quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Bolivia
São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2011
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ANÁLISE
Ação do governo da Bolívia coloca em jogo a sua ambiguidade
SALVADOR SCHAVELZON
ESPECIAL PARA A FOLHA
O conflito em curso na Bolívia em razão da resistência à construção da rodovia que cortaria o Tipnis (Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure) é um confronto entre duas forças que, até recentemente, conviviam como parte do projeto político que elegeu Evo Morales e resultou na proposta constitucional de 2009.
De um lado a proposta indígena do "Viver Bem" e da construção de um Estado plurinacional comunitário, com base no direito à diferença e reconhecimento de autonomia e território dos indígenas.
De outro, a busca de integração nacional, a luta contra a pobreza pelo desenvolvimento capitalista, a industrialização e o discurso estatal nacionalista, que prioriza o que seria o interesse das maiorias, apesar de custos ambientais e da violação de direitos. A tensão na Bolívia expõe a possibilidade de que a solução não seja a habitual, do etnocídio, tendo em conta a capacidade de mobilização tantas vezes demonstrada.
A recente operação policial para dispersar a marcha de protesto deve ser compreendida como sinal de um novo cenário, no qual o governo se afasta de seus velhos aliados.
As duas tendências agora antagônicas resultam na separação entre os povos indígenas da selva -e seus aliados nas cidades e nas comunidades andinas que buscam a reconstituição de seus territórios ancestrais- e o governo e suas bases camponesas e cocaleiras, que vêm ocupando o território e aprovam a construção da estrada.
É por isso que se escuta hoje que "Evo Morales nunca foi indígena" e antigos adversários se unem em defesa dos povos das terras baixas.
Com o desenlace desse conflito, poderemos determinar se surgirá um novo quadro político, com novos agentes que arrebatem ao governo as bandeiras da descolonização, da Pachamama e do território; ou se o governo Morales reagirá e recuperará sua capacidade de avançar costurando projetos diferentes das maiorias e também das minorias indígenas, que pela primeira vez detêm poder, para levar adiante a construção de um Estado plurinacional na Bolívia.
SALVADOR SCHAVELZON é antropólogo e professor da PUC-Campinas, com doutorado sobre o processo constituinte boliviano (Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
domingo, 25 de setembro de 2011
Comissão da Verdade
A verdade que se espera
Os 7 membros da CV, designados pela Presidência, precisarão de apoio externo na apuração dos fatos
25 de setembro de 2011 | 3h 06
Notícia
A+ A- Assine a Newsletter Glenda Mezarobba - O Estado de S.Paulo
Desde seu início, o processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura, seus familiares e a própria sociedade não destinou espaço relevante à verdade. O conteúdo dos arquivos das Forças Armadas permanece desconhecido e o destino de muitas vítimas fatais segue ignorado.
O ajuste de contas, iniciado com a Lei da Anistia, em 1979, foi constituído de forma a escamotear a verdade, quando não a negou. Instrumento político há muito adotado, uma anistia é reconhecidamente uma forma de assegurar impunidade. Se em seu sentido amplo remete ao esquecimento, na versão nacional a anistia também foi pensada para evitar accountability. E foi concedida antes que se conhecesse a verdade, com a qual não tinha nenhum compromisso.
Para que não restem dúvidas, a verdade não só estava ausente da anistia como a lei foi elaborada de maneira a ocultar a realidade. Prova disso é o texto legal, redigido de maneira elíptica, sem menção à tortura, por exemplo, mas interpretado, desde então, de forma a incluir agentes do Estado que violaram direitos humanos. Compreensível naquele contexto, a lógica de impunidade que a interpretação dada à anistia pelos militares insistia em impor poderia fazer algum sentido até o término da ditadura. Jamais em um regime democrático. Por outro lado, já está bem estabelecido na normativa internacional que o legado de graves e sistemáticas violações em massa de direitos humanos, como o deixado pela ditadura brasileira, gera obrigações para os Estados. Um desses deveres é exatamente o de revelar a verdade, implícito em distintos documentos da legislação humanitária. Recentemente, e partindo de princípio estabelecido na Declaração Universal, que identifica no desconhecimento e menosprezo aos direitos humanos a origem de atos de barbárie que ofendem a consciência da humanidade, normativa da ONU assinalou que os Estados têm o dever de recordar e reconheceu que os povos têm o "direito inalienável" de conhecer a verdade a respeito de crimes do passado. Isso inclui as circunstâncias e os motivos envolvendo tais atos de violência.
De acordo com o documento da ONU, tornado público em 2005, o conhecimento, por parte da sociedade, da história de determinado período de opressão constitui patrimônio público, cabendo ao Estado preservar a memória coletiva e evitar que surjam teses revisionistas ou de negação dos fatos. Além disso, o exercício pleno e efetivo do direito à verdade proporcionaria salvaguarda fundamental contra a repetição de tais violências.
A criação de uma comissão da verdade representa, portanto, oportunidade única para o Estado brasileiro avançar no cumprimento de seu dever de revelar a realidade dos fatos ocorridos, sobretudo se, ao ser instalada, tal comissão puder contar com recursos humanos e materiais que garantam sua efetividade. O fato de serem "apenas" sete os membros a integrá-la, por designação da Presidência da República, não deve ser entendido como fator limitante de sua atuação, mas como indicativo da necessidade de o trabalho da comissão ser desenvolvido com apoio externo. Dos seus integrantes, não se espera que representem nenhum dos lados envolvidos no conflito, mas que sejam cidadãos de reconhecida autoridade moral e independência, comprometidos com o respeito e a promoção dos direitos humanos.
Naturalmente, também não se deve presumir que uma comissão desse tipo processe, julgue, absolva ou condene envolvidos em atrocidades do período, uma vez que suas atividades não se confundem com as de um tribunal. Deve-se esperar, entretanto, que com a divulgação de seu relatório final, a comissão contribua para reduzir a permanência e disseminação de inverdades históricas, para deslegitimar a ditadura e confirmar a legitimidade da democracia. Além de recordar o preceito da ética militar, inscrito no Estatuto dos Militares, no capítulo que trata de suas obrigações: "Amar a verdade e a responsabilidade como fundamento de dignidade pessoal".
Se bem conduzida, dado o tempo histórico de sua realização e devido às especificidades do processo nacional, uma comissão da verdade poderá ter efeitos não observados em iniciativas similares. Poderá lançar luz sobre a insistência nacional em manter tal processo atrelado à noção de impunidade e esquecimento, decorrentes da permanência da ideia de anistia, sobre quanto sofrimento isso tem causado à grande maioria das vítimas e sobre o desserviço que a manutenção da lógica do arbítrio presta à prática democrática e ao desenvolvimento de importantes instituições como o Judiciário (vide decisão recente do STF, em relação à ação de descumprimento de preceito fundamental, ADPF, proposta pela OAB, envolvendo a Lei da Anistia) e as forças de segurança. Até aqui incapaz de cumprir com seu dever de justiça e bastante hesitante em sua obrigação de renovar determinadas instituições, o Estado brasileiro, com a criação de uma comissão da verdade, terá, além de resgatar a dignidade das vítimas, a oportunidade de rever mensagens equivocadas que seu esforço reparatório tem enviado à sociedade, sobretudo em relação à igualdade de direitos e deveres de seus cidadãos e à primazia do direito à vida.
GLENDA MEZAROBBA É CIENTISTA POLÍTICA , E PESQUISADORA DA UNICAMP. ASSESSOROU , A ELABORAÇÃO DO ANTEPROJETO DE LEI , QUE CRIA A COMISSÃO DA VERDADE
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
Comissão da verdade
Valor 21 de setembro de 2011
Comissão da Verdade investigará 42 anos com equipe reduzida e sem orçamento
Por Vandson Lima e Fabio Murakawa | De São Paulo
Previsto para entrar na pauta de votação do Congresso amanhã, o projeto de lei 7.376, que cria a Comissão Nacional da Verdade, deve ser aprovado com apoio de todas as bancadas, depois de intensa negociação do governo, que colocou quatro de seus ministros - Justiça, Defesa, Direitos Humanos e Relações Institucionais - para conversar com a base e a oposição e convencê-los da importância da matéria. No entanto, quem acompanha com assiduidade o tema está temeroso com o projeto, que nasceria com debilidades evidentes.
