Professora Luciane Soares publicado na Trinuna de Imprensa do Rio de Janeiro


Universidade brasileira e democracia

Entre os índices de desigualdade brasileiros, o acesso ao ensino público de qualidade aparece como gerador de grandes polêmicas. Isto porque envolve movimentos sociais, profissionais da educação, alunos, pais, mídia e agentes importantes, incluindo entre os últimos o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva e o paulista Antônio Ermírio de Moraes, presidente e membro do conselho de administração do Grupo Votorantim. O assunto interessa a toda a nação, por razões evidentemente muito distintas, como podemos perceber, lendo a lista acima.

Argumentos são sacados para a discussão que tende a ser feita em bases por vezes precipitadas. Nos últimos dois anos, a comunidade acadêmica tem se dividido em frentes favoráveis e contrárias as cotas. O que tem gerado inimizades, rompimentos, livros, listas de assinaturas, blogs, brigas públicas, reuniões. Eventos que transcendem a questão de acesso ao ensino superior, focando a existência ou não de racismo no Brasil. Pois, para muitos, raça é atualmente, um conceito dispensável. Portanto, por que reserva de vagas?

Creio, como muitos outros pesquisadores, que socialmente, raça é um operador cotidiano de identificação poderoso. Convido todos a refletir sobre Obama e o significado de sua eleição. Alguma dúvida?

Se não se pode mais falar em raça, parece que o que existe é uma paranóia de movimentos sociais rancorosos e revanchistas, como afirmou um professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em artigo recente sobre o ensino de História da África nas escolas.

Este fato me faz lembrar da crise de choro de uma avaliadora de importante agência de fomento à pesquisa no país que, diante da indagação de um professor de Lisboa (curioso por nossa Universidade) não conseguia explicar aos presentes por quais razões, no Brasil, os negros eram praticamente inexistentes nas universidades.

A discussão corajosa e por vezes solitária que o professor da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho tem feito, colabora para pensar sobre o caso. Dos universitários brasileiros, 96% são brancos.

Poderíamos problematizar como estas classificações são feitas. Mas é desnecessário. Basta pensar na configuração racial dos cursos de Engenharia, Direito, Arquitetura e Medicina. Mesmo que fosse possível dizer, abraçados a Gilberto Freyre, que no Brasil só há morenos, é inegável que existe sim, homogeneidade racial nas Universidades. Em toda minha graduação não tive a oportunidade de conviver com colegas negros.

A sutileza dos sobrenomes sempre foi cruel. Assim como os rituais de humilhação impostos quando a discussão de mérito era critério para aprovação em concursos públicos (parcialmente públicos, parcialmente secretos e obscuros).

Como não se pode falar do que não existe, ocorre a perpetuação destes rituais. No mestrado, a mesma distribuição: em dez alunos, apenas uma era negra. O que dizer diante de uma história sobre "aquela empregada doméstica negra que foi despedida porque comeu um pedaço de bolo"? O que fazer diante de uma banca de avaliação que não sabia explicar por que um aluno, com notas superiores a 8,5 na prova aula, na entrevista e no currículo ocupa um pífio quinto lugar em um concurso para professor? Tendo notas superiores aos demais candidatos. Questão de mérito? Falta de qualificação? Não seria justo, uma vez que os avaliadores bocejavam durante a prova aula. Para quem narrar estes fatos "fantasiosos e rancorosos"? Poderia alguém dizer que trata-se de uma paranóia? Não creio.

Acredito que a discussão sobre cotas explode com este silêncio universal que em seu caráter falsamente democrático, apenas perpetua poderes há décadas estabelecidos. Quanto ao argumento de "baixar o nível" com a entrada de alunos pobres e negros, convido toda a sociedade civil brasileira a investigar o conhecimento que se tem produzido nas teses, dissertações e artigos.

Creio que se alguém quiser seguir empunhando a bandeira da excelência acadêmica e do mérito, deverá analisar com seriedade o que tem se plasmado como interesse científico nos centros de pesquisa universitária. Verá logo que este argumento é falacioso. Há muito não é possível produzir como se deveria para, de fato, exibir esta excelência.

A obrigatoriedade da produção de artigos (por vezes repetidos em 10 revistas científicas), o sucateamento do serviço público, a falta de investimentos sérios em educação, isto sim, faz despencar o nível de qualquer instituição. Colocar esta culpa e este estigma nos alunos pobres e não brancos é permanecer em tempos de República Velha, quando o analfabetismo da maioria dos ex-escravos era a justificativa para que lhes fosse negado o direito ao voto.

Assessor de Obma prefere conceito de "segundo mundo"

Assessor de Obma prefere conceito de "segundo mundo"
Entrevista de assessor de Obma prefere conceito de "segundo mundo" do que o de Bric no que cirucla no jornal "A Folha de São Paulo" de 22 de dezembro de 2008

PARAG KHANNA
Falta ambição para Brasil se tornar superpotência

Para consultor de política externa de Barack Obama, contudo, país influencia destino de superpotências, como EUA e China

NOME ASCENDENTE , o americano de origem indiana crê que Obama terá menos ferramentas para influir no mundo -pela crise e o fracasso militar. Dirige o New America Foundation e é autor de "The Second World -Empires and Influence in the New Global Order" [O Segundo Mundo - Impérios e Influência na Nova Ordem Global].


No novo mundo que espera o presidente eleito Barack Obama, a crise econômica que assola os EUA fará o país ter menos ferramentas não-militares de persuasão em sua política externa, o chamado "soft power" (poder suave, expressão cunhada por Joseph Nye, da Universidade Harvard).
Nesse mundo multipolar, ganham importância os países de "Segundo Mundo", como Brasil e China. E isso não segundo a definição clássica, da Guerra Fria, que usava o termo para os países na órbita da então União Soviética, mas no conceito de Parag Khanna, norte-americano de origem indiana que, aos 31 anos, é a nova estrela entre analistas de política externa.
São países com características de Primeiro e Terceiro mundos. Khanna falou à Folha por telefone. Leia abaixo trechos da conversa:




FOLHA - O sr. defende a redefinição dos termos Primeiro, Segundo e Terceiro mundos. Chama os que fazem parte do grupo do meio de "países em transição", como o Brasil. Pode ampliar o conceito?
PARAG KHANNA - Os países do Segundo Mundo estão presos nesse grupo em termos socioeconômicos. O que os define é como lidam com a globalização, se são capazes de capitalizar as oportunidades do mercado global -como acredito que o Brasil é- ou se são vitimados por esse mercado global -como acredito que muitos países são.
Os países de Segundo Mundo são os que têm divisões internas, com características de Primeiro Mundo e de Terceiro Mundo, como China e Brasil.
Ambos são parte do mesmo grupo, mas a diferença é que a China tem ambições globais. Competir com os EUA e a Europa faz dela uma superpotência. Sim, você pode ter superpotências de Segundo Mundo. Para ser uma, não é preciso ser rico -a China não é rica internamente, mas poderosa.

FOLHA - O fato de um país ter ou não ambição global o define?
KHANNA - Sim. Mas a relação entre eles também é importante. A China e os EUA são superpotências, o Brasil não. Mas, se o Brasil decidir rejeitar as ofertas da China em termos de comércio e investimento, isso vai prejudicar as ambições globais chinesas.
Do mesmo modo, se o Brasil decidir não cooperar com os EUA na América Latina, então as políticas dos EUA para a região serão ainda mais fracassadas do que são hoje. Meu ponto é que países de Segundo Mundo como o Brasil têm influência sobre o sucesso das superpotências, por isso têm poder.

FOLHA - Como esse conceito de Segundo Mundo difere do conceito de Brics [acrônimo criado pelo Goldman Sachs em 2001 que agrupa as potências emergentes Brasil, Rússia, Índia e China], por exemplo?
KHANNA - Há muitos problemas com o conceito de Brics. Em primeiro lugar, ele faz uma projeção para 40 anos, o que não pode ser exato por definição, especialmente no momento atual. Ele olha tão longe que é impossível refutar, mas é impossível validar também. Em segundo lugar, são apenas quatro países. Mesmo quando se diz Brics + 11, como tem acontecido ultimamente, são 15 países. Eu falo de 40 países no Segundo Mundo.
Esse conceito é falho ao não levar em conta diplomacia, estratégias política e militar.

FOLHA - Um dos capítulos mais longos de seu livro o sr. dedica ao Brasil, onde já esteve. Qual sua impressão?
KHANNA - Muito favorável. A força do país está em sua economia diversificada, não só baseada nos recursos naturais mas também muito industrializada e com inovações em alguns setores. Além disso, acho positivo algumas políticas de desenvolvimento do governo. Programas como o Bolsa Família, por exemplo, são inovadores e difíceis de implantar.
Na verdade, não encontrei nada similar, com tamanho sucesso, em nenhum outro lugar do mundo, com exceção talvez da China. Os dois países estão criando um mercado interno muito forte por conta disso.
Por fim, a diplomacia: acho o Itamaraty incrivelmente sofisticado, a maneira com que lida com questões de comércio.

FOLHA - O sr. é um dos defensores do mundo multipolar, em que os EUA perdem poder absoluto em favor de mais participantes no diálogo mundial. Em relatório recente, a comunidade de inteligência norte-americana admite pela primeira vez esse cenário, para 2025. Eles estão finalmente ouvindo o que a intelligentsia vem dizendo há anos?
KHANNA - Você é que está dizendo que eles estão nos ouvindo, mas, se você comparar os ponto-chave deles e os do meu livro, eu escrevi antes (risos). Fui uma das pessoas ouvidas pelo relatório, na verdade. Mas pode ser que eles estivessem atrás no conceito e agora estão chegando lá.

FOLHA - Os EUA estão preparados para esse cenário?
KHANNA - O relatório aponta que em 2025 os EUA ainda serão o país mais poderoso do mundo. Diz também que o mundo será um lugar muito difícil de ser governado, que a noção de comunidade internacional será enfraquecida e que não haverá um líder definitivo.

FOLHA - Mas o sr. diz que os EUA correm o risco de se tornarem um país de Segundo Mundo...
KHANNA - Sim. Se você ligasse a TV agora e assistisse às três maiores montadoras norte-americanas de pires na mão, sendo socorridas pelo governo, discordaria de mim?

FOLHA - Nesse sentido, é bom ou ruim o fato de Barack Obama se tornar o novo presidente?
KHANNA - Bom, principalmente por conta da situação econômica e de como ela afetará o poder de ação dos EUA no mundo. Com o agravamento da crise, será cada vez mais difícil contar com corporações, ONGs, entidades beneficentes e assistência internacional -instrumentos de "soft power" que a política externa norte-americana usa para compensar a estratégia militar, que é um fracasso.

FOLHA - Que tipo de capitalismo sairá dessa crise?
KHANNA - Um capitalismo como o europeu, isso é inegável. Um modelo de capitalismo de Estado, bem regulado, mas bem dirigido, com grandes e importantes indústrias.

