sábado, 30 de outubro de 2010

Argentina

"Kirchner quis quebra-cabeça impossível" Folha de São Paulo 30 de outubro de 2010
Para sociólogo argentino Ricardo Sidicaro, ex-presidente tinha rara habilidade de manejar diferentes interesses

Agora, Cristina terá de lidar com divergências internas e também com as fortes pressões dos movimentos sociais

FLÁVIA MARREIRO
DE CARACAS

Néstor Kirchner morreu tentando montar um quebra-cabeça impossível: manter unidos os apoios heterogêneos que foi angariando após chegar, como um outsider do peronismo, à Casa Rosada, em 2003. E essa é a tarefa que herda a presidente Cristina. A avaliação é do sociólogo Ricardo Sidicaro, autor de "Los tres peronismos: Estado y poder económico" (2005, sem tradução no Brasil). Para o professor da Universidade de Buenos Aires, Kirchner entrará para a história como o presidente que, no poder, dividiu o agregador Partido Justicialista.

Folha - O que Néstor Kirchner representa para a história do peronismo? Ricardo Sidicaro - Kirchner é o primeiro presidente que divide o peronismo. Nunca havia acontecido antes. Com [o ex-presidente] Carlos Menem, muitos peronistas eram contrários, mas não foram formar outro partido. O peronismo sempre representou o partido que soma, que agrega. Com Kirchner, não.
Era verdadeiramente um outsider do peronismo. Nos dois primeiros anos de governo, fizeram um grande esforço para dizer que o peronismo havia acabado e que estavam construindo uma força política nova. Depois, acabaram pactuando com dirigentes peronistas.
Ele representava uma pequena fração do peronismo que chegou ao poder com uma quantidade importante de votos não peronistas, votos progressistas. Podemos dizer que Kirchner passou os momentos finais de sua vida tentando montar um quebra-cabeças quase impossível.

Por que impossível?
Porque o grupo que vem da ala mais crítica à ditadura, as Mães da Praça de Maio ou as Avós, sempre acreditou que a maior parte dos dirigentes peronistas havia sido cúmplice da ditadura. Contra os sindicatos sempre estiveram as organizações de desempregados, que os viam como burocráticos.
Os peronistas do interior, que eram mais ou menos acomodatícios, não mudaram em nada sua política. O que em Buenos Aires poderia aparecer como um aspecto progressista do kirchnerismo, nas Províncias praticamente não apareceu. No interior, os caudilhos que há 30 anos estavam ali eram agora do kirchnerismo.

E o que muda sem Néstor?
O kirchnerismo é uma forma muito particular de galáxia política. Nenhum dos aliados tem respeito pelo outro. Sem dúvida, essa estrutura vai se ressentir da ausência de Kirchner se a presidente Cristina não assumir para si todas essas relações com os aliados. Kirchner havia fomentado esses apoios e ele era quem, de certa forma, colocava os limites, era o interlocutor mais válido.
Muito se falou que ele era quem governava. Em todo caso, Kirchner era a figura mais importante dessa galáxia. Agora vemos a presidente, com sua personalidade, seus momentos de crispação, levando adiante esse tipo de negociação? Kirchner lidava muito bem com isso. Cristina saberá fazê-lo?

O sr. acredita em uma desmontagem dessa galáxia?
Não creio em debandada. Esse era um sistema que estava personalizado, mas é um sistema de intercâmbios. Os governos das Províncias esperam certos reforços de orçamento, os sindicatos esperam que se mantenham suas prerrogativas etc.
A morte de Kirchner, teoricamente, não muda essas relações de poder. O que pode acontecer é que um desses blocos de apoio -o sindicalismo, por exemplo- queira avançar mais em relação ao que têm nesse momento. Se isso acontecer, aí essa situação terá de ser manejada com muita perícia. Mas não vai acontecer imediatamente. Vai ocorrer mais próximo das eleições.

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