O Valor conversou com especialistas, promotores e participantes de comissões da Verdade feitas em países da América Latina e África. A opinião unânime é de que o projeto, tal como está, é extremamente dependente da boa vontade do governo. O grupo de trabalho designado é considerado insuficiente e desprovido de autonomia financeira, já que não tem dotação orçamentária e dependeria de repasses, vinculado que está à Casa Civil. O período analisado, de 1946 a 1988, é visto como demasiadamente extenso, o que tornaria inviável uma investigação minuciosa. "Corre-se o risco de criar uma comissão débil. Com sete membros e 14 funcionários para cuidar de tudo, de atender o telefone até fazer a inquirição, a leitura de milhões de documentos, apurar as violações cometidas em 42 anos no Brasil todo, é completamente impossível", afirma o procurador da República Marlon Weichert. A opinião do procurador é compartilhada por especialistas do Peru e da Argentina, países que criaram comissões semelhantes para apurar violações aos direitos humanos em diferentes períodos.
Para cumprir sua missão, segundo especialistas, comissão deveria ter pelo menos 300 integrantes
"Não há nenhuma possibilidade de sete comissários e 14 pessoas investigarem 40 anos de violência política. Isso é inviável", diz Jo-Marie Burt, cientista política americana que participou da comissão da verdade peruana. "Eu diria que essa é uma estrutura mínima, e que logo será necessário trazer mais pessoas".
O advogado chileno Roberto Garretón, que atuou na área de direitos humanos durante a ditadura de Ernesto Pinochet, vai mais longe. Segundo ele, seriam necessárias pelo menos 300 pessoas para trabalhar em uma comissão que investigue crimes cometidos "de Curitiba a Natal, da fronteira com a Bolívia ao Atlântico". Além disso, para ele a comissão deveria ter foco somente no período da ditadura militar (1964-1985). "A impressão que me fica sabe qual é? É que se cria [a comissão] para fracassar", avaliou. "Não se pode colocar no mesmo plano o que aconteceu sob Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Garrastazu Médici e Castelo Branco. São contextos muito diferentes".
A escolha dos sete membros da comissão é atribuição exclusiva da Presidência da República, outro ponto criticado por especialistas. "O processo poderia ser mais transparente. Que a presidente faça a escolha, mas deveria haver vedação de participação dos diretamente envolvidos nos fatos investigados, tanto vítimas quanto agentes políticos, garantindo a isenção", observa a procuradora da República Eugênia Fávero. Os participantes são demissíveis a qualquer momento. "Achamos que o mandato deveria ser fixo, e que uma eventual demissão só poderia ocorrer a partir de um processo administrativo. Assim, se garantiria a independência destes na atuação", diz a procuradora.
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Para Garretón, no entanto, a comissão deve abrigar gente próxima "aos dois lados". "As comissões da verdade não são criadas para convencer aos convencidos. Os familiares das vítimas sabem o que aconteceu. Essas comissões são feitas para convencer aqueles que dizem não saber nada".
A comissão da Verdade é um dos instrumentos indicados pela Organização da Nações Unidas e por cortes internacionais relacionados à Justiça de transição - conjunto de medidas adotado por um país quando sai de um período de exceção. O objetivo é adotar medidas que visem a não repetição daqueles acontecimentos.
Ao contrário de um argumento corrente de parte a parte, as comissões não têm caráter punitivo. O que fazem é a recuperação da verdade histórica, a versão oficial do Estado. Busca-se entender o funcionamento de instituições que se envolveram com a prática de violações de direitos humanos. A punição é matéria exclusiva do Poder Judiciário. "A questão é saber como o Estado foi capaz de se transformar em uma máquina de violação", atesta Weichert.
Em países como Argentina, Peru e Chile, as comissões foram apenas o primeiro passo no que ativistas de direitos humanos classificam como "processo de verdade e justiça", na transição de regimes tidos como ditatoriais para a democracia. O segundo, adotado mais cedo ou mais tarde, dependendo do país, foi a punição dos violadores.
"É um problema não investigar todas as pessoas comprovadamente envolvidas nesses crimes contra a humanidade. Na Argentina, tivemos vários casos de pessoas que ocupavam cargos públicos, governadores eleitos, deputados. Se não se julga esse tipo de pessoa, fica difícil ter instituições democráticas onipresentes", afirma Valeria Borbuto, diretora de investigação do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), ONG argentina criada em 1979 e envolvida em vários processos judiciais relacionados a mortos e desaparecidos na ditadura.
Aprovação da comissão não basta para cumprir decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
O país criou a sua comissão da verdade em 1984, logo após o fim do regime militar, por ordem do então presidente Raúl Alfonsín. A comissão coletou depoimentos voluntários, mas não apontou nomes de violadores. Porém, os testemunhos foram fundamentais para a condenação, em 1985, de cinco membros da junta militar que governou o país entre 1976 e 1983.
Eles receberam indulto durante o governo de Carlos Menem, que editou duas leis de anistia: "Ponto Final" (que ditou o fim de todos os processos contra pessoas acusadas de violência política durante a ditadura) e "Obediência Devida" (que isentou subordinados das Forças Armadas de crimes cometidos sob ordens de seus superiores).
Essas leis foram declaradas inconstitucionais em 2003, já durante o governo de Néstor Kirchner, pela Suprema Corte do país, o que possibilitou a retomada dos processos.
Na opinião de Valéria Borbuto, do Cels, os próprios depoimentos e as provas coletadas pelo órgão servirão naturalmente como instrumento de pressão para que haja julgamentos. "Se a verdade dos depoimentos for fidedigna com o que de fato aconteceu, ela será escandalosa", afirmou.
A jornalista argentina Magdalena Ruiz Guiñazu, que participou da comissão da verdade em seu país, afirma que muitos dos encarregados de coletar depoimentos não conseguiram concluir os seus trabalhos, tamanhas eram as atrocidades que eles escutavam. "O Ministério do Interior havia indicado um pessoal para receber as denúncias dos familiares das vítimas, e elas eram tão terríveis que eles não aguentaram", recorda. "Tivemos que convocar gente ligada aos organismos de direitos humanos para ouvi-los".
A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos condenou, em 2010, o Brasil em relação à Guerrilha do Araguaia. Pela sentença, o Estado brasileiro terá de remover todos os obstáculos práticos e jurídicos para a investigação e esclarecimento de crimes e responsabilização dos envolvidos. O Tribunal reafirmou o alcance geral de sua decisão, exigindo que as disposições da lei de Anistia não representem um obstáculo à investigação. "Há uma diferença aí que é preciso anotar. Aprovar o projeto da Comissão da Verdade não cumpre a decisão da Corte", observa Weichert. A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, atesta que os processos são separados. "Dizer que o Brasil procura com a comissão da Verdade responder à Corte é não admitir que o país precisa responder às sua própria história e sua gente".
"A sociedade ferida por um crime contra a humanidade não é o vilarejo onde ele ocorreu, nem o país, mas a humanidade inteira. E, se é a humanidade inteira, não há por que um juiz ditar a anistia", diz Garretón. "Eu não diria que o Brasil está atrasado. O Brasil não começou a atuar, simplesmente. No Brasil não havia comissão da verdade nem julgamento de criminosos".
Para Jo-Marie Burt, não obstante crimes de lesa-humanidade já serem considerados imprescritíveis à luz do Direito Internacional, "a lei de anistia no Brasil vai cair sob esse mesmo tipo de decisão [da OEA]. Porque são decisões cuja jurisprudência se aplica a todos os Estados que são signatários do sistema interamericano, o que é o caso do Brasil".
domingo, 11 de setembro de 2011
Eric Hobsbawn
Subject: Fw: entrevista com Eric Hobsbawm, sobre a conjuntura internacional,
a luz da historia. ESTADAO. 11 de setembro de 2011
*Trocando mitos por história. *
**
*Entrevista com Eric Hobsbawm *
O ataque às torres gêmeas do World Trade Center, há exatos dez anos, num
atentado que não só amputou a paisagem de Nova York, mas acima de tudo tirou
a vida de milhares de pessoas, acordando o mundo para tensões inauditas, foi
a mais completa experiência de uma catástrofe de que se tem notícia, afirma
com convicção o historiador britânico Eric Hobsbawm. "Porque foi vista em
cada aparelho de TV, nos dois hemisférios", justifica em seguida. Mas,
quando ele coloca a mesma catástrofe no plano maior da história das
civilizações, daí faz com que afirmação superlativa submeta-se a outras
associações de ideias, que nos convidam a pensar. E pensar muito.
Aos 94 anos, Eric John Ernest Hobsbawm mais uma vez dá provas de que o
caminhar da humanidade se faz com passos que medem séculos e a melhor
unidade da história, no seu jeito de ver o mundo, é a "era", e não os dias,
os anos, nem mesmo as décadas. Aqui mesmo, nestas páginas, ele nos contará
por que acha que já entramos na "era do declínio americano", sem em nenhum
momento subestimar o país que por muito tempo ainda exportará seu formidável
"soft power" - o cinema, a música, a literatura, a moda, os estilos de vida,
enfim, todo um aparato cultural.