FOLHA - O sr. é um dos consultores do presidente eleito para o Sudeste Asiático. O que acha da promessa que fez na campanha, de ser mais agressivo em relação ao Paquistão? Prometeu, por exemplo, fazer ataques pontuais dentro do país.
KHANNA - Esses ataques já estão acontecendo sob George W. Bush, então não vejo uma grande mudança de tática. Não acho que será tão controverso assim, pelo menos não em termos de realidade política americana.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Emenda 57 e estado de exceção

Foi aprovada na sexta-feira a Emenda Constitucional n. 57 que trata inicialmente da regulamentação de municípios criados após a emenda n.15 de 1996. Através da emenda 57 ficam convalidados os atos de criação, fusão e incorporação de municípios até 31 de dezembro de 2006.
Tal emenda tem como objetivo sanar o objeto da ADI 2240-7, que trata da criação do município de Luís Eduardo Magalhães, utilizada como precedente para o julgamento da criação, fusão ou incorporação de outros 3 municípios.
O voto na referida ADI é um marco no próprio STF por se tratar da aplicação prática da teoria do estado de exceção para a fundamentação de um caso concreto.
A emenda 57 inseriu ao ADCT a alteração referida anteriormente. Vale lembrar que o poder político vem se utilizando desse procedimento de acréscimo ao ADCT em determinadas situações para evitar discussões acerca da forma como proceder em casos específicos.
Outra ressalva a ser feita é o fato de que o vácuo criado pela ADI 2240-7 é mantido. Tal ADI pode ser ainda usada como precedente para criação de municípios em desacordo com o artigo 18 da Constituição. A emenda, com seu procedimento específico, é na verdade um paliativo para a situação que ainda não foi sanada que tem como origem a não promulgação da lei complementar a que se refere o artigo 18.
O interessante a ser verificado na promulgação dessa emenda, ainda em relação à teoria do estado de exceção, é que através dela o poder político torna legais todos os atos que supostamente seriam ilegais em uma situação normal. É algo relacionado ao que Agamben trata especificamente no capítulo dedicado ao Iustitium em seu livro ESTADO DE EXCEÇÃO.
Notas de uma soberania derivada, segundo Agamben, de uma relação originária com a exceção.

Segue abaixo o texto da Emenda:

“Emenda Constitucional n. 57, de 18 de dezembro de 2008

Acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para
convalidar os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60
da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional: Art.
1º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do
seguinte art. 96: "Art. 96. Ficam convalidados os atos de criação, fusão,
incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de
dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo
Estado à época de sua criação." Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na
data de sua publicação”

Paul Kennedy e o Goveno Obama

0 Estado de São Paulo de 21 de dezembro de 2009 publica o seguinte texto de Paul Kennedy:
E depois vem o resto do mundo
A economia e as relações com China, Rússia e Oriente Médio são prioridades de Obama para 2009


- Já ficou perfeitamente claro, ao menos para este observador, que a equipe de Obama, por mais esperta, experiente e maravilhosa que seja, não pode concretizar todas as esperanças nela depositadas por americanos jubilosos, mas angustiados, e por multidões igualmente angustiadas, mas esperançosas no exterior.

Este próximo presidente, no começo ousado e inspirador em seus discursos, depois cauteloso, reflexivo e avisado em suas reconsiderações, tem o temperamento para ser um grande líder. Ao mesmo tempo, porém, ele enfrentará uma lista extraordinária de problemas e desafios no momento em que os Estados Unidos e o mundo caminham para 2009. Barack Obama precisa saber também que terá de priorizar: ele não poderá ser todas as coisas para todas as pessoas, não poderá concretizar todas as esperanças, não poderá enfrentar todos os males da Terra. Se não tiver um foco, estará perdido.

Duas áreas pedem uma atenção imediata e constante da administração Obama. Ele terá de dedicar uma boa parte de suas energias para resgatar e recuperar a economia americana e as redes comerciais e financeiras globais a ela interligadas; sem essa recuperação, estaremos todos com um problema grave. Mas Washington não pode se concentrar somente em assuntos econômicos, porque terá de dar uma grande atenção também à política global, isto é, às relações com uma China suscetível e em ascensão, com uma Rússia suscetível e cada vez mais debilitada (acreditem ou não), com o barril de pólvora do Sul da Ásia, os pavorosos campos minados árabes. Nosso novo presidente terá de avançar para o futuro com Adam Smith e John Maynard Keynes numa mão, e Carl von Clausewitz e sir Halford Mackinder na outra.

Mas se um plano de recuperação socioeconômica nacional, mais economia global e geopolítica de grande potência global estão no centro das políticas de primeiro mandato de Obama, quais questões teriam de ser relegadas para segundo plano e empurradas para a periferia? A quais assuntos uma nova administração americana bem intencionada, enormemente otimista e altamente popular não poderá dedicar muita atenção ou recursos, embora tenha de reconhecer sua importância?

A lista é longa e o espaço curto, por isso nos limitaremos às quatro áreas de política que, por relevantes que sejam para seus protagonistas, provavelmente não ficarão no topo da agenda da administração Obama. Todas são importantes, esta é minha impressão, mas duvido que qualquer uma delas receba atenção significativa. Como seria bom se eu estivesse enganado!

Primeiro, América Latina. Sempre me espantei com a pouca atenção que os Estados Unidos dedicam ao resto do Hemisfério Ocidental, particularmente a nosso vizinho do sul, o México, mas também a nações importantes como Brasil e Argentina. Minhas visitas a esses três países nos últimos anos sugerem que existe um anseio generalizado em todo subcontinente por uma relação respeitosa, equilibrada, com seu primo ianque. Mas será que Washington dará muita atenção, além de uma ou duas visitas presidenciais simbólicas? Duvido. Nós não damos à América Latina a atenção que ela merece e seria admirável se Obama pudesse romper essa maneira de pensar.

Segundo, África. Isso soa ridículo, eu sei. Toda a retórica da campanha do novo presidente sugere que o destino do continente onde ele tem raízes familiares está perto de seu coração e mente. Pode ser. Mas precisamente o que a nova administração pode fazer para auxiliar a África é um grande enigma. A melhor ajuda e mais imediata seria promover um forte aumento dos preços mundiais das commodities - café, amendoim, borracha, petróleo, madeiras nobres, fosfato - que reverteria o declínio de suas exportações, proporcionaria moedas fortes e salvaria empregos. Mas a depressão mundial corrente torna isso improvável - e os Estados Unidos preferem preços baixos para as commodities porque importam muitos desses produtos.

Também seria maravilhoso se a administração Obama pudesse milagrosamente trazer paz e segurança para regiões conflagradas que, em pura extensão, são provavelmente duas vezes maiores que a Europa. Nenhuma outra potência externa poderia fazê-lo. Um comprometimento por dez anos de 250 mil soldados americanos, com toda retaguarda logística, poderia consegui-lo. Qual a possibilidade disso? Seria mais fácil um porco voar. Num período de dois ou três anos, até onde declinará a importância da África Central para a nova administração? Não estou sendo cínico, apenas realista. Se houver uma futura grande crise envolvendo Ucrânia ou Taiwan, quando é que o próximo subsecretário de Estado para a África conseguirá falar com o presidente, se é que vai conseguir?

Terceiro, a reforma dos sistemas da Organização das Nações Unidas e de Bretton Woods. Bem, boa sorte. Todos podem ver que as estruturas internacionais econômicas, financeiras, políticas e de segurança de 1944 e 1945 estão defasadas neste século; na verdade, elas provavelmente já estavam defasadas em 1980. Um sistema de segurança global em que somente 5 de 192 nações têm privilégios especiais de participação permanente e de veto (o Conselho de Segurança da ONU) e 3 desses 5 estão vivendo um relativo declínio secular prolongado - Grã-Bretanha, França e, convenhamos, a Rússia farsesca de Putin - é um absurdo.

Como os Cinco Permanentes não abrirão mão de seus poderes, ao menos poderiam permitir que Índia e Brasil entrassem no seu clube. Mas isso provavelmente não terá destaque na lista de urgências da nova equipe administrativa de Washington. Tampouco poderá haver alguma mudança significativa no equilíbrio de poder no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional (FMI), espertamente instalados na Rua 14 NW no centro de Washington; os EUA gostam da situação atual gerada por Bretton Wood. Evidentemente, Obama encorajará o Banco Mundial a ajudar os 60 países mais pobres do mundo, e instigará o FMI para ser gentil com a Islândia. Mas esse não será um item de peso. Quanto a outras reformas da ONU - melhor cooperação para manutenção da paz, melhoria de técnicas de desenvolvimento -, sim, ótimo, mas não precisamos nos preocupar com isso.

Quarto, Europa, a União Européia (UE), relações transatlânticas em geral. Essa conclusão pode provocar reações em Berlim, Roma, Londres e Paris (o que não provoca reações em Paris?), mas suspeito que o êxtase pan-europeu provocado por Obama - lembram-se dos 200 mil fãs no Portão de Brandemburgo? - não levarão a uma identificação recíproca da Europa como a estrela-guia da futura estratégia e política externa americana. A Europa está bem como está. Ela não é um problema, como China, Rússia, Oriente Médio, Irã. Ela é cada vez menos importante como ajuda nos campos estratégico e militar. Ela é definitivamente importante em termos de coordenação econômica, mas esta é feita melhor de Nova York que do Distrito de Colúmbia. Em poucas palavras, o apreço extraordinário que a Europa tem por Obama provavelmente não será correspondido por sua própria estima pela Europa, embora possivelmente ouviremos, nos próximos anos, muitos belos discursos sobre a relação sólida e duradoura. Mas o novo presidente terá preocupações muito mais importantes.

Portanto, os especialistas estão certos: salvar a economia americana e preservar a ordem geopolítica terão de ser as prioridades gêmeas da nova administração Obama. O resto, mesmo campos importantes como África, América Latina, Europa e ONU, vem um pouco atrás. Aqueles maravilhosos e cínicos diplomatas franceses do passado reconheceriam isso. Como era mesmo aquela expressão deles? Gouverner c?est choisir: governar é escolher. Sempre foi assim.



*Paul Kennedy é professor de história na Universidade de Yale e autor, entre outros, de Ascensão e Queda das Grandes Potências (Campus). Atualmente, está escrevendo uma história da 2ª Guerra Mundial

Flexibilização laboral e tentativa de repassar aos trabalhadores o ônus da crise

Para especialista da Unicamp, não é aceitável retirar direitos do trabalhador

Antunes diz que empresas querem “flexibilizar para baixo” a CLT e transferir aos trabalhadores e ao Estado o ônus da crise que criaram

VERENA FORNETTI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Trabalho da Unicamp, afirma que as negociações entre sindicatos e empregadores para flexibilizar direitos e garantir empregos são falaciosas. Para o professor, medidas como a suspensão temporária do trabalho, conhecida como “layoff”, criam apenas a porta de saída para o desemprego e representam um período em que o funcionário sobrevive com uma semi-remuneração.

FOLHA - O sr. acha que a própria CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] permite flexibilizar relações de trabalho, por exemplo, por meio da suspensão temporária do contrato?