Hobsbawm concedeu esta entrevista dias atrás, de regresso a Londres depois
do descanso de verão. Respondeu por escrito ao conjunto de perguntas. Ao
construir as respostas, vê-se como selecionou os exemplos que melhor
ilustram seu raciocínio, sempre com invejável disposição intelectual. Ao
final do questionário, e depois de revelar até os projetos que gostaria de
desenvolver "se fosse mais jovem", terminou a entrevista com a seguinte
afirmação: "Isso é tudo o que eu quero dizer".
Autor de A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e a A
Era dos Extremos, em que tece uma "breve história" do século XX, questiona
assimilações como a superioridade cultural do Ocidente, por vezes invólucro
de uma arrogância histórica que hoje mal disfarça a incapacidade de
entender, afinal de contas, o que vem a ser uma sociedade tribal ou um
califado. Por outro lado, acha que a intensificação dos fluxos migratórios,
levando incessantemente gente jovem de um canto a outro do planeta, embora
gere muita xenofobia, gera também uma visão mais disseminada da diversidade
do mundo. Visão que a geração de Hobsbawm, nascido em 1917 no Egito sob
domínio inglês, numa família judia mais tarde perseguida pelo nazismo,
definitivamente não teve.
Professor (emérito) da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e da New
School for Social Research, em Nova York, Hobsbawm só é capaz de compreender
o historiador como um "observador participante", além de se autodefinir
também como um "viajante de olhos abertos e jornalista ocasional". Chega a
recomendar aos seus leitores que tentem tomar o que ele escreve "na base da
confiança", porque embora pesquise incansavelmente, se dispensa das
referências bibliográficas sem fim e das enfadonhas exibições de erudição.
Por isso, seguramente, seu estilo é inconfundível.
Marx, ele descobriu na juventude. Ao fixar-se em Londres, logo alistou-se no
Partido Comunista e, depois, no exército britânico, para combater Hitler.
Evidentemente Hobsbawm foi cobrado pelo método marxista de análise que ainda
hoje utiliza, especialmente quando muitos dos seus pares trataram de rever
posições, a partir do desmoronamento do mundo soviético. Em sua
autobiografia, Tempos Interessantes (lançada em 2002 pela Companhia das
Letras, assim como outros títulos importantes do autor), ele próprio já
tratava de acalmar os fustigadores: "A história poderá julgar minhas
opiniões políticas - na verdade em grande parte já as julgou - e os leitores
poderão julgar meus livros. O que busco é o entendimento da história, e não
concordância, aprovação ou comiseração".
A entrevista é de Laura Greenhalgh e publicada pelo jornal O Estado de
S.Paulo, 11-09-2011.
Eis a entrevista.
No livro Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007, o senhor passa para
os leitores certo pessimismo ao lhes colocar uma perspectiva crucial e ao
mesmo tempo desconfortante: ''Não sabemos para onde estamos indo'', diz,
referindo-se aos rumos mundiais. Olhando as últimas décadas pelo retrovisor
da história esse sentimento parece ter se intensificado. Em que outros
momentos a humanidade viveu períodos marcados por essa mesma sensação de
falta de rumos?
Embora existam diferenças entre os países, e também entre as gerações, sobre
a percepção do futuro - por exemplo, hoje há visões mais otimistas na China
ou no Brasil do que em países da União Europeia e nos Estados Unidos -,
ainda assim acredito que, ao pensar seriamente na situação mundial, muita
gente experimente esse pessimismo ao qual você se refere. Porque de fato
atravessamos um tempo de rápidas transformações e não sabemos para onde
estamos indo, mas isso não constitui um elemento novo em tempos críticos.
Tempos que nos remetem ao mundo em ruínas depois de 1914, ou mesmo a vários
lugares daquela Europa entre duas grandes guerras ou na expectativa de uma
terceira. Aqueles anos durante e após a 2ª Guerra foram catastróficos, ali
ninguém poderia prever que formato o futuro teria ou mesmo se haveria algum
futuro. Cruzamos também os anos da Guerra Fria, sempre assustadores pela
possibilidade de uma guerra nuclear. E, mais recentemente, notamos a mesma
sensação de desorientação ao vermos como os Estados Unidos mergulharam numa
crise econômica que até parece ser o breakdown do capitalismo liberal.
Nações saíram empobrecidas, arruinadas mesmo, das guerras mundiais, mas é
adequado pensar que havia naqueles escombros o desenho de um futuro?
Sim. Se de um lado o futuro nos era desconhecido e cada vez mais inesperado,
havia por outro lado uma ideia mais nítida sobre as opções que se
apresentavam. No entreguerras, a escolha principal de um modelo se dava
entre o capitalismo reformado e o socialismo com forte planejamento
econômico - supremacia de mercado sem controle era algo impensável. Havia
ainda a opção entre uma democracia liberal, o fascismo ultranacionalista e o
comunismo. Depois de 1945, o mundo claramente se dividiu numa zona de
democracia liberal e bem-estar social a partir de um capitalismo reformado,
sob a égide dos EUA, e uma zona sob orientação comunista. E havia também uma
zona de emancipação de colônias, que era algo indefinido e preocupante. Mas
veja que os países poderiam encontrar modelos de desenvolvimento importados
do Ocidente, do Leste e até mesmo resultante da combinação dos dois. Hoje
esses marcos sinalizadores desapareceram e os "pilotos" que guiariam nossos
destinos, também.
Como o senhor avalia o poder das imagens de destruição nos ataques do 11/9 a
Nova York, tão repetidas nos últimos dias? Tornaram-se o símbolo de uma
guinada histórica, apontando novas relações entre Ocidente e Oriente? Por
que imagens do cenário de morte de Bin Laden surtiram menos impacto?
A queda das torres do World Trade Center foi certamente a mais abrangente
experiência de catástrofe que se tem na história, inclusive por ter sido
acompanhada em cada aparelho de televisão, nos dois hemisférios do planeta.
Nunca houve algo assim. E sendo imagens tão dramáticas, não surpreende que
ainda causem forte impressão e tenham se convertido em ícones. Agora, elas
representam uma guinada histórica? Não tenho dúvida de que os Estados Unidos
tratam o 11/9 dessa forma, como um turning point, mas não vejo as coisas
desse modo. A não ser pelo fato de que o ataque deu ao governo americano a
ocasião perfeita para o país demonstrar sua supremacia militar ao mundo. E
com sucesso bastante discutível, diga-se. Já o retrato de Bin Laden morto
(que não foi divulgado) talvez fosse uma imagem menos icônica para nós, mas
poderia se converter num ícone para o mundo islâmico. Da maneira deles,
porque não é costume nesse mundo dar tanta importância a imagens,
diferentemente do que fazemos no Ocidente, com nossas camisetas estampando o
rosto de Che Guevara.
Mas além da chance de demonstrar poderio militar, os Estados Unidos deram
uma guinada na sua política externa a partir de 2001, ajustando o foco
naquilo que George W. Bush batizou como "war on terror". Outro
encaminhamento seria possível?
Eu diria que a política externa americana, depois de 2001, foi parcialmente
orientada para a guerra ao terror, e fundamentalmente orientada pela certeza
de que o 11/9 trouxe para os EUA a primeira grande oportunidade, depois do
colapso soviético, de estabelecer uma supremacia global, combinando poder
político-econômico e poder militar. Criou-se a situação propícia para
espalhar e reforçar bases militares americanas na Ásia central, ainda uma
região muito ligada à Rússia. Sob esse aspecto, houve uma confluência de
objetivos - combate-se o inimigo ampliando enormemente a presença militar
americana. Mas, sob outro aspecto, esses objetivos conflitaram. A guerra no
Iraque, que no fundo nada tinha a ver com a Al-Qaeda, consumiu atenção e uma
enormidade de recursos dos EUA, e ainda permitiu à organização liderada por Bin
Laden criar bases não só no Iraque, mas no Paquistão e extensões pelo
Oriente Médio.
Os Estados Unidos lançaram-se nessa campanha sabendo o tamanho do inimigo?
O perigo do terrorismo islâmico ficou exagerado, a meu ver. Ele matou
milhares de pessoas, é certo, mas o risco para a vida e a sobrevivência da
humanidade que ele possa representar é muito menor do que o que se estima.