RICARDO ANTUNES - A CLT nasceu em 1943 como uma consolidação de leis, enfeixando um conjunto de medidas que compreendiam direitos do trabalho. Ela estabelece um patamar mínimo legal sobre o qual é possível fazer uma negociação entre capital e trabalho, mas nunca rebaixando o patamar dado pela CLT. Esse é o primeiro ponto: ela é flexível para cima, a partir desse patamar que vale para o conjunto da classe trabalhadora. A partir disso, é possível fazer um conjunto de negociações que possam, por exemplo, ampliar direitos. O problema é que as empresas, em uma situação de crise forte, usam um instrumento que é a burla, ou a flexibilização para baixo, da CLT. A CLT permite uma flexibilização para cima. O que as empresas querem agora é usar um mecanismo de burla, como fazem com muita freqüência na legislação social brasileira, de tal modo que elas, responsáveis pela crise, transfiram para os trabalhadores e também para o Estado o ônus da crise. E os lucros permanecem preservados. Ou seja, os responsáveis pela crise são os únicos que não querem pagá-la.

FOLHA - Qual é a sua opinião sobre as negociações em curso entre sindicatos e empregadores?

ANTUNES - A CLT permite que haja um período de cinco meses [conhecido como "layoff"] que permite uma fase em que o trabalhador poderia buscar qualificação. É muito diferente usar esse mecanismo como uma porta de saída do trabalhador do emprego para o desemprego. O problema que está se colocando agora é dessa ordem. A flexibilização das leis trabalhistas tem sido colocada como um imperativo dos capitais em escala global. No Brasil, isso vem acontecendo também há um bom tempo, como se percebe na proposta em que se quer fazer com que o negociado se sobreponha ao legislado. Por exemplo, existe uma lei, uma jornada de trabalho definida, mas, se as empresas negociarem com os sindicatos um aumento ou uma redução dessa jornada de trabalho, o negociado passará a se sobrepor ao legislado. E as empresas querem isso porque sabem que, em um momento difícil, os trabalhadores temem flagelo maior, o desemprego. Em situação adversa, os trabalhadores podem abrir mão de direitos para garantir o mais elementar, que é o trabalho. Mas isto é muito negativo para os trabalhadores e, por isso, deve ser rejeitado.

FOLHA - E a sua opinião sobre as propostas em curso para flexibilizar as leis do trabalho?

ANTUNES - As propostas que estão em curso, como aquela apresentada pelo [secretário do Trabalho e Relações do Trabalho de São Paulo] Guilherme Afif Domingos e muitas outras, não trazem nenhuma vantagem real para os trabalhadores, mas grandes desvantagens. Não é verdade que, fazendo esse tipo de concessão, o emprego estará garantido. Provavelmente os trabalhadores vão ganhar um estágio de cinco a dez meses de semi-remuneração, que é o caminho abrandado do desemprego. Isso não é bom para a classe trabalhadora. E não é aceitável. E em todas as experiências de flexibilização ocorridas -veja o exemplo inglês ou norte-americano- quem acaba perdendo é a classe trabalhadora.

Fonte: Folha de S. Paulo

sábado, 20 de dezembro de 2008

Algumas cidades do mundo tomadas por lutas sociais

Chega ao terceiro dia a ocupação por estudantes da New School University, de Nova York. Os estudantes se manifestam por melhoria das condições de ensino da universidade e contra as consequências que o país vem sofrendo e sofrerá devido à atual crise econômica.
Não somente Nova York, mas a Grécia também é local de protestos contra as atuais condições da economia mundial e o governo local. Umas das principais universidades do país, a Universidade Politécnica de Atenas é ocupada. Alguns dos lemas das manifestações são "Abaixo o governo de sangue, pobreza e privatizações", ou "Estado assassino" em protesto contra a repressão que os manifestantes vem sofrendo por parte da polícia. O governo grego reage às manifestações prendendo parte dos manifestantes.
É de importante percepção o ocorrido em uma ótica de manifestações pós-crise econômica. Vale lembrar que a crise de 1929, que é paulatinamente comparada a esta, foi responsável por grandes transformações sociais não somente nos Estados Unidos, mas também ao redor do mundo.
Segue abaixo a carta traduzida do comitê de ocupação da New School University.
"De Nova Iorque:
Acabamos de ocupar a ‘New School University’. Nós liberamos este espaço para nós mesmos, e para todos aqueles que queiram se juntar nós, para uso autônomo geral. Nós tomamos a universidade em solidariedade explícita com o aqueles que ocupam as universidades e as ruas na Grécia, na Italia, na França e na Espanha. Esta ocupação começa como uma resposta às circunstâncias específicas na ‘New School’, sobre a corporatização da universidade e no empobrecimento do ensino em geral. Entretanto, não é apenas esta universidade mas igualmente a cidade de Nova Iorque que está em crise: nos próximos meses, milhares de nós estaremos perdendo nossos empregos, a moradia vai atingir preços exorbitantes e inacessível a muitos e haverá picos no custo de vida.
Assim, nós afirmamos que a natureza geral destas circunstâncias intoleráveis reside na do capitalista em todos seu espectro, em nossas universidades e em nossas cidades, e em todas as relações sociais. Por este motivo, o que começa hoje à noite na “New School” não pode, e não deve, ser contido aqui.
De tal forma que: com esta ocupação, nós inauguramos uma seqüência de revolta em New York City e nos Estados Unidos, uma onda de ocupações, bloqueios, e greves nesse momento de crise.
Podem ter certeza de que isso é apenas o começo.
Com solidariedade e amor,
de Nova Iorque
à Grécia, A Italia, a França e a Espanha,
á insurreição vindoura!
Comitê de ocupação da Universidade “New School”"
Alguns links que trazem notícias dos ocorridos nas duas cidades.
Blog da ocupação nova-iorquina : http://www.newschoolinexile.com/
Nota da ocupação da universidade grega: http://athens.indymedia.org/front.php3?lang=el&article_id=943211
Link em português com breves notícias: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/12/435558.shtml

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Encontro do Reitor da Unb com Cançado Trindade

Cançado Trindade diz que tortura é crime contra a vida, portanto imprescritível

Regina Bandeira
Da Secretaria de Comunicação da UnB

Prestes a se mudar para a Holanda, onde a partir de fevereiro assumirá assento na
Corte Internacional de Justiça, a chamada Corte de Haia, o ex-presidente da Corte
Interamericana de Direitos Humanos e professor de Direito Internacional da UnB,
Antônio Augusto Cançado Trindade, de 61 anos, defendeu a criação de uma espécide de
tribunal da verdade para o julgamento dos crimes ocorridos no governo militar.

"Já expus minha opinião sobre isso: não há anistia para tortura.; a auto-anistia não
pode abarcar um crime contra a humanidade", afirmou Cançado Trindade, durante
audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado,
nesta quinta-feira, 18, sobre o recente debate travado entre o Ministério da Justiça
e da Defesa em relação a aplicação da Lei da Anistia. "Não entendo esse imbróglio;
para mim, a questão é cristalina", complementa.

Em visita de cortesia ao reitor da UnB, José Geraldo de Souza, nesta sexta, 19, o
jurista avaliou as chances do Brasil conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança
da ONU. "Temos toda a chance de ocuparmos a vaga latino-americana, atualmente
ocupada pelo Panamá", afirmou Cançado Trindade.

Eleito com um número expressivo de votos - 163 dos 192 países-membros da Assembléia
Geral da ONU, o jurista brasileiro também recebeu 14 dos 15 votos do Conselho de
Segurança da ONU, dos quais apenas os Estados Unidos se abstiveram.

Para José Geraldo, especialista em Direitos Humanos, a presença de Cançado Trindade
na corte internacional fortalece a candidatura brasileira, além de ser um orgulho
para a universidade. "Ela marca a densidade do pensamento jurídico brasileiro na
Assembléia das Nações Unidas", afirmou.

Durante encontro com o reitor, o jurista reiterou que pretende continuar defendendo
os direitos humanos em Haia e criticou as novas regras impostas por países do
hemisfério norte criminalizando a migração não documentada. "Os mesmos países que se
beneficiaram das fronteiras abertas estão, agora, violando princípios dos direitos
humanos", disse.

O jurista também defendeu maior diálogo da Justiça com outras áreas do conhecimento.
"Nunca me contentei apenas com documentos", disse o juiz, ao defender a participação
de peritos, psicólogos, sociólogos, antropólogos e das próprias vítimas nos
julgamentos. "São informações fundamentais para avaliarmos o dano moral de pessoas
em casos como os massacres ocorridos recentemente em alguns países
latino-americanos" , argumentou o jurista.

Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos por duas vezes, Cançado
Trindade revelou que sua gestão sempre foi voltada para o fortalecimento da
participação de acusados e vitimados no tribunal. Nesse sentido, o juiz reformou o
regulamento da Corte em 2000, permitindo o acesso direto dos indivíduos à corte e a
participação dos envolvidos em todas as etapas do procedimento até o julgamento.

"Até então, as pessoas tinham de se apresentar através de um órgão distinto, a
Comissão Interamericana, sediada em Washington, que fazia a triagem das denúncias,
dos argumentos e das provas", explica Cançado Trindade.

JUSTIÇA - Devotado aos direitos humanos, o jurista revelou o sentimento de
satisfação e enriquecimento encontrado nos tribunais internacionais. "A defesa dos
direitos humanos me permitiu entender que nossos protegidos são nossos protetores -
eles nos ajudam a dar sentido à própria existência", concluiu.



Antônio Augusto Cançado Trindade foi eleito juiz da Corte Internacional de Justiça
no dia 6 de novembro de 2008. Ph.D. (Cambridge) em Direito Internacional; Juiz e
Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da
Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco; Ex-Consultor Jurídico do
Ministério das Relações Exteriores do Brasil; Membro Titular do Institut de Droit
International e do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia; Membro
das Academias Mineira e Brasileira de Letras Jurídicas. O jurista tomará posse no
dia 6 de fevereiro em Haia, na Holanda, mas o primeiro julgamento do ano está
marcado para um mês depois.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Ex-Presidente da Funai critica decisão do STF

O ex-Presidente da Funai Sydney Possuelo no Estado de São Paulo de 14 de dezembro de 2008 critica a decisão do STF sobre a demarcação da raposa serra do sol.
O sertanista Sydney Possuelo é uma voz dissonante entre os indigenistas que comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, o que deve provocar a retirada dos arrozeiros da região.

"Não foi uma vitória", disse Possuelo, indignado com as ressalvas feitas pelo ministro Carlos Alberto Direito, acolhidas pela maioria de seus colegas. O voto de Direito estabeleceu, por exemplo, que a construção de bases militares e estradas em reservas pode ser feita sem consulta prévia às comunidades e à Fundação Nacional do Índio (Funai).

Depois de liderar expedições que marcaram os primeiros contatos de sete povos com homens brancos, nos anos 70, Possuelo passou a contestar o próprio modelo de política indigenista que o havia transformado em celebridade no mundo da antropologia. Em vez de "civilizar" os índios isolados, concluiu, o melhor seria monitorá-los e protegê-los de longe. No fim dos anos 80, essa política acabou adotada pela Funai - órgão que Possuelo presidiu de 1991 a 1993. A seguir, trechos de entrevista concedida pelo sertanista:

A decisão do STF foi vista como restritiva à atuação da Funai. Como o senhor a interpretou?

Tive a impressão de que os ministros não estavam interpretando leis, mas legislando. Essa declaração de que as Forças Armadas podem entrar nas áreas indígenas quando quiserem, sem pedir licença, fere o espírito com que o Estado brasileiro reservou aquelas terras para ser o habitat e o lar dos índios - lar que, na nossa sociedade, é inviolável. Não se demarca a casa de um povo para que ela seja invadida a qualquer momento ou para que se faça uma rodovia lá dentro. Numa fazenda que esteja na faixa de fronteira o Exército vai entrar quando quiser? Vai fazer uma estrada na hora em que quiser? O que quer fazer nas terras indígenas o Estado não faria numa fazenda particular.

Na sua opinião, os índios não têm nada a comemorar?

Não houve vitória. Decidiram que a demarcação tem de ser contínua, mas isso é um fato que o Supremo apenas reconheceu. Não se pode pulverizar a terra de um povo. Imagine que você ganhe uma casa, mas a cozinha fica em um bairro e o quarto em outro. A sociedade dos brancos continua ferina e horrível contra os povos indígenas. Cada vez que se mexe na legislação, é para piorar. Nada que engravatados brancos façam nas suas reuniões vem a melhorar a condição dos índios.

Os críticos das demarcações, com base na baixa densidade demográfica das reservas, dizem que os índios têm terras demais. Como o senhor vê esse argumento?

O Estado de Roraima, por exemplo, reclama do que nunca foi dele. Quando foi criado, o Estado já continha aquelas terras indígenas, que não passam a ser indígenas somente depois de demarcadas. O que faz uma área indígena é a presença dos índios. A União apenas reconhece a existência desse habitat imemorial. Dizem que a terra é grande demais? Mas são povos que não têm um supermercado ali na esquina, a produção não está centralizada em determinada área. A vida se organiza não em torno de um único lugar, mas na beira de um rio, no alto de uma montanha, na planície onde se planta, no cemitério distante...

No aspecto econômico, os críticos vêem as reservas como pedaços do Brasil alijados do desenvolvimento.

Se a terra é destinada a um povo, e a Constituição diz que assim devemos proceder, o destino da terra deve ser dado por aquele povo. De um modo geral, os índios são tecnologicamente menos desenvolvidos que nós, mas não menos inteligentes, não menos sábios. Falar em termos econômicos me parece complicado, é como calcular se uma floresta vale mais dinheiro em pé ou derrubada. É uma maneira muito comercial de olhar o mundo. Em Roraima, com exceção de algumas tribos ianomâmis, os povos indígenas já estão há muito tempo num processo de integração com a sociedade, inclusive econômica. Eles são um dos maiores produtores de carne bovina na região. Ninguém fala disso.

O senhor tirou muitos índios do isolamento, fez uma espécie de ponte entre esses povos e a chamada civilização. Que balanço faz desse processo?

Na década de 70 nós tivemos um trabalho que coincidiu com a época do Brasil grande, do "ame-o ou deixe-o", de toda a reconquista moderna da Amazônia brasileira, através da abertura de estradas, da criação de novos núcleos urbanos, do assentamento de trabalhadores rurais. Nessa época fiz sete contatos com grupos totalmente desconhecidos, sete povos. E foi fazendo esses contatos que aprendi a ver e a sentir os malefícios que causamos a esses povos.

A partir do marechal Rondon, em 1910, o Estado brasileiro passou a ter, como postura oficial da República, uma visão ligada ao positivismo de que esses povos precisavam ser alcançados e civilizados, para viver as benesses do progresso. E desde então cerca de 90 povos desapareceram na volúpia desenvolvimentista nacional.

Foi fazendo esse tipo de contato que mudei a política indigenista nacional. No fim de 1986, depois de anos tentando, finalmente foi aceita a filosofia de não fazer mais contatos com grupos isolados. Demarcar as terras e deixar esses povos viverem a sua vida tradicional. É a política adotada hoje pela Funai. Mas tudo isso recebe um estremecimento com a manifestação do Supremo.

Há um projeto do governo para controlar o acesso de ONGs a terras indígenas. O senhor é a favor?

Primeiro o governo precisa ter uma política clara sobre o que fazer com esses povos. Demarcar terras, levar saúde, educação. Se o Estado não pode fazer isso sozinho e precisa do auxílio de uma ONG, não há problema, desde que ela se comprometa a atuar dentro dos princípios estabelecidos. O Estado precisa controlar. O que não pode é cada ONG fazer o que bem entender dentro das terras indígenas.

A nacionalidade do Estado brasileiro

O caderno "Aliás" do Estado de São Paulo de 14 de dezembro de 2008 publica importante texto de José de Souza Martins coincidente com a nossa posição interpretativa a respeito da decisão do STF no caso da raposa serra do sol. Na verdade, estamos caminhando mais para o reforço de uma nacionalidade concedida pelo Estado brasileiro.
A nova nacionalidade brasileira
Reserva Raposa Serra do Sol fortalece mais a União do que índios aparentemente vitoriosos


- A votação ainda em andamento no STF, mas já decidida, quanto à forma da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, se contínua ou em ilhas territoriais, muda conceitos, altera tendências históricas e cria um problema muito maior, ainda que diferente, do que o que motivou o processo. É que há implicações laterais na decisão que está sendo tomada pelos ministros que nos obrigam a repensar até mesmo nossa identidade nacional. Como ressaltou o ministro Cezar Peluso, com razão, à luz de nossas tradições históricas, no Brasil só há uma nacionalidade, a nacionalidade brasileira, que precede outras identidades. Aqui as diferenças étnicas, lingüísticas e culturais não têm nem a consistência nem os atributos de nacionalidades que, no abrigo desse conceito, possam invadir as atribuições do Estado. Nossa nacionalidade é a nacionalidade do Estado, fica claro agora.

Basicamente, os juízes do Supremo estão tendo em conta que um dos fatos em jogo no presente julgamento é o de que o tratamento que uma declaração das Nações Unidas vem sugerindo a nativos e minorias étnicas, em todo o mundo, pode implicar o reconhecimento de identidades regionais, étnicas ou tribais como nacionalidades. Nesse tratamento poderiam constituir germes de reivindicações nacionais em conflito com a afirmação da nacionalidade. A preocupação não é descabida. Desde os anos 70, o tratamento de povos indígenas vem sendo dado aos diferentes grupos indígenas brasileiros por entidades religiosas e organizações não-governamentais, que têm sido os mais importantes e ativos grupos de mediação entre índios considerados imaturos, e como tais tratados, e o Estado que legalmente os tutela. Não fossem muitas delas, aliás, o extermínio de povos inteiros a partir da expansão da fronteira, com a ocupação territorial dos anos 70, teria sido mais trágico do que foi. Nessa concepção há, sem dúvida, uma difusa tese de nacionalidade política, mesmo que não intencional.

A terra está nas raízes desses dilemas. Desde nossa primeira Constituição republicana, o governo da União, ao transferir o domínio das terras devolutas aos Estados da Federação, na prática abriu mão do território em favor do repasse dessas terras aos particulares. Foi a moeda de troca do clientelismo político da República Velha. As terras indígenas ficaram à mercê do risco da privatização, até pelo esvaziamento genocida de territórios indígenas, de que é possível fazer extensa lista de casos.

No movimento da União para restituir ao Estado nacional o domínio sobre o território, em questões substantivas como a dos povos nativos, a do controle das riquezas nacionais e a da segurança nacional, a colocação dos índios sob tutela do governo federal e o reconhecimento do seu direito imemorial às terras que ocupam foi dos mais importantes capítulos da história da reparação do grave erro da perda absoluta do domínio sobre o território, pelo Estado nacional, decorrente da Lei de Terras de 1850. Litígios como o agora apreciado pelo STF decorrem do conflito entre a privatização das terras na propriedade absoluta instituída por aquela lei do Império e os esforços da União para consertar o erro cometido e restituir ao Estado a base territorial de sua soberania. Na mesma linha de recuperação de domínio vão as leis fundiárias do regime militar e a política de reforma agrária que sobrepôs os interesses nacionais ao direito de propriedade.

No caso presente, o Supremo reforça o princípio essencial desse movimento que restitui à União o domínio sobre os territórios ocupados pelas populações indígenas. Diferente do que supõem vários dos ministros que já se pronunciaram, não se trata propriamente de um reparo a uma injustiça histórica contra as nossas populações nativas. A injustiça não está apenas na sua privação dos respectivos territórios, o que já ocorreu irremediavelmente em larga extensão. As terras ora cogitadas são residuais de extenso esbulho. A injustiça está sobretudo nas circunstâncias do contato entre brancos e índios, de que a terra é um componente decisivo, mas não único. Nesse sentido, a decisão que está sendo tomada, sobretudo as 18 condições que o ministro Menezes Direito estabeleceu para o reconhecimento do princípio da reserva territorial contínua, longe de dar à decisão do Supremo o caráter de uma vitória dos índios, representa de fato uma derrota das populações indígenas. Elas ganham o território, mas ficam expostas aos riscos culturais do contato compulsório dos executores das políticas decorrentes das razões de Estado.

Se, como argumenta o ministro Peluso, somos uma só nacionalidade, as 18 condições do ministro Menezes Direito não incluem nenhuma consideração sobre a pluralidade cultural, aí incluída a lingüística, do povo brasileiro. Diferença que não afeta nossa nacionalidade, apenas a enriquece. Nesse sentido, ao estabelecerem condições para os índios, não estabelecem nenhuma condição para o poder público e seus agentes no trânsito e ocupação de áreas do território indígena. Ao negar aos índios qualquer forma de soberania territorial, ainda que parcial, nega-lhes também o direito de exigirem, no exercício dos privilégios legais agora concedidos ou reconhecidos ao Estado, a aculturação parcial inversa, na perspectiva dos índios, uma certa indianização, desses ocupantes consentidos e mesmo temporários, como os militares. Para que, no devido e prévio conhecimento das culturas e dos costumes indígenas, não se tornem agentes de uma violência até mais grave do que a invasão de suas terras pelos arrozeiros e seus empregados. Temos trágica história de violência já apontada por Darcy Ribeiro, de que os agentes de contato com as populações indígenas não são os melhores representantes da civilização. Tem sido comum, na frente de expansão e do contato com essas populações, que os agentes da sociedade branca as considerem preferentemente animais do que humanos, sentido que tem, aliás, no sertão, a palavra caboclo.

sábado, 13 de dezembro de 2008

O audio da sessão da decretaçaõ do AI-5

www.folha.com.br/083444 A Folha de São de Paulo de 13 de dezembro de 2008 publicou um caderno especial sobre os 40 anos da decretação do AI-5. Temos a oportunidade com base no endereço eletrônico referido ouvir na integra o audio da sessão histórica do Conselho de Segurança Nacional em 13 de dezembro de 1968. Merece destaque a posição do então Vice-Presidente da República Pedro Aleixo que nos dá uma lição de defesa de uma ordem constitucional liberal e de garantias de direitos indiduais (não há ainda entre nós a noção de Direitos Fundamentais). Ouçam o audio contido no site indicado. Audio este que estava guardado com o jornalista Elio Gaspari.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O futuro do Tratado de Lisboa

O futuro do Tratado de Lisboa
A "Folha de São Paulo" em 12 de dezembro de 2008 traz matéria sobre o futuro do Tratado de Lisboa