Exemplo disso são as importantes mudanças que ocorreram neste ano no mundo
árabe, mudanças que nada devem ao terrorismo islâmico. E não só: elas o
deixaram à margem. Agora, o mais duradouro efeito da war on terror, aliás,
uma expressão que os diplomatas americanos finalmente estão abandonando,
terá sido permitir que os Estados Unidos revivessem a prática da tortura,
bem como permitir que os cidadãos fossem alvo de vigilância oficial. Isso,
claro, sem falar das medidas que fazem com que a vida das pessoas fique mais
desconfortável, como ao viajar de avião.
Diante dos problemas econômicos que hoje afligem os Estados Unidos, ainda
sem um horizonte de recuperação à vista, o senhor diria que seguimos em
direção a um tempo de declínio da hegemonia americana?
Nós de fato caminhamos em direção à Era do Declínio Americano. As guerras
dos últimos dez anos demonstram como vem falhando a tentativa americana de
consolidar sua solitária hegemonia mundial. Isso porque o mundo hoje é
politicamente pluralista, e não monopolista. Junto com toda a região que
alavancou a industrialização na passagem do século 19 para o século 20, hoje
a América assiste à mudança do centro de gravidade econômica do Atlântico
Norte para o Leste e o Sul. Enquanto o Ocidente vive sua maior crise desde
os anos 30, a economia global ainda assim continua a crescer, empurrada pela
China e também pelos outros Brics. Ainda assim, não devemos subestimar os
Estados Unidos. Qualquer que venha a ser a configuração do mundo no futuro,
eles ainda se manterão como um grande país e não apenas porque são a
terceira população do planeta. Ainda vão desfrutar, por um bom tempo, da
notável acumulação científica que conseguiram fazer, além de todo o soft
power global representado por sua indústria cultural, seus filmes, sua
música, etc.
Não só por desdobramentos político-militares do 11/9, mas também pela
emergência de novos atores no mundo globalizado, criam-se situações bem
desafiadoras. Por exemplo, o que o Ocidente sabe do Islã? E dos países
árabes que hoje se levantam contra seus regimes? Qual é o grau de
entendimento da China? Enfim, o Ocidente enfrenta dificuldades decorrentes
de uma certa superioridade cultural ou arrogância histórica?
Ao longo de toda uma era de dominação, o Ocidente não só assumiu que seus
triunfos são maiores do que os de qualquer outra civilização, e que suas
conquistas são superiores, como também que não haveria outro caminho a
seguir. Portanto, ao Ocidente restaria unicamente ser imitado. Quando
aconteciam falhas nesse processo de imitação, isso só reforçava nosso senso
de superioridade cultural e arrogância histórica. Assim, países consolidados
em termos territoriais e políticos, monopolizando autoridade e poder,
olharam de cima para baixo para países que aparentemente estavam falhando na
busca de uma organização nas mesmas linhas. Países com instituições
democráticas liberais também olharam de cima para baixo para países que não
as tinham. Políticos do Ocidente passaram a pensar democracia como uma
espécie de contabilidade de cidadãos em termos de maiorias e minorias,
negando inclusive a essência histórica da democracia. E os colonizadores
europeus também se acharam no direito de olhar populações locais de cima
para baixo, subjugando-as ou até erradicando-as, mesmo quando viam que
aqueles modos de vida originais eram muito mais adequados ao meio ambiente
das colônias do que os modos de vida trazidos de fora. Tudo isso fez com que
o Ocidente realmente desenvolvesse essa dificuldade de entender e apreciar
avanços que não fossem os próprios.
Essa superioridade do Ocidente pode mudar com a emergência de uma potência
como a China?
Mas mesmo a China, que no passado remoto era tida como uma civilização
superior, foi subestimada por longo tempo. Só depois da 2ª Guerra é que seus
avanços em ciência e tecnologia começaram a ser reconhecidos. E só
recentemente historiadores têm levantado as extraordinárias contribuições
chinesas até o século 19. Veja bem, ainda não sabemos em que medida a
cultura, a língua e mesmo as práticas espirituais da Pérsia, hoje Irã,
enfim, em que medida aquele fraco e frequentemente conquistado império
influenciou uma grande parte da Ásia, do Império Otomano até as fronteiras
da China. Sabemos? Temos grande dificuldade em compreender a natureza das
sociedades nômades, bem como sua interação com sociedades agrícolas
assentadas, e hoje a falta dessa compreensão torna quase impossível traduzir
o que se passa em vastas áreas da África e da região do Saara, por exemplo,
no Sudão e na Somália. A política internacional fica completamente perdida
quando confrontada por sociedades que rejeitam qualquer tipo de estado
territorial ou poder superior ao do clã ou da tribo, como no Afeganistão e
nas terras altas do sudoeste asiático. Hoje achamos que já sabemos muito
sobre o Islã, sem nem sequer nos darmos conta de que o radicalismo xiita dos
aiatolás iranianos e o sonho de restauração do califado por grupos sunitas
não são expressões de um Islã tradicional, mas adaptações modernistas,
processadas o longo século 20, de uma religião prismática e adaptável.
Com todos esses exemplos de ''mundos'' que se estranham, o senhor diria que
a história corre o risco das distorções?
Apesar de todos esses exemplos, sou forçado a admitir que a arrogância
histórica ocidental inevitavelmente se enfraquece, exceto em alguns países,
entre eles os EUA, cujo senso de identidade coletiva ainda consiste na
crença de sua própria superioridade. Nos últimos dez anos, a história tomou
outro curso, muito afetada pelas imigrações internacionais que permitem a
mulheres e homens de outras culturas virem para os "nossos" países. Dou um
exemplo: hoje a informação municipal na região de Londres onde vivo está
disponível não apenas em inglês, mas em albanês, chinês, somali e urdu. A
questão preocupante é que, como reação a tudo isso, surge também uma
xenofobia de caráter populista, que se propaga até nas camadas mais educadas
da população. Mas, inegavelmente, numa cidade como Londres ou Nova York,
onde a presença dos imigrantes de várias partes é forte, existe hoje um
reconhecimento maior da diversidade do mundo do que se tinha no passado.
Turistas que buscam destinos na Ásia, África ou até mesmo no Caribe costumam
não entender a natureza das sociedades que cercam seus hotéis, mas jovens
mulheres e homens que hoje viajam, a trabalho ou estudos, para esses
lugares, já criam outra compreensão. Em resumo, apesar da expansão de
xenofobia, há motivos para otimismo porque a compreensão abrangente do nosso
tempo complexo requer mais do que conhecimento ou admiração por outras
culturas. Requer conhecimento, estudo e, não menos importante, imaginação.
Imaginação?
Sim, porque essa compreensão abrangente é frequentemente dificultada pelo
persistente hábito de políticos e generais passarem por cima do passado. O
Afeganistão é um clamoroso exemplo do que estou dizendo. Temo que não seja o
único.
Na sua opinião, estaríamos atravessando um momento regressivo da humanidade
quando fundamentalismos religiosos impõem visões de mundo e modos de vida?
O que vem a ser um momento regressivo? Esta é a pergunta que faço. Não
acredito que nossa civilização esteja encarando séculos de regressão como
ocorreu na Europa Ocidental depois da queda do Império Romano. Por outro
lado, devemos abandonar a antiga crença de que o progresso moral e político
seja tão inevitável quanto o progresso científico, técnico e material. Essa
crença tinha alguma base no século 19. Hoje o problema real que se coloca, o
maior deles, é que o poder do progresso material e tecnocientífico, baseado
em crescente e acelerado crescimento econômico, num sistema capitalista sem
controle, gera uma crise global de meio ambiente que coloca a humanidade em
risco. E, à falta de uma entidade internacional efetiva no plano da tomada
de decisão, nem o conhecimento consolidado do que fazer, nem o desejo
político de governos nacionais de fazer alguma coisa estão presentes. Esse
vazio decisório e de ação pode, sim, levar o nosso século para um momento
regressivo. E certamente isso tem a ver com aquele "sentido de
desorientação" que discutimos no início da entrevista.
Apoiado na sua longa trajetória acadêmica, que conselhos o senhor daria aos
jovens historiadores de hoje?