Irlanda fará novo referendo sobre Europa
Cúpula da União Européia emenda o Tratado de Lisboa para tentar reverter a rejeição dos irlandeses



Os líderes da União Européia chegaram ontem a um acordo para que a Irlanda realize novo referendo sobre o Tratado de Lisboa, novo conjunto de regras para o funcionamento do bloco, rejeitado em junho passado pelos eleitores do país.
Reunidos em Bruxelas, os governantes do bloco buscaram uma forma conciliatória, amenizando os temores dos irlandeses, num esforço para garantir a aprovação, necessária para a entrada em vigor do tratado.
A Cúpula Européia, último encontro sob a presidência da França, que passa o cargo em janeiro para a República Tcheca, continua hoje, com prosseguimento das discussões sobre o pacote de estímulo econômico estimado em 200 bilhões e sobre o plano ambiental que prevê redução de 20% das emissões de carbono até 2020.
A questão irlandesa é um dos pontos cruciais do encontro, pois o Tratado de Lisboa, que incorpora elementos do projeto de Constituição abortado em 2005 e dá maior agilidade ao processo decisório da UE, não entrará em vigor sem a ratificação da Irlanda.
O rascunho do termo de compromisso com Dublin prevê que todos os membros do bloco mantenham uma cadeira na Comissão Européia -o texto original previa rotatividade. Dublin pedia também uma garantia explícita de que poderia manter a neutralidade militar e concessões na política de impostos e direitos trabalhistas.
Os outros 26 membros da UE já aprovaram o novo tratado ou estão concluindo o processo de ratificação parlamentar. A Constituição irlandesa, porém, exige que o acordo passe por votação popular. O Tratado de Nice (2003), que ainda rege o funcionamento do bloco, prevê a unanimidade para decisões de maior porte.
A experiência recente da UE mostra que falta sintonia entre os líderes políticos e os eleitores quanto ao alcance do bloco europeu. Em 2005, o projeto de Constituição foi reprovado em referendos na França e na Holanda. A surpreendente derrota nos dois países, membros fundadores da UE, sepultou temporariamente a Carta. Mecanismos de decisão supragovernamentais previstos no projeto, porém, foram incorporados no Tratado de Lisboa.
A corte européia aos eleitores irlandeses, que devem votar em referendo até 31 de outubro de 2009, incluiu ontem uma outra pequena concessão. O bloco anunciou um pacote emergencial para socorrer a indústria suína da Irlanda, em crise após a contaminação de algumas fazendas por dioxina. A promessa de ajuda de 15 milhões pôs fim a quatro dias de paralisação no setor.
Uma nova reprovação dos eleitores irlandeses representaria uma crise institucional e poderia sepultar o Tratado de Lisboa. A UE não tem poderes para afastar um de seus membros, pelas regras atuais.

Sem fronteiras
Fora da UE, a Suíça passa hoje a fazer parte do espaço Schengen, área de livre circulação de pessoas à qual pertence a maioria dos países do bloco. Não há controle das fronteiras entre os países da zona Schengen, apenas das externas. O país já tinha acordo para trânsito livre de seus cidadãos na área, mas ele não englobava turistas e residentes estrangeiros.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O momento cosmopolita

Texto de Ulrich Beck publicado pela revista Com Ciência da SPBC em dezembro de 2008. Leiam e Leiam a citada revista.