Hoje pesquisar e escrever a história são atividades fundamentais, e a missão
mais importante dos historiadores é combater mitos ideológicos, boa parte
deles de feitio nacionalista e religioso. Combater mitos para substituí-los
justamente por história, com o apoio e o estímulo de muitos governos,
inclusive. Se eu fosse jovem o suficiente, gostaria de participar de um
excitante projeto interdisciplinar que recorresse à moderna arqueologia e às
técnicas de DNA para compor uma história global do desenvolvimento humano,
desde quando os primeiros Homo sapiens tenham aparecido na África oriental e
como elas se espalharam pelo globo. Agora, se eu fosse um jovem historiador
latino-americano, daí eu poderia ser tentado a investigar o impacto do meu
continente sobre o resto do mundo. Isso, desde 1492, na era dos
descobrimentos, passando pela contribuição material desse continente a
tantos países, com metais preciosos, alimentos e remédios, até o efeito da
América Latina sobre a cultura moderna e a compreensão do mundo,
influenciando intelectuais como Montaigne, Humboldt, Darwin. E,
evidentemente, eu pesquisaria a riqueza musical do continente, fosse eu um
latino-americano. Isso é tudo o que eu quero dizer.
A RODA BÉLICA DA HISTÓRIA, POR HOBSBAWM
1ª Guerra, o banho de sangue
O tempo histórico era outro, avalia Hobsbawm. O mundo ficara quase um século
sem um grande conflito e o conceito de "paz" fez-se sinômico de "antes de
1914", ano em que Francisco Ferdinando, da Áustria, foi morto. Detonava-se o
conflito que iria sangrar a Europa.
2ª Guerra, o mistério
O mundo sabia o que era uma guerra maciça, mas não uma guerra global. Eis a
amarga contribuição da 2ª Guerra, conflito sem limites. Hobsbawm indaga: por
que Hitler, esgotado na Rússia, declarou guerra aos EUA, permitindo que se
associassem à Grã-Bretanha?
Guerra Fria, o absurdo
Como explicar 40 anos de tensão pela crença de que o planeta poderia
explodir a qualquer momento e, contra a destruição total, só haveria a
chance da dissuasão mútua? Para Hobsbawm, a Guerra Fria dos tempos de
Kruchev carregou a inconclusão da Era da Catástrofe.
Guerra do Golfo, o lucro
Ao findar da Guerra Fria, lembra o historiador, a hegemonia econômica
americana já estava abalada. E sua superioridade militar teve que ser
financiada por apoiadores de Washington. Na guerra contra o Iraque, em 1991,
a potência presidida por Bush pai realizou lucros.
a luz da historia. ESTADAO. 11 de setembro de 2011
*Trocando mitos por história. *
**
*Entrevista com Eric Hobsbawm *
O ataque às torres gêmeas do World Trade Center, há exatos dez anos, num
atentado que não só amputou a paisagem de Nova York, mas acima de tudo tirou
a vida de milhares de pessoas, acordando o mundo para tensões inauditas, foi
a mais completa experiência de uma catástrofe de que se tem notícia, afirma
com convicção o historiador britânico Eric Hobsbawm. "Porque foi vista em
cada aparelho de TV, nos dois hemisférios", justifica em seguida. Mas,
quando ele coloca a mesma catástrofe no plano maior da história das
civilizações, daí faz com que afirmação superlativa submeta-se a outras
associações de ideias, que nos convidam a pensar. E pensar muito.
Aos 94 anos, Eric John Ernest Hobsbawm mais uma vez dá provas de que o
caminhar da humanidade se faz com passos que medem séculos e a melhor
unidade da história, no seu jeito de ver o mundo, é a "era", e não os dias,
os anos, nem mesmo as décadas. Aqui mesmo, nestas páginas, ele nos contará
por que acha que já entramos na "era do declínio americano", sem em nenhum
momento subestimar o país que por muito tempo ainda exportará seu formidável
"soft power" - o cinema, a música, a literatura, a moda, os estilos de vida,
enfim, todo um aparato cultural.
Hobsbawm concedeu esta entrevista dias atrás, de regresso a Londres depois
do descanso de verão. Respondeu por escrito ao conjunto de perguntas. Ao
construir as respostas, vê-se como selecionou os exemplos que melhor
ilustram seu raciocínio, sempre com invejável disposição intelectual. Ao
final do questionário, e depois de revelar até os projetos que gostaria de
desenvolver "se fosse mais jovem", terminou a entrevista com a seguinte
afirmação: "Isso é tudo o que eu quero dizer".
Autor de A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e a A
Era dos Extremos, em que tece uma "breve história" do século XX, questiona
assimilações como a superioridade cultural do Ocidente, por vezes invólucro
de uma arrogância histórica que hoje mal disfarça a incapacidade de
entender, afinal de contas, o que vem a ser uma sociedade tribal ou um
califado. Por outro lado, acha que a intensificação dos fluxos migratórios,
levando incessantemente gente jovem de um canto a outro do planeta, embora
gere muita xenofobia, gera também uma visão mais disseminada da diversidade
do mundo. Visão que a geração de Hobsbawm, nascido em 1917 no Egito sob
domínio inglês, numa família judia mais tarde perseguida pelo nazismo,
definitivamente não teve.
Professor (emérito) da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e da New
School for Social Research, em Nova York, Hobsbawm só é capaz de compreender
o historiador como um "observador participante", além de se autodefinir
também como um "viajante de olhos abertos e jornalista ocasional". Chega a
recomendar aos seus leitores que tentem tomar o que ele escreve "na base da
confiança", porque embora pesquise incansavelmente, se dispensa das
referências bibliográficas sem fim e das enfadonhas exibições de erudição.
Por isso, seguramente, seu estilo é inconfundível.
Marx, ele descobriu na juventude. Ao fixar-se em Londres, logo alistou-se no
Partido Comunista e, depois, no exército britânico, para combater Hitler.
Evidentemente Hobsbawm foi cobrado pelo método marxista de análise que ainda
hoje utiliza, especialmente quando muitos dos seus pares trataram de rever
posições, a partir do desmoronamento do mundo soviético. Em sua
autobiografia, Tempos Interessantes (lançada em 2002 pela Companhia das
Letras, assim como outros títulos importantes do autor), ele próprio já
tratava de acalmar os fustigadores: "A história poderá julgar minhas
opiniões políticas - na verdade em grande parte já as julgou - e os leitores
poderão julgar meus livros. O que busco é o entendimento da história, e não
concordância, aprovação ou comiseração".
A entrevista é de Laura Greenhalgh e publicada pelo jornal O Estado de
S.Paulo, 11-09-2011.
Eis a entrevista.
No livro Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007, o senhor passa para
os leitores certo pessimismo ao lhes colocar uma perspectiva crucial e ao
mesmo tempo desconfortante: ''Não sabemos para onde estamos indo'', diz,
referindo-se aos rumos mundiais. Olhando as últimas décadas pelo retrovisor
da história esse sentimento parece ter se intensificado. Em que outros
momentos a humanidade viveu períodos marcados por essa mesma sensação de
falta de rumos?
Embora existam diferenças entre os países, e também entre as gerações, sobre
a percepção do futuro - por exemplo, hoje há visões mais otimistas na China
ou no Brasil do que em países da União Europeia e nos Estados Unidos -,
ainda assim acredito que, ao pensar seriamente na situação mundial, muita
gente experimente esse pessimismo ao qual você se refere. Porque de fato
atravessamos um tempo de rápidas transformações e não sabemos para onde
estamos indo, mas isso não constitui um elemento novo em tempos críticos.
Tempos que nos remetem ao mundo em ruínas depois de 1914, ou mesmo a vários
lugares daquela Europa entre duas grandes guerras ou na expectativa de uma
terceira. Aqueles anos durante e após a 2ª Guerra foram catastróficos, ali
ninguém poderia prever que formato o futuro teria ou mesmo se haveria algum
futuro. Cruzamos também os anos da Guerra Fria, sempre assustadores pela
possibilidade de uma guerra nuclear. E, mais recentemente, notamos a mesma
sensação de desorientação ao vermos como os Estados Unidos mergulharam numa
crise econômica que até parece ser o breakdown do capitalismo liberal.
Nações saíram empobrecidas, arruinadas mesmo, das guerras mundiais, mas é
adequado pensar que havia naqueles escombros o desenho de um futuro?
Sim. Se de um lado o futuro nos era desconhecido e cada vez mais inesperado,
havia por outro lado uma ideia mais nítida sobre as opções que se
apresentavam. No entreguerras, a escolha principal de um modelo se dava
entre o capitalismo reformado e o socialismo com forte planejamento
econômico - supremacia de mercado sem controle era algo impensável. Havia
ainda a opção entre uma democracia liberal, o fascismo ultranacionalista e o
comunismo. Depois de 1945, o mundo claramente se dividiu numa zona de
democracia liberal e bem-estar social a partir de um capitalismo reformado,
sob a égide dos EUA, e uma zona sob orientação comunista. E havia também uma
zona de emancipação de colônias, que era algo indefinido e preocupante. Mas
veja que os países poderiam encontrar modelos de desenvolvimento importados
do Ocidente, do Leste e até mesmo resultante da combinação dos dois. Hoje
esses marcos sinalizadores desapareceram e os "pilotos" que guiariam nossos
destinos, também.
Como o senhor avalia o poder das imagens de destruição nos ataques do 11/9 a
Nova York, tão repetidas nos últimos dias? Tornaram-se o símbolo de uma
guinada histórica, apontando novas relações entre Ocidente e Oriente? Por
que imagens do cenário de morte de Bin Laden surtiram menos impacto?
A queda das torres do World Trade Center foi certamente a mais abrangente
experiência de catástrofe que se tem na história, inclusive por ter sido
acompanhada em cada aparelho de televisão, nos dois hemisférios do planeta.
Nunca houve algo assim. E sendo imagens tão dramáticas, não surpreende que
ainda causem forte impressão e tenham se convertido em ícones. Agora, elas
representam uma guinada histórica? Não tenho dúvida de que os Estados Unidos
tratam o 11/9 dessa forma, como um turning point, mas não vejo as coisas
desse modo. A não ser pelo fato de que o ataque deu ao governo americano a
ocasião perfeita para o país demonstrar sua supremacia militar ao mundo. E
com sucesso bastante discutível, diga-se. Já o retrato de Bin Laden morto
(que não foi divulgado) talvez fosse uma imagem menos icônica para nós, mas
poderia se converter num ícone para o mundo islâmico. Da maneira deles,
porque não é costume nesse mundo dar tanta importância a imagens,
diferentemente do que fazemos no Ocidente, com nossas camisetas estampando o
rosto de Che Guevara.
Mas além da chance de demonstrar poderio militar, os Estados Unidos deram
uma guinada na sua política externa a partir de 2001, ajustando o foco
naquilo que George W. Bush batizou como "war on terror". Outro
encaminhamento seria possível?
Eu diria que a política externa americana, depois de 2001, foi parcialmente
orientada para a guerra ao terror, e fundamentalmente orientada pela certeza
de que o 11/9 trouxe para os EUA a primeira grande oportunidade, depois do
colapso soviético, de estabelecer uma supremacia global, combinando poder
político-econômico e poder militar. Criou-se a situação propícia para
espalhar e reforçar bases militares americanas na Ásia central, ainda uma
região muito ligada à Rússia. Sob esse aspecto, houve uma confluência de
objetivos - combate-se o inimigo ampliando enormemente a presença militar
americana. Mas, sob outro aspecto, esses objetivos conflitaram. A guerra no
Iraque, que no fundo nada tinha a ver com a Al-Qaeda, consumiu atenção e uma
enormidade de recursos dos EUA, e ainda permitiu à organização liderada por Bin
Laden criar bases não só no Iraque, mas no Paquistão e extensões pelo
Oriente Médio.
Os Estados Unidos lançaram-se nessa campanha sabendo o tamanho do inimigo?
O perigo do terrorismo islâmico ficou exagerado, a meu ver. Ele matou
milhares de pessoas, é certo, mas o risco para a vida e a sobrevivência da
humanidade que ele possa representar é muito menor do que o que se estima.
Exemplo disso são as importantes mudanças que ocorreram neste ano no mundo
árabe, mudanças que nada devem ao terrorismo islâmico. E não só: elas o
deixaram à margem. Agora, o mais duradouro efeito da war on terror, aliás,
uma expressão que os diplomatas americanos finalmente estão abandonando,
terá sido permitir que os Estados Unidos revivessem a prática da tortura,
bem como permitir que os cidadãos fossem alvo de vigilância oficial. Isso,
claro, sem falar das medidas que fazem com que a vida das pessoas fique mais
desconfortável, como ao viajar de avião.
Diante dos problemas econômicos que hoje afligem os Estados Unidos, ainda
sem um horizonte de recuperação à vista, o senhor diria que seguimos em
direção a um tempo de declínio da hegemonia americana?
Nós de fato caminhamos em direção à Era do Declínio Americano. As guerras
dos últimos dez anos demonstram como vem falhando a tentativa americana de
consolidar sua solitária hegemonia mundial. Isso porque o mundo hoje é
politicamente pluralista, e não monopolista. Junto com toda a região que
alavancou a industrialização na passagem do século 19 para o século 20, hoje
a América assiste à mudança do centro de gravidade econômica do Atlântico
Norte para o Leste e o Sul. Enquanto o Ocidente vive sua maior crise desde
os anos 30, a economia global ainda assim continua a crescer, empurrada pela
China e também pelos outros Brics. Ainda assim, não devemos subestimar os
Estados Unidos. Qualquer que venha a ser a configuração do mundo no futuro,
eles ainda se manterão como um grande país e não apenas porque são a
terceira população do planeta. Ainda vão desfrutar, por um bom tempo, da
notável acumulação científica que conseguiram fazer, além de todo o soft
power global representado por sua indústria cultural, seus filmes, sua
música, etc.
Não só por desdobramentos político-militares do 11/9, mas também pela
emergência de novos atores no mundo globalizado, criam-se situações bem
desafiadoras. Por exemplo, o que o Ocidente sabe do Islã? E dos países
árabes que hoje se levantam contra seus regimes? Qual é o grau de
entendimento da China? Enfim, o Ocidente enfrenta dificuldades decorrentes
de uma certa superioridade cultural ou arrogância histórica?
Ao longo de toda uma era de dominação, o Ocidente não só assumiu que seus
triunfos são maiores do que os de qualquer outra civilização, e que suas
conquistas são superiores, como também que não haveria outro caminho a
seguir. Portanto, ao Ocidente restaria unicamente ser imitado. Quando
aconteciam falhas nesse processo de imitação, isso só reforçava nosso senso
de superioridade cultural e arrogância histórica. Assim, países consolidados
em termos territoriais e políticos, monopolizando autoridade e poder,
olharam de cima para baixo para países que aparentemente estavam falhando na
busca de uma organização nas mesmas linhas. Países com instituições
democráticas liberais também olharam de cima para baixo para países que não
as tinham. Políticos do Ocidente passaram a pensar democracia como uma
espécie de contabilidade de cidadãos em termos de maiorias e minorias,
negando inclusive a essência histórica da democracia. E os colonizadores
europeus também se acharam no direito de olhar populações locais de cima
para baixo, subjugando-as ou até erradicando-as, mesmo quando viam que
aqueles modos de vida originais eram muito mais adequados ao meio ambiente
das colônias do que os modos de vida trazidos de fora. Tudo isso fez com que
o Ocidente realmente desenvolvesse essa dificuldade de entender e apreciar
avanços que não fossem os próprios.
Essa superioridade do Ocidente pode mudar com a emergência de uma potência
como a China?
Mas mesmo a China, que no passado remoto era tida como uma civilização
superior, foi subestimada por longo tempo. Só depois da 2ª Guerra é que seus
avanços em ciência e tecnologia começaram a ser reconhecidos. E só
recentemente historiadores têm levantado as extraordinárias contribuições
chinesas até o século 19. Veja bem, ainda não sabemos em que medida a
cultura, a língua e mesmo as práticas espirituais da Pérsia, hoje Irã,
enfim, em que medida aquele fraco e frequentemente conquistado império
influenciou uma grande parte da Ásia, do Império Otomano até as fronteiras
da China. Sabemos? Temos grande dificuldade em compreender a natureza das
sociedades nômades, bem como sua interação com sociedades agrícolas
assentadas, e hoje a falta dessa compreensão torna quase impossível traduzir
o que se passa em vastas áreas da África e da região do Saara, por exemplo,
no Sudão e na Somália. A política internacional fica completamente perdida
quando confrontada por sociedades que rejeitam qualquer tipo de estado
territorial ou poder superior ao do clã ou da tribo, como no Afeganistão e
nas terras altas do sudoeste asiático. Hoje achamos que já sabemos muito
sobre o Islã, sem nem sequer nos darmos conta de que o radicalismo xiita dos
aiatolás iranianos e o sonho de restauração do califado por grupos sunitas
não são expressões de um Islã tradicional, mas adaptações modernistas,
processadas o longo século 20, de uma religião prismática e adaptável.
Com todos esses exemplos de ''mundos'' que se estranham, o senhor diria que
a história corre o risco das distorções?