Que comédia impagável tem se desdobrado nas conversas de nível internacional no presente! Eu estou, é claro, falando sobre a crise financeira em curso. Durante a noite, a idéia missionária do Ocidente, a economia de livre mercado, que justificou nosso aborrecimento em relação ao comunismo, assim como nossa lacuna filosófica sobre o sistema chinês atual, desmoraram. Com o fanatismo dos convertidos, banqueiros – agora "banksters" uma fusão de banqueiro com ganster aos olhos do público – estão exigindo a intervenção do Estado para cobrir suas perdas. Então, será que a forma estatal chinesa de gerir como a indústria privada, até aqui ridicularizada, maldita e temida, também começa a encontrar seu caminho nos centros anglo-saxões do capitalismo laissez-faire? Como podemos explicar esse poder revolucionário de riscos financeiros globais?
Nesta conferência quero investigar a ironia do risco. O risco é ambivalência. Estar em risco é a maneira de ser e de governar no mundo da modernidade; estar em risco global é a condição humana no início do século XXI. Mas, contra a natureza do sentimento de desgraça atualmente difundido, gostaria de perguntar: qual artifício da história é igualmente inerente à sociedade de risco e emerge com sua realização? Ou, formulando de maneira mais firme: há uma função iluminadora, um “momento cosmopolita da sociedade de risco mundial? Assim, quais são as oportunidades da mudança climática e da crise financeira, e que formato elas tem?
Há uma nostalgia incorporada nas fundações do pensamento sociológico europeu, que nunca desapareceu. Talvez, paradoxalmente, essa nostalgia pode ser superada com a teoria da sociedade de risco mundial. Meu objetivo é uma teoria nova, não nostálgica, crítica, para olharmos para o passado e futuro da modernidade. Em meu argumento quero manter as duas visões contraditórias da modernidade – auto-destruição e a capacidade de recomeçar – em equilíbrio uma com a outra. Gostaria de demonstrar isso em três etapas (contando com resultados de pesquisa empírica do Munich Research Centre "Reflexive Modernization" Centro de Pesquisa “Modernização Reflexiva" de Munique):
1. Velhos perigos – novos riscos: o que há de novo sobre a sociedade de risco?
2. “Momento cosmopolita": o que isso significa?
3. Conseqüências: há necessidade de uma mudança de paradigma nas ciências sociais?*
1. Perigos antigos – novos riscos: o que há de novo sobre sociedade de risco?
A sociedade moderna se tornou uma sociedade de risco à medida que se ocupa, cada vez mais, em debater, prevenir e administrar os riscos que ela mesma produziu. Isso pode ocorrer, muitos objetarão, mas é indicativo de uma histeria e de uma política do medo incitadas e agravadas pelos meios de comunicação de massa. Ao contrário, alguém que olha sociedades européias, estando de fora, não teria que reconhecer que os riscos que nos acometem são riscos luxuosos, mais do que qualquer outra coisa? Apesar de tudo, nosso mundo parece muito mais seguro do que aquele, por exemplo, das regiões da África, do Afeganistão ou do Oriente Médio dilaceradas pela guerra. As sociedades modernas não são distinguidas exatamente pelo fato de serem, em grande medida, bem sucedidas em manter contingências e incertezas sob controle, por exemplo no que diz respeito aos acidentes, à violência e à doença?
Tão verdadeiro como todas essas observações possam ser, falta-lhes o ponto mais óbvio sobre o risco: isto é, a distinção chave entre risco e catástrofe. Risco não significa catástrofe. Risco significa a antecipação da catástrofe. Os riscos existem em um estado permanente de virtualidade, e transformam-se “atuais" somente até o ponto em que são antecipados. Riscos não são "reais", eles estão se tornando "reais" (Joost van Loon). Neste momento em que os riscos se tornam reais – por exemplo, na forma de um ataque terrorista – eles deixam de ser riscos e tornam-se catástrofes. Os riscos já estão em outras partes: na antecipação de novos ataques, nas mudanças climáticas ou em uma crise financeira potencial. Riscos são sempre eventos ameaçadores. Sem técnicas de visualização, sem formas simbólicas, sem suportes, sem meios de comunicação de massa, etc, os riscos não são nada. Em outras palavras, é irrelevante se vivemos em um mundo que esteja de fato, ou em alguma medida, "objectivamente" mais seguro do que qualquer outro mundo; se a destruição e os desastres são antecipados, então isso produz uma compulsão para a ação.
Isso esconde, por sua vez, uma ironia, a ironia da promessa da segurança dada por cientistas, empresas e governos, que, de maneira extraordinária, contribui para um aumento nos riscos. Percebendo que são acusados em público por permitirem o risco, ministros saltam em rios ou fazem com que seus filhos comam hambúrgeres, para "provarem" que tudo está "absolutamente" seguro e sob controle – ao que se segue, do mesmo modo que a noite segue o dia, que, a cada dúvida levantada, cada acidente viola a base do inabalável direito à segurança que parece ser prometido.
Em minha primeira publicação, em 1986, descrevi a Sociedade de risco (1992) como "uma condição estrutural inegável da industrialização avançada" – e critiquei a "moralidade matematizada" do pensamento do especialista e do discurso público sobre “fatores de risco". Enquanto a orientação política sobre a avaliação de risco pressupunha a viabilidade dos riscos, apontei que mesmo o cálculo objectivo mais contido e moderado sobre as implicações do risco envolve uma política, uma ética e uma moralidade por trás. O risco “não é redutível ao produto da probabilidade da ocorrência multiplicada pela intensidade e pelo alcance do dano potencial'. É antes, um fenômeno socialmente construído, no qual algumas pessoas têm uma capacidade maior de definir riscos do que outras. Não são todos os atores que tiram proveito da reflexividade do risco – somente aqueles com o real escopo para definir seus próprios riscos. A exposição ao risco está substituindo a classe como a principal desigualdade da sociedade moderna, em função de como o risco é reflexivamente definido por atores: “a definição das relações na sociedade de risco devem ser concebidas analogamente às relações de produção de Marx". As desigualdades da definição permitem atores poderosos de maximizar riscos para os outros e minimizar os riscos para “si mesmos". A definição de risco é, essencialmente, um jogo de poder. Isto é especialmente verdadeiro para a sociedade de risco na qual os governos ocidentais ou os poderosos atores econômicos produzem e definem riscos para os outros.
O risco aparece no nível internacional quando Deus permite. Riscos pressupõem decisões humanas. Eles têm consequências duplas Janus-faced, em parte positivas, em parte negativas, de decisões e intervenções humanas. Com relação aos riscos é inevitável levantar a questão, altamente explosiva, sobre a responsabilização e responsabilidade sociais, e isto é igualmente verdadeiro onde as regras de prevalência permitem a responsabilidade somente em casos extremamente excepcionais. As reconhecidas decisões governadas pelas raízes sociais do risco fazem com que seja completamente impossível exteriorizar o problema da responsabilidade. Alguém, por outro lado, que acredita em um Deus pessoal, tem à sua disposição um espaço de manobra e um significado para suas ações face às ameaças e às catástrofes. Através das orações e dos bons trabalhos as pessoas podem ganhar o favor e a remissão de Deus e, desta forma, contribuir ativamente para sua própria salvação, mas também àquela de sua família e comunidade. Há, consequentemente, uma conexão próxima entre a secularização e o risco. Quando Nietzsche anuncia: Deus está morto, portanto há a – irônica – consequência que, a partir de agora, os seres humanos devem encontrar (ou inventar) suas próprias explicações e justificativas para os desastres que os ameaçam.
A teoria da sociedade de risco mantém, entretanto, que as sociedades modernas são moldadas por novos tipos de riscos, que suas fundações são agitadas pela antecipação global de catástrofes globais. Tais percepções do risco global são caracterizadas por três características:
1. Des-localização: suas causas e conseqüências não são limitadas a uma posição ou espaço geográfico, eles são, em princípio, onipresentes.
2. Incalculabilidade: suas consequências são, em princípio, incalculáveis; na base é uma questão de riscos "hipotéticos", que não são menos baseados na falta de conhecimento induzida pela ciência e dissidência normativa.
3. Não-compensabilidade: o sonho da segurança da primeira modernidade foi baseado na utopia científica de tornar as consequências inseguras e os perigos das decisões sempre mais controláveis; acidentes poderiam ocorrer, contanto que, e porque, fossem considerados compensáveis. Uma vez que o sistema global de finanças desmoronou, uma vez que o clima irrevogavelmente mudou; uma vez que os grupos terroristas possuem armas da destruição em massa – então é tarde demais. Dada essa nova qualidade de “ameaças à humanidade" – argumenta Francois Ewald – a lógica da compensação sucumbe e é substituída pelo princípio da precaução pela prevenção. Não somente a prevenção está ganhando prioridade sobre a compensação, mas estamos igualmente tentando antecipar e impedir os riscos cuja existência não foi provada.
Deixe-me explicar esses pontos – des-localização, incalculabilidade, não-compensabilidade – mais detalhadamente. A des-localização de riscos de interdependência incalculáveis ocorre em três níveis:
1. Espacial: os riscos novos (por exemplo, a mudança climática) não respeitam a Estado-nação ou qualquer outra fronteira;
2. Temporal: a atual antecipação das catástrofes futuras não pode mais ser baseada em experiências passadas; assim, o risco como expectativa do inesperado, a colonização do futuro baseada na probabilidade não funciona; os novos riscos têm um período de latência longo (por exemplo, o lixo nuclear) de modo que seu efeito ao longo do tempo não possa ser determinado e limitado.
3. Social: graças à complexidade dos problemas e da duração dos efeitos em cadeia, a atribuição das causas e conseqüências já não é possível com nenhum grau de confiabilidade (por exemplo, as crises financeiras).
A descoberta da incalculabilidade do risco está muito ligada à descoberta da importância do não-conhecimento para arriscar o cálculo, e é parte de um outro tipo de ironia, que essa descoberta do não-conhecimento, surpreendentemente, ocorreu em uma disciplina que hoje não quer ter relação com isso: economia. Knight e Keynes inicialmente insistiram em uma distinção entre formas de contingência previzíveis e não-previzíveis ou calculáveis e não-calculáveis. Em um artigo famoso no periódico The Quarterly Journal of Economics (February, 1937) Keynes escreve:
"por 'conhecimento incerto', deixe-me explicar, não quero dizer meramente distinguir o que é sabido do que é meramente provável. O sentido em que estou usando o termo é aquele do preço do cobre e a taxa de juros em vinte anos, toda a obsolência de uma nova invenção são incertos. Sobre essas questões não há nenhuma base científica em que se possa formar qualquer probabilidade calculável. Nós simplesmente não sabemos.
Entretanto, a advertência de Keynes para abrir o campo da tomada de decisão econômica às incertezas das catástrofes sistemáticas futuras, escondidas em práticas normalizadas da tomada de risco, foi inteiramente negligenciada no desenvolvimento subsequente da atual economia (incluindo a economia keynesiana em voga).
O ponto crucial, entretanto, é não somente a descoberta da importância de não saber, mas que simultaneamente a reivindicação do conhecimento, do controle e da segurança do Estado e da sociedade era, certamente tinha que ser, renovada, aprofundada e expandida. A ironia está na reivindicação institucionalizada da segurança, para se ter que controlar algo mesmo se não se sabe se ele existe! Mas, por que deve a ciência ou uma disciplina se preocupar com algo que nem ao menos conhece? Há certamente uma resposta sociológica conclusiva para isso: porque face à produção de incertezas manufaturadas insuperáveis, a sociedade, mais do que nunca, confia e insiste na segurança e no controle.
Assim, a sociedade de risco está diante de um problema complicado (aqui não se pode falar sobre ironia) de ter que tomar decisões sobre inimagináveis bilhões de dólares, libras e euros ou mesmo sobre guerra e paz (terrorismo nuclear), com base no não-conhecimento mais ou menos inadimissível.
O limite entre a racionalidade e a histeria torna-se obscuro. Dado o direito investido neles para evitarem perigos, os políticos, em particular, podem facilmente ser forçados a proclamar uma segurança que não podem honrar – porque os custos políticos da omissão são muito mais elevados do que os custos do exagero. No futuro, consequentemente, não será fácil, no contexto de promessas de segurança do Estado e a fome por catástrofes dos meios de comunicação de massa, limitar e impedir ativamente um jogo de poder diabólico com a histeria do não-conhecimento. Nem mesmo ouso pensar sobre tentativas deliberadas de instrumentalizar essa situação.
2. O que significa “momento cosmopolita'?
A sociedade de risco é uma sociedade revolucionária latente em que o estado de normalidade e o estado de emergência se sobrepõem. Isso pode explicar o poder histórico do risco global, que é negligenciado pela teoria social convencional e pela sociologia do risco: ao tratar de riscos catastróficos o presente de um estado de emergência futuro está em negociação. O estado de emergência antecipado não é mais nacional, mas cosmopolita. A crença de que os riscos que a humanidade enfrenta podem ser evitados pela ação política tomada em nome da humanidade ameaçada torna-se um recurso sem precedentes para o consenso e a legitimação, nacional e internacionalmente. Neste sentido, os princípios fundamentais da modernidade, incluindo o princípio do livre mercado e a ordem própria da Estado-nação, tornam-se sujeitos à mudança, à existência das alternativas, e à contingência.
Você pode até mesmo dizer que o poder histórico do risco global está além de todos os “salvadores" revelados pela história: não o proletariado, não os excluídos, não o Iluminismo, não o público global, não os migrantes da sociedade global – se alguém ou algo, os riscos percebidos que enfrentam a humanidade, que não podem ser nem negados nem exteriorizados, é capaz de despertar as energias, o consenso, a legitimação necessária para criar uma comunidade global do destino, um que demolirá os muros das fronteiras e egotismos da Estado-nação – pelo menos por um momento global no tempo e além da democracia.