Apesar de todos esses exemplos, sou forçado a admitir que a arrogância
histórica ocidental inevitavelmente se enfraquece, exceto em alguns países,
entre eles os EUA, cujo senso de identidade coletiva ainda consiste na
crença de sua própria superioridade. Nos últimos dez anos, a história tomou
outro curso, muito afetada pelas imigrações internacionais que permitem a
mulheres e homens de outras culturas virem para os "nossos" países. Dou um
exemplo: hoje a informação municipal na região de Londres onde vivo está
disponível não apenas em inglês, mas em albanês, chinês, somali e urdu. A
questão preocupante é que, como reação a tudo isso, surge também uma
xenofobia de caráter populista, que se propaga até nas camadas mais educadas
da população. Mas, inegavelmente, numa cidade como Londres ou Nova York,
onde a presença dos imigrantes de várias partes é forte, existe hoje um
reconhecimento maior da diversidade do mundo do que se tinha no passado.
Turistas que buscam destinos na Ásia, África ou até mesmo no Caribe costumam
não entender a natureza das sociedades que cercam seus hotéis, mas jovens
mulheres e homens que hoje viajam, a trabalho ou estudos, para esses
lugares, já criam outra compreensão. Em resumo, apesar da expansão de
xenofobia, há motivos para otimismo porque a compreensão abrangente do nosso
tempo complexo requer mais do que conhecimento ou admiração por outras
culturas. Requer conhecimento, estudo e, não menos importante, imaginação.
Imaginação?
Sim, porque essa compreensão abrangente é frequentemente dificultada pelo
persistente hábito de políticos e generais passarem por cima do passado. O
Afeganistão é um clamoroso exemplo do que estou dizendo. Temo que não seja o
único.
Na sua opinião, estaríamos atravessando um momento regressivo da humanidade
quando fundamentalismos religiosos impõem visões de mundo e modos de vida?
O que vem a ser um momento regressivo? Esta é a pergunta que faço. Não
acredito que nossa civilização esteja encarando séculos de regressão como
ocorreu na Europa Ocidental depois da queda do Império Romano. Por outro
lado, devemos abandonar a antiga crença de que o progresso moral e político
seja tão inevitável quanto o progresso científico, técnico e material. Essa
crença tinha alguma base no século 19. Hoje o problema real que se coloca, o
maior deles, é que o poder do progresso material e tecnocientífico, baseado
em crescente e acelerado crescimento econômico, num sistema capitalista sem
controle, gera uma crise global de meio ambiente que coloca a humanidade em
risco. E, à falta de uma entidade internacional efetiva no plano da tomada
de decisão, nem o conhecimento consolidado do que fazer, nem o desejo
político de governos nacionais de fazer alguma coisa estão presentes. Esse
vazio decisório e de ação pode, sim, levar o nosso século para um momento
regressivo. E certamente isso tem a ver com aquele "sentido de
desorientação" que discutimos no início da entrevista.
Apoiado na sua longa trajetória acadêmica, que conselhos o senhor daria aos
jovens historiadores de hoje?
Hoje pesquisar e escrever a história são atividades fundamentais, e a missão
mais importante dos historiadores é combater mitos ideológicos, boa parte
deles de feitio nacionalista e religioso. Combater mitos para substituí-los
justamente por história, com o apoio e o estímulo de muitos governos,
inclusive. Se eu fosse jovem o suficiente, gostaria de participar de um
excitante projeto interdisciplinar que recorresse à moderna arqueologia e às
técnicas de DNA para compor uma história global do desenvolvimento humano,
desde quando os primeiros Homo sapiens tenham aparecido na África oriental e
como elas se espalharam pelo globo. Agora, se eu fosse um jovem historiador
latino-americano, daí eu poderia ser tentado a investigar o impacto do meu
continente sobre o resto do mundo. Isso, desde 1492, na era dos
descobrimentos, passando pela contribuição material desse continente a
tantos países, com metais preciosos, alimentos e remédios, até o efeito da
América Latina sobre a cultura moderna e a compreensão do mundo,
influenciando intelectuais como Montaigne, Humboldt, Darwin. E,
evidentemente, eu pesquisaria a riqueza musical do continente, fosse eu um
latino-americano. Isso é tudo o que eu quero dizer.
A RODA BÉLICA DA HISTÓRIA, POR HOBSBAWM
1ª Guerra, o banho de sangue
O tempo histórico era outro, avalia Hobsbawm. O mundo ficara quase um século
sem um grande conflito e o conceito de "paz" fez-se sinômico de "antes de
1914", ano em que Francisco Ferdinando, da Áustria, foi morto. Detonava-se o
conflito que iria sangrar a Europa.
2ª Guerra, o mistério
O mundo sabia o que era uma guerra maciça, mas não uma guerra global. Eis a
amarga contribuição da 2ª Guerra, conflito sem limites. Hobsbawm indaga: por
que Hitler, esgotado na Rússia, declarou guerra aos EUA, permitindo que se
associassem à Grã-Bretanha?
Guerra Fria, o absurdo
Como explicar 40 anos de tensão pela crença de que o planeta poderia
explodir a qualquer momento e, contra a destruição total, só haveria a
chance da dissuasão mútua? Para Hobsbawm, a Guerra Fria dos tempos de
Kruchev carregou a inconclusão da Era da Catástrofe.
Guerra do Golfo, o lucro
Ao findar da Guerra Fria, lembra o historiador, a hegemonia econômica
americana já estava abalada. E sua superioridade militar teve que ser
financiada por apoiadores de Washington. Na guerra contra o Iraque, em 1991,
a potência presidida por Bush pai realizou lucros.
terça-feira, 6 de setembro de 2011
Veja link sobre III Foirum de grupos de estudos de direito constitucional e teoria do direito
http://pesquisaconstitucional.wordpress.com/2011/09/06/iii-forum-encerra-inscricoes-com-grande-procura/
segunda-feira, 5 de setembro de 2011
O declinio americano
Folha
São Paulo, segunda-feira, 05 de setembro de 2011
11/9/2001 O DIA QUE MARCOU UMA DÉCADA
ENTREVISTA MADELEINE ALBRIGHT
EUA têm dever de ajudar no progresso de outros países
EX-SECRETÁRIA DE ESTADO AMERICANA NEGA PERCEPÇÃO DE DECLÍNIO DO PAÍS E PEDE A DIVISÃO DE RESPONSABILIDADES
Emmanuel Dunand-09.fev.11/France Presse
Ex-secretária de Estado participa de debate na Universidade de Nova York
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
Dez anos após os atentados de 11 de Setembro, em meio à crescente percepção de que os americanos estão se tornando cada vez mais fracos no cenário internacional, Madeleine Albright, a primeira mulher a ser secretária de Estado dos EUA, vai contra a corrente.
Os EUA não estão em declínio e mantêm sua função de intervir em países ao redor do mundo para garantir que não se tornem Estados falidos, acredita Albright, que liderou a política externa americana no governo Clinton, de 1997 a 2000. "Mas nós não vamos fazer isso sozinhos -também brasileiros vão se beneficiar muito se não formos mais cercados por Estados falidos", disse Albright em entrevista exclusiva à Folha.
"Nossos países, que sabem como liderar democracias funcionais, precisam trabalhar juntos para ajudar outros países."
A ex-secretária, que hoje é sócia da consultoria Albright Stonebridge Group e dá aulas na Universidade Georgetown, virá ao Brasil em outubro. Ela é uma das melhores amigas da atual secretária de Estado, Hillary Clinton.
Abaixo, trechos da entrevista, feita por telefone, de Washington.
Folha - De que maneira duradoura os atentados de 11 de Setembro mudaram a forma como os EUA veem o mundo?
Madeleine Albright - O 11 de Setembro foi um dos acontecimentos mais significativos para o povo americano. Eu nasci na Europa, na escalada para a Segunda Guerra Mundial (Albright nasceu na então Tchecoslováquia, em 1937, mas é cidadã americana). Eu sei o que é se sentir vulnerável.
A maioria dos americanos nunca havia se sentido vulnerável, foi um choque enorme. O efeito desse choque é muito duradouro, e é importante que os americanos não fiquem dominados pelo "fator medo".
Existe uma discussão entre analistas sobre a suposta decadência dos EUA no cenário global e o fato de esse declínio ser inevitável.
Eu não concordo com essa discussão. Eu vejo o mundo de forma muito diferente. Vejo muitos países ganhando poder no mundo, mas isso é bom. E isso ocorre porque as grandes questões de hoje -proliferação nuclear, terrorismo, pobreza, energia, ambiente, crise financeira- exigem a participação de vários países para resolvê-las, não podem ser abordadas apenas por uma potência.
Isso não é um sinal do declínio dos EUA. Nós achamos que isso é bom, celebramos a ascensão do Brasil, o fato de existir outro país com o qual podemos compartilhar responsabilidades.