Aqui devemos distinguir duas variações da importância central para a teoria da sociedade de risco: de um lado, a antecipação dos efeitos colaterais não intencionadas de catástrofes (tais como a mudança climática e a crise financeira). Por outro lado, a antecipação de catástrofes intencionais, não intencionadas e intencionadas, tem como principal exemplo o terrorismo suicida transnacional. É, de fato, uma questão de se desenvolver uma teoria política da sociedade de risco em vista da distinção chave entre a antecipação de catástrofes
As catástrofes não intencionais (catástrofes climáticas, etc) são condicionais em um sentido ambivalente: são uma mistura do bem e do mal. Elas causam uma combinação particular de utilidade e uma destruição mais ou menos provável, úteis para alguns, destrutiva para outros. Esse entrelaçamento e antagonismo de esperanças e medos sociais desigualmente distribuídos não se mantém com a antecipação de catástrofes intencionais, porque talvez a probabilidade remota de ataques terroristas não é contrabalanceada por nenhum benefício compensatório. O mundo terrorista é a tentativa deliberada de se criar o inferno na Terra.
Pode-se pensar, inicialmente, que Carl Schmitt antecipou o potencial político do estado de emergência induzido pela crise financeira e pela mudança climática. Entretanto, em sua teoria da soberania, Schmitt associa o estado de emergência exclusivamente à Estado-nação e com um ataque (potencial) vindo do exterior. Um estado de emergência transnacional ou mesmo cosmopolita que, totalmente pelo contrário, transcende a distinção entre o amigo e inimigo e cria um momento cosmopolita é absolutamente inconcebível para Schmitt. Mas os riscos globais vêm do interior, mesmo do centro – como conseqüências não intencionais – da economia de livre mercado radicalizada (crise financeira) e da modernidade industrial (mudança climática).
O que é “cosmopolita" sobre o momento cosmopolita? O momento cosmopolita da sociedade de risco significa a conditio humana da irreversível não-exclusão do estrangeiro distante. Os riscos globais destroem os limites nacionais e confundem o nativo ao estrangeiro. O outro distante está se transformando no outro inclusivo – não através da mobilidade, mas através do risco. A vida cotidiana está se tornando cosmopolita: os seres humanos devem encontrar o significado da vida nas trocas com os outros e não mais no encontro com o mesmo. Estamos todos presos num espaço global compartilhado por ameaças – sem saída. Isto pode inspirar respostas altamente conflituosas, às quais igualmente pertencem a renacionalização, a xenofobia, etc. Um deles incorpora o reconhecimento dos outros como igual e diferente, a saber, cosmopolitanismo normativo.
A sociedade de risco nos força a reconhecer a pluralidade do mundo, a qual poderia ser ignorada no panorama nacional. Os riscos globais abrem um espaço moral e político que pode produzir uma cultura civil da responsabilidade que transcende fronteiras e conflitos. A experiência traumática a que qualquer um está vulnerável e a responsabilidade resultante para com os outros, também para sua própria sobrevivência, são os dois lados da crença no mundo do risco. Deixe-me entrar em mais detalhes.
Esclarecimento reforçado: as respresentações do perigo nos meios de comunicação de massa podem dar voz aos não privilegiados, marginalizados e minorias
Se você me perguntar: o que te preocupa mais, minha resposta é: o que me deixa irritado, desamparado e amargo é que os mais pobres dos pobres, os mais vulneráveis são os mais atingidos. Estamos experimentando um estado de socialismo para os ricos, ao custo dos pobres – nacional e globalmente. Há uma injustiça ultrajante que acontece agora que está para explodir politicamente nos próximos meses e anos.
E se você continuar me questionando: há sinais de novos começos, uma ascensão acompanhada da queda do sistema financeiro? Minha resposta é: sim. Pode-se também observar um esclarecimento em demasia: as representações do perigo nos meios de comunicação de massa podem dar voz aos menos privilegiados.
É sabido que as polis gregas conheciam somente uma comunicação cara-a-cara e que era tanto elitista quanto exclusiva porque excluía mulheres, escravos e os menos privilegiados. O perigo globalizado através dos meios de comunicação de massa podem dar voz aos pobres, marginalizados e minorias na área pública global. O furacão Katrina foi um ato da natureza pavoroso. Como evento midiático global, ele também atuou como uma função de esclarecimento involuntária e não intencional. O que nenhum movimento social, nenhum partido político, e certamente nenhuma análise sociológica, não importa o quão brilhante e bem fundamentada, poderia ter conseguido ocorreu no espaço de dois dias: a América e o mundo foram confrontados com as vozes e as imagens de uma outra América reprimida, a face racista da pobreza na única superpotência remanescente. A televisão norte-americana não se importa com imagens de povos pobres, mas foi ubíqua durante a cobertura de Katrina. O mundo inteiro viu e ouviu falar que os distritos negros de Nova Orleans foram destruídos pelas tempestades por causa de sua vulnerabilidade social.
Você realmente acredita que os sociólogos poderiam ter o método e o poder de descobrir as práticas ultrajantes dos banqueiros que causaram a crise global e as trazer para o público global? Não, é claro que não, mas a crise financeira e seu impacto nos meios de comunicação de massa globais o fizeram.
Há um mês atrás, alguém acreditaria, realmente, que o discurso hegemônico do neoliberalismo, na política assim como nos meios de comunicação, poderia desmoronar da noite para o dia? Não. Mas aconteceu. O que o tornou real? A antecipação global da catástrofe global. Estão certos os que argumentam: depois do colapso do comunismo, resta apenas um oponente do livre mercado, a saber, o mercado livre desenfreado que opera exclusivamente extraindo o máximo, a curto prazo, da maximização do lucro.
A catástrofe assustadora é uma professora implacável para toda a humanidade. O mercado não é o que economistas nos fizeram e fazem acreditar, a resposta, salvadora, de todos os nossos problemas, não é mais do que uma ameaça à nossa existência. Temos que aprender rapidamente que a modernidade está precisando, urgentemente, de regulamentações reflexivas de mercado, mais do que isso, de uma constituição internacional para negociar conflitos sobre respostas aos riscos globais e aos problemas – construídos com o consenso entre partidos, nações, religiões, amigo e inimigo. Naturalmente, isto não acontecerá. Mas, de repente, é senso comum que isso seja a precondição da sobrevivência. Tudo isso faz parte da reflexividade gerada pelo risco, pela antecipação da catástrofe. Não consigo pensar em nenhum outro poder que induz, que reforce um processo de aprendizagem global em tão curto espaço de tempo. Tenha cuidado: a catástrofe não faz isso. A catástrofe é o momento da destruição (total). A antecipação da catástrofe faz isso. A incerteza manufaturada, o risco global é altamente ambivalente e também, paradoxalmente, um momento de esperança, de oportunidades inacreditáveis – um momento cosmopolita.
Que princípios de publicidade estão operando aqui? E que propostas teóricas podem nos ajudar a compreendê-los? O princípio de inclusão quase ilimitada, que diz respeito a ambos os grupos e tópicos, é reminiscente das análises da esfera pública tais como aquelas oferecidas por Hannah Arendt, por Jürgen Habermas e, recentemente, por Roger Silverstone (2006). Entretanto, as esferas públicas do risco global têm uma estrutura completamente diferente da "esfera pública" explorada por Jürgen Habermas. A esfera pública de Habermas pressupõe que todos os interessados têm as mesmas chances de participar e compartilham um comprometimento aos princípios do discurso racional. A esfera pública ameaçada é tão somente uma questão de compromisso como o é de racionalidade. As imagens de catástrofes não produzem cabeças frescas. Os alarmes falsos, enganos, condenações são parte da história. Públicos ameaçados são impuros, eles distorcem, eles são seletivos e provocam emoções, raiva e ódio. Eles tornam possível mais, e ao mesmo tempo menos, do que a esfera pública descrita por Habermas. Eles assemelham-se ao retrato do "Mediapolis", pintado de maneira tão minuciosa e sensível por Roger Silverstone, e ao retrato esboçado por John Dewey em The public and its problems (1946).
Em sua busca por um espaço público que seja ao mesmo tempo transnacional e escorado nas ações dos indivíduos, Dewey propõe uma aproximação dupla: antes de mais nada, ele distingue entre decisões tomadas coletivamente e suas conseqüências. Ele conecta isso ao argumento de que uma esfera pública apenas emerge não fora de todo o interesse geral em decisões tomadas coletivamente – mas, ao contrário, desencadeada como resultado de suas consequências. As pessoas permanecem indiferentes a decisões como essa. Não é antes que os indivíduos percebam e comecem a se comunicar, um ao outro, sobre as conseqüências problemáticas das decisões que eles os deixam exaltados e ansiosos; a comunicação os agita além da vontade e os tornam preocupados, os retira de sua indiferença e de sua existência egoísta, criando uma esfera pública de ação baseada nas pessoas comuns e na comunidade. Essa é uma variação na introspecção cética formulada por Epictetus: não são as ações em si que afligem os seres humanos, mas as palavras públicas ditas sobre essas ações.
As pessoas, argumenta Dewey, se reúnem por todas as razões. Mas nenhum elemento e nenhuma soma de suas ações sociais podem gerar reflexividade sobre a natureza pública de suas ações. Isto ocorre apenas quando as consequências da ação combinada são percebidas e se transformam em um objeto do desejo e esforço. A associação humana pode ser bastante orgânica na origem e firme na operação, mas ela desenvolve uma qualidade "pública" reflexiva somente quando suas consequências, à medida que isso é reconhecido, se tornam assunto de apreciação ou esforço, "ou de medo e rejeição".
Em resposta à questão de qual ação política é possível em contextos transnacionais, cosmopolitas, Dewey diz o seguinte: o poder de ligação, o sistema sensorial e o sistema nervoso da política, que produz e une o cuidado, a moralidade e a disposição das pessoas para agir, emerge apenas não coincide com as fronteiras nacionais; ao contrário, o mundo público é tudo o que é percebido como uma irritante consequência das decisões da moderna sociedade de risco. Em suma, é o risco – ou, para ser mais preciso, a percepção do risco – que cria uma esfera pública sobre todas as fronteiras. Quanto maior a onipresença da ameaça projetada pelos meios de comunicação de massa, maior será a força política da quebra de fronteiras da percepção de risco. A idéia, nessa conclusão, é que isso significa que todo o espaço cotidiano de experiência conhecido como “humanidade” não acontece na forma de “todo mundo ama todo mundo”. Ele emerge, ao contrário, no problema percebido das consequências globais de ações dentro da sociedade de risco. no curso da reflexão pública sobre as consequências. Seu escopo de influência
Embora alguns insistam em ver uma reação exagerada ao risco, conflitos de risco global têm, de fato, uma função instrutiva. Eles desestabilizam a ordem vigente, mas podem ser vistos também como um passo vital rumo à construção de novas instituições. O risco global tem o poder de confundir os mecanismos de irresponsabilidade organizada e até de explorá-los para a ação política.
Egoísmo, autonomia, auto-isolamento, impossibilidade de tradução – esses são termos chave para descrever a sociedade moderna em sociologia e em debates públicos e políticos. A lógica comunicativa do risco global deve ser entendida precisamente como o princípio oposto. O risco mundial é o não desejado, não planejado meio de comunicação obrigatório, em um mundo de diferenças irreconciliáveis, no qual todos estão girando em torno de seu próprio eixo. Consequentemente, a percepção pública do risco força as pessoas a comunicarem quem não quer ter qualquer relação com o outro. Isso impõe obrigações e custos aos que resistem aos outros, muitas vezes até com a lei do lado deles. Em outras palavras, riscos de larga escala cortam completamente tanto a auto-suficiência de culturas, línguas, religiões e sistemas quanto a agenda de políticas nacionais e internacionais; eles subvertem as prioridades e criam contextos para ação entre campos, partes e nações inimigas que não sabem nada uma da outra e rejeitam e se opõem uma à outra.
Isso é o que a “cosmopolitanização forçada” significa: os riscos globais ativam e conectam atores além das fronteiras, quem não quer ter qualquer relação com o diferente. Proponho, nesse sentido, que uma clara distinção seja feita entre as idéias filosóficas e normativas do cosmopolitanismo, por um lado, e a atual cosmopolitanização “impura”, por outro. O ponto crucial sobre essa distinção é que o cosmopolitanismo não pode, por exemplo, se tornar real apenas dedutivamente, na tradução de princípios sublimes da filosofia, mas também e sobretudo pelas portas do fundo dos riscos globais, invisíveis, não planejados, forçados. Se, ao longo da história, o cosmopolitanismo leva à mácula de ser elitista, idealista, imperialista, capitalista, hoje, no entanto, estamos vendo que a própria realidade está se tornando cosmopolita. Cosmopolitanismo não significa – como significava para Immanuel Kant – uma obrigação, um dever que seja dado ao mundo. Cosmopolitanismo, na sociedade de risco mundial, abre nossos olhos para as responsabilidades incontroláveis, para algo que acontece conosco, sucede conosco, mas ao mesmo tempo nos estimula a um novo começo que transcenda fronteiras. O discernimento de que na dinâmica da sociedade de risco mundial estamos lidando com a cosmopolitanização sob pressão reveste mais o cosmopolitanismo “impuro” de seu atrativo ético. Se o momento cosmopolita da sociedade de risco mundial é, ao mesmo tempo, deformado e inevitável, então não é, aparentemente, um objeto apropriado para reflexões sociológicas e políticas. Mas esse pode ser, precisamente, um sério equívoco.
Obviamente, a crise financeira global e as mudanças climáticas não são os únicos momentos cosmopolitas na história ou na modernidade. Na verdade, estudos comparativos de momentos cosmopolitas são úteis e necessários. Temos que distinguir, por exemplo, entre o antigo cosmopolitanismo (Stoa), a cosmopolítica da instrução (Kant), e o novo conceito de “crime contra a humanidade”, inventado para o Julgamento de Nuremberg, confrontado com o Holocausto (o qual foi “legal” em relação à lei nacional da Alemanha); e houve o momento cosmopolita da ameaça atômica e a auto-destruição nuclear da humanidade.
A lógica de guerra e paz válida até aquele momento perdeu seu significado. Onde a vitória não é mais vitória e a derrota não mais derrota, as partes em guerra têm que criar novas instituições que tornem possível continuar vivendo, pensando e debatendo sob a espada de Dâmocles da auto-aniquilação nuclear. O “impasse nuclear” da Guerra Fria levou a novas formas de cooperação entre os blocos militares hostis; na verdade, essa “ameaça nuclear” definitivamente tornou possível a "política do leste" (Ostpolitik, em alemão) transmitida pela “ ajuda humanitária” do chanceler alemão Willy Brant. É um ponto interessante o quanto as normas globais podem criar ao longo dos momentos cosmopolitas. Advogados tipicamente pensam que as violações das normas só podem ser estabelecidas se as próprias normas já existem. No entanto, sociólogos da lei, e antropólogos da lei, em particular, também reconhecem o caso oposto: o de que as normas emergem quando as expectativas são desapontadas e catástrofes ou antecipações de catástrofes tornam claro que isso é mão de maneira alguma aceitável. Isso se aplica ao Holocausto, o qual se tornou a base para o regime de direitos humanos; também às sérias violações da segurança nuclear ou do padrão mínimo de prudência ecológica, em relação às mudanças climáticas. Certamente é possível, nesse caso, observar processos onde, a partir de um momento cosmopolita, normas emergem ao redor do mundo. Talvez ética não seja a palavra certa para isso, porque não é simplesmente uma questão de problema de consciência ou de consideração moral – trata-se, muito mais, de uma lei internacional para a qual seja encontrada a possibilidade de sanções (Luhmann 1999).
Possibilidade de governo alternativo: uma forma cosmopolita de independência
Tão importante quanto esses argumentos, a questão decisiva é diferente: em que medida a ameaça e o impacto da sociedade de risco mundial abre o horizonte para uma alternativa histórica de ação política ? É precisamente essa questão que eu tenho tentado responder em meu livro O poder na era global (Power in the global age). Em 2002, argumento (aqui posso apenas citar a idéia básica):
Duas premissas: 1) a sociedade de risco mundial traz uma nova e histórica lógica-chave para daqui para diante: nenhuma nação pode enfrentar seus problemas sozinha; 2) uma política alternativa realista na era global é possível, e neutralizaria as perdas para o capital globalizado do poder de comando do Estado político. A condição é que a globalização tem que ser entendida não como um fado econômico, mas como um jogo estratégico para o poder mundial.
Uma nova política doméstica global que já está funcionando aqui e agora, além da distinção nacional x internacional, tem se tornado um jogo de meta-poder, cujo resultado é completamente indefinido. É um jogo em que as fronteiras, as regras básicas e as distinções básicas são renegociadas – não apenas aquelas entre as esferas nacionais e internacionais, mas também aquelas entre o mercado global e o Estado, as organizações supra-nacionais e as potências emergentes da China, Índia, América do Sul, os Estados Unidos e a União Européia. Nenhum jogador solitário ou oponente pode jamais ganhar sozinho; todos dependem de alianças. Essa é, portanto, a forma pela qual o nebuloso jogo de poder da política doméstica global abre suas próprias alternativas imanentes e oposições.
As estratégias de ação que os riscos globais abrem subvertem a ordem de poder que se formou na coalizão neo-liberal entre Estado e capital: os riscos globais dão poder aos Estados e aos movimentos civis da sociedade, porque eles revelam novas bases de legitimação e opções para ação desses grupos de atores; por outro lado, eles tiram poder do capital globalizado, porque as consequências das decisões econômicas contribuem para criar riscos globais e mercados desestabilizados e até para desestabilizar o sistema global de mercado. Contudo, há uma oportunidade a ser considerada sobre o que eu chamo de forma cosmopolita de independência. As formas de aliança introduzidas pelo Estado neoliberal instrumentalizam o Estado (e a teoria do Estado) de modo a otimizar e legitimar os interesses do capital ao redor do mundo. A idéia da forma cosmopolita de Estado, pelo contrário, visa a idealização e realização de uma robusta diversidade e de uma ordem pós-nacional. A agenda neo-liberal envolve a si própria com uma aura de auto-regulação e auto-legitimação. A agenda cosmopolita, por sua vez, envolve a si própria com uma aura de reinvenção transnacional de política e regulação, justiça global e esforços para uma nova grande narrativa da radical globalização democrática.
Isso não é um sonho; ao contrário, é a expressão de uma política cosmopolita real. Em uma era de riscos globais, a política da “algema dourada” – a criação de uma densa rede de interdependências transnacionais – é exatamente o que é preciso para recuperar a soberania nacional, mas não em relação à economia mundial altamente volúvel. A máxima da política real baseada na nação – em que interesses nacionais devem necessariamente guiar os sentidos da nação – deve ser substituída pela máxima da política cosmopolita real. Quanto mais cosmopolitas forem as nossas estruturas e atividades políticas, mais elas serão bem sucedidas na promoção de interesses nacionais, e maior será o nosso poder individual nessa era global. Esse é o momento de superar a noção antiquada de unilateralismo, mesmo nos Estados Unidos, e trazer a China, a Índia, a América do Sul e a Rússia à colaboração para produzir novas regras que liguem todos os jogadores. Mais que isso: nós, o Ocidente, os países europeus, temos que aprender sobre a realidade da dependência, mesmo em nossas questões internas, com aqueles que ainda acreditamos ser um estrangeiro.
O que acontece quando os centros de interesses dos Estados evaporam ou têm efeito oposto? A resposta é tão cínica quanto realista: o perigo cresce com a ineficiência da ação política, e, como resultado, a carência sofrida por todos – com uma consequência paradoxal: o dano pode limpar-se dos danos nas águas dos problemas para os quais ele contribuiu. O perdão para os erros pode muito bem crescer com os erros que irão aumentar as necessidades da espécie humana.
Ao mesmo tempo, o perigo percebido, que ameaça destruir tudo em seu caminho, cria uma dinâmica de aceleração para a ação contrária, e, com ela, a pressão para o consenso que pode evitar a lacuna entre a retórica e a tomada de decisão política. Como resultado disso, aquilo que é totalmente inimaginável no campo da política nacional se torna possível, para todos os lugares, na política interna global, isto é, apesar do princípio de unanimidade e do envolvimento de todos os Estados cujos interesses são conhecidos como dramaticamente conflitantes, as decisões globais, de amarração fiscal, podem ser feitas sob as restrições da urgência repentina.
Porém, o poder histórico da percepção de risco global tem seu preço, já que ele funciona apenas por um curto período de tempo. Como tudo depende de sua percepção pelos meios de comunicação de massa, a legitimação da atividade política global, à luz dos riscos globais, vai apenas até onde os meios de comunicação de massa se atêm.
Os fatos contam uma história diferente. A ação que foi tomada até agora nos Estados Unidos (e em outros países), o socorro do governo aos bancos, chegou a uma antiquada nacionalização parcial de alguns dos maiores bancos de varejo. Isso parece mais um Estado-nação individual tomando decisões, que, em discussão com outros Estados-nação, julgam ser as melhores, mas não de fato em colaboração ou acordo com eles.
O que dá aos habitantes da sociedade de riscos globais um choque antropológico não é mais o desabrigo metafísico de um Beckett, a ausência de Godot ou os pesadelos de Foucault. O que preocupa as pessoas é a premonição de que a estrutura das nossas dependências materiais e obrigações morais poderia se romper, levando o delicado sistema funcional da sociedade de risco mundial ao colapso. Assim, tudo está de cabeça para baixo: o que para Weber, Adorno e Foucault era uma visão apavorante – a perfeita supervisão do mundo administrado – é a promessa para as potenciais vítimas dos riscos financeiros (isto é, todo mundo): seria bom se a racionalidade da supervisão realmente funcionasse, ou se fôssemos aterrorizados apenas por consumo e humanismo, ou se a operação perfeita dos sistemas pudesse ser restaurada pelo canto litúrgico de “mais mercado, por favor!”.
3. Consequências: uma mudança de paradigma nas ciências sociais
É evidente que o plano de referência requerido para ser aceito pelo Estado-nação – o que eu chamo de “nacionalismo metodológico” – impede as ciências sociais de entender e analisar as dinâmicas e ambivalências, as oportunidades e ironias da sociedade de risco mundial. Um nacionalista metodológico, assim como um político nacional, que tenta lidar com riscos globais isoladamente, assemelha-se a um bêbado, que em uma noite escura tenta encontrar sua carteira perdida em um facho de luz de um poste de rua. À questão “você realmente perdeu sua carteira aqui?” ele responde “não, mas na luz do poste, eu posso ao menos procurar por ela”.
Em outras palavras, os riscos globais estão produzindo “Estados falidos” – até mesmo no Ocidente. O primeiro exemplo, claro, é a Irlanda. Mas também a Hungria, a Ucrânia, e o Paquistão, instável poder atômico bastante ameaçador, precisam urgentemente de assistência emergencial do Fundo Monetário Internacional. Há dois meses, a crise parecia afetar apenas os países que a causaram, principalmente os Estados Unidos e os países altamente industrializados da Europa ocidental. Mas, em um considerável curto espaço de tempo, o fogo da crise se espalhou pela Ásia, América Latina e países do leste europeu e, desse modo, está agora colocando em perigo aqueles países que não a causaram, ainda que alguns deles tenham parcicipado do capitalismo de alto risco – países ricos como a Irlanda e a Rússia. Portanto, o risco financeiro global está rapidamente produzindo novas desigualdades globais radicalizadas. A estrutura de Estado envolvida sob as condições da sociedade de risco mundial pode ser caracterizada em termos tanto da ineficiência quanto da autoridade pós-democrática. Uma clara distinção, no entanto, tem que ser feita entre a reinvenção da regra do estado e a ineficiência. É absolutamente possível que o resultado final possa ser a triste perspectiva de que tenhamos regimes de Estado totalmente ineficientes e autoritários (mesmo no contexto das democracias ocidentais).
Dadas as condições insanas da sociedade de risco mundial, a velha teoria crítica de Foucault está em risco de se tornar simultaneamente afirmativa e antiquada, juntamente com grandes áreas da sociologia, as quais se concentraram nas dinâmicas de classe no estado de bem-estar (Bourdieu, Goldthorpe). Elas subestimaram ou deixaram escapar a mudança histórica do parâmetro de mudança dos riscos globais.
Mas a sociologia e a ciência política não são as únicas disciplinas sob pressão; a economia também. Há uma situação de vazio: procura-se um teórico para suceder transnacionalmente o sr. Keynes. A necessidade, agora, é por uma engenhosa regulação reflexiva (filosofia) em escala global, incluindo novos atores como corporações transnacionais, Banco Mundial, FMI, Greenpeace etc. Na União Européia, há uma necessidade idêntica de instituições políticas mais fortes – um ministério europeu para assuntos econômicos – para complementar o banco central. Mas a maior necessidade de todas é a de uma nova teoria de economia mista, construída no lugar do mercado global de hoje, como o agora finado sistema keynesiano foi moldado para as economias nacionais do pós-guerra.
Estamos sob o encanto de uma sociologia em cujas bases fomos concebidos e nos desenvolvemos nos últimos cem anos. O primeiro século da sociologia se foi. No caminho para o segundo, que começou agora, o espaço da pesquisa e da imaginação sociológica tem que ser explorado e determinado de novo, isto é, explorado para a constelação cosmopolita. Aprender sobre os outros não é apenas um ato de compreensão cosmopolita, mas parte integral do aprendizado e entendimento sobre a realidade de nós mesmos ou mesmo de vermos nós mesmos como o outro. Uma sociologia cosmopolita significa uma sociologia que reflete nas premissas e nos dualismos ontológicos de uma sociologia do Estado-nação – como nacional e internacional, nós e os outros, interno e externo – em seus significados para a gramática da política e do social, assim como para a determinação do campo sociológico de investigação e, dessa forma, adquire uma nova moldura sociológica de referência para todo tipo de assunto. Uma sociologia cosmopolita distingue claramente a si própria de uma universalista, porque ela não parte de algo abstrato (geralmente derivado de um contexto e uma experiência históricos europeus, como “sociedade” ou “sociedade mundial” ou “sistema mundial” ou o “indivíduo autônomo” etc). Ao contrário, conceitos chave como contingência, ambivalência, interdependência, interconexão alcançam o palco central juntamente com as questões metodológicas apresentadas por eles. A sociologia cosmopolita, portanto, abre indispensáveis novas perspectivas para contextos aparentemente isolados, familiares, locais e nacionais. Com essa nova “visão cosmopolita”, ela segue o caminho empírico e metodológico que outras disciplinas – como a antropologia, a geografia e a etnologia contemporâneas – já tomaram com entusiasmo.
Para finalizar, retornando à questão que levantei no início de minha preleção sobre o momento cosmopolita da sociedade de risco: o que há de bom em algo tão ruim? Que o egoísmo nacionalista tenha que se abrir, em causa própria, para uma direção cosmopolita. Outra coisa que devemos aprender com a crise é que o tipo de capitalismo laissez-faire, de mercado aberto, caro ao neoliberalismo, não tem lugar na era da sociedade de risco global. E, é claro, um outro, uma modernidade alternativa é possível!
Ulrich Beck é professor de sociologia da Universidade de Munique e cunhou o termo “sociedade de risco” na década de 1990. Este artigo é fruto da conferência proferida na Universidade de Harvard, em 12 de novembro de 2008. Tradução autorizada pelo autor.