Na discussão para elevar o teto do endividamento, haverá redução do deficit que atinge em cheio o Pentágono. Mas acredita-se que muitos cortes virão do Departamento de Estado também. Com redução em ajuda internacional e número de diplomatas, a senhora acha que o chamado "smart power" dos EUA pode ser afetado?
Essa é uma grande preocupação. Como cidadã americana e ex-secretária de Estado, estou muito preocupada com o que está ocorrendo com o orçamento.
Uma democracia vibrante como os EUA tem responsabilidades globais. É dever do nosso governo ajudar no progresso social de outros países e por isso fico tão perturbada com corte no Departamento de Estado. Os EUA não podem fugir de seu papel global. E por isso estamos procurando parceiros, como o Brasil.
A senhora acha que haverá grandes mudanças na política de defesa dos EUA?
Os EUA estão passando por duas guerras. Mas o presidente Obama está acelerando a retirada do Iraque e Afeganistão, com compromissos e calendários. Então, obviamente, teremos um Pentágono muito diferente, em um país que não está envolvido em duas guerras simultaneamente.
De qualquer maneira, o que mudou desde o 11 de Setembro é que há uma cooperação muito maior entre as agências de inteligência e um reconhecimento do fato de que o Departamento de Estado precisa desempenhar um papel muito maior, baseando-se na experiência que tivemos nos últimos anos.
Ficou claro que é essencial um grande número de diplomatas, civis, nesses países em conflitos, para melhorar as condições políticas e econômicas, e ter esse pessoal envolvido em reconstrução. Também é importante ressaltar o papel crescente das aeronaves não-tripuladas (drones), que foram muito eficientes nas missões para desmantelar a Al Qaeda.
No novo cenário global, onde se encaixa o Brasil?
A visita do presidente [Barack] Obama ao país demonstra que, para os EUA, o relacionamento com o Brasil é muito importante. Os Brics são um agrupamento meio peculiar, mas, dentre os países Brics, o Brasil é único porque é uma democracia forte, com a qual nós queremos trabalhar.
O presidente Obama está muito animado com a vinda da presidente Dilma Rousseff aos EUA -ela será a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral da ONU. Eu estou muito animada com a minha ida ao Brasil, em outubro. Fui várias vezes ao Brasil, quando era secretária de Estado, mas faz 11 anos que não vou ao país. Servi nas Nações Unidas ao lado do atual ministro da Defesa, Celso Amorim.
Analistas decretam que missões de ajuda humanitária e reconstrução, como as que os EUA fizeram na Somália, no Haiti, em Kosovo e no Afeganistão, estão condenadas a desaparecer.
Há uma infinidade de jeitos de ajudar outros países a terem uma infraestrutura e se tornarem sociedades funcionais. Mas nós não vamos fazer isso sozinhos -também brasileiros vão se beneficiar muito se não formos mais cercados por Estados falidos.
Nossos países, que sabem como liderar democracias funcionais, precisam trabalhar juntos para ajudar outros países.
Então vocês estariam dividindo com outros países a responsabilidade nas intervenções humanitárias?
Sim, lidero uma força-tarefa sobre "a responsabilidade de proteger" e o que a comunidade internacional deve a cada país. Os EUA, como o Brasil, estarão em uma situação muito melhor se houver estabilidade no mundo, sem Estados falidos, então precisamos achar métodos de colaborar para que não tenhamos Estados falidos.
O que muda com a morte de Osama bin Laden? Os EUA terão mais tempo para se focar em aspectos que haviam sido um pouco negligenciados, como a ascensão da China?
A morte de Bin Laden decapitou a Al Qaeda, que não conseguiu reconstituir completamente sua liderança. Claramente ainda há células da Al Qaeda em vários lugares, então não podemos falar em derrota do terrorismo.
E, em relação a negligenciar outros aspectos, eu discordo -uma das características dos EUA é que nós conseguimos fazer várias coisas ao mesmo tempo. Temos observado a China, temos pontos muito positivos na relação, e outros que deixam alguns nervosos, como as intenções do país no mar do sul da China e em relação a Taiwan
São Paulo, segunda-feira, 05 de setembro de 2011
11/9/2001 O DIA QUE MARCOU UMA DÉCADA
ENTREVISTA MADELEINE ALBRIGHT
EUA têm dever de ajudar no progresso de outros países
EX-SECRETÁRIA DE ESTADO AMERICANA NEGA PERCEPÇÃO DE DECLÍNIO DO PAÍS E PEDE A DIVISÃO DE RESPONSABILIDADES
Emmanuel Dunand-09.fev.11/France Presse
Ex-secretária de Estado participa de debate na Universidade de Nova York
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
Dez anos após os atentados de 11 de Setembro, em meio à crescente percepção de que os americanos estão se tornando cada vez mais fracos no cenário internacional, Madeleine Albright, a primeira mulher a ser secretária de Estado dos EUA, vai contra a corrente.
Os EUA não estão em declínio e mantêm sua função de intervir em países ao redor do mundo para garantir que não se tornem Estados falidos, acredita Albright, que liderou a política externa americana no governo Clinton, de 1997 a 2000. "Mas nós não vamos fazer isso sozinhos -também brasileiros vão se beneficiar muito se não formos mais cercados por Estados falidos", disse Albright em entrevista exclusiva à Folha.
"Nossos países, que sabem como liderar democracias funcionais, precisam trabalhar juntos para ajudar outros países."
A ex-secretária, que hoje é sócia da consultoria Albright Stonebridge Group e dá aulas na Universidade Georgetown, virá ao Brasil em outubro. Ela é uma das melhores amigas da atual secretária de Estado, Hillary Clinton.
Abaixo, trechos da entrevista, feita por telefone, de Washington.
Folha - De que maneira duradoura os atentados de 11 de Setembro mudaram a forma como os EUA veem o mundo?
Madeleine Albright - O 11 de Setembro foi um dos acontecimentos mais significativos para o povo americano. Eu nasci na Europa, na escalada para a Segunda Guerra Mundial (Albright nasceu na então Tchecoslováquia, em 1937, mas é cidadã americana). Eu sei o que é se sentir vulnerável.
A maioria dos americanos nunca havia se sentido vulnerável, foi um choque enorme. O efeito desse choque é muito duradouro, e é importante que os americanos não fiquem dominados pelo "fator medo".
Existe uma discussão entre analistas sobre a suposta decadência dos EUA no cenário global e o fato de esse declínio ser inevitável.
Eu não concordo com essa discussão. Eu vejo o mundo de forma muito diferente. Vejo muitos países ganhando poder no mundo, mas isso é bom. E isso ocorre porque as grandes questões de hoje -proliferação nuclear, terrorismo, pobreza, energia, ambiente, crise financeira- exigem a participação de vários países para resolvê-las, não podem ser abordadas apenas por uma potência.
Isso não é um sinal do declínio dos EUA. Nós achamos que isso é bom, celebramos a ascensão do Brasil, o fato de existir outro país com o qual podemos compartilhar responsabilidades.
Na discussão para elevar o teto do endividamento, haverá redução do deficit que atinge em cheio o Pentágono. Mas acredita-se que muitos cortes virão do Departamento de Estado também. Com redução em ajuda internacional e número de diplomatas, a senhora acha que o chamado "smart power" dos EUA pode ser afetado?
Essa é uma grande preocupação. Como cidadã americana e ex-secretária de Estado, estou muito preocupada com o que está ocorrendo com o orçamento.
Uma democracia vibrante como os EUA tem responsabilidades globais. É dever do nosso governo ajudar no progresso social de outros países e por isso fico tão perturbada com corte no Departamento de Estado. Os EUA não podem fugir de seu papel global. E por isso estamos procurando parceiros, como o Brasil.
A senhora acha que haverá grandes mudanças na política de defesa dos EUA?
Os EUA estão passando por duas guerras. Mas o presidente Obama está acelerando a retirada do Iraque e Afeganistão, com compromissos e calendários. Então, obviamente, teremos um Pentágono muito diferente, em um país que não está envolvido em duas guerras simultaneamente.
De qualquer maneira, o que mudou desde o 11 de Setembro é que há uma cooperação muito maior entre as agências de inteligência e um reconhecimento do fato de que o Departamento de Estado precisa desempenhar um papel muito maior, baseando-se na experiência que tivemos nos últimos anos.
Ficou claro que é essencial um grande número de diplomatas, civis, nesses países em conflitos, para melhorar as condições políticas e econômicas, e ter esse pessoal envolvido em reconstrução. Também é importante ressaltar o papel crescente das aeronaves não-tripuladas (drones), que foram muito eficientes nas missões para desmantelar a Al Qaeda.
No novo cenário global, onde se encaixa o Brasil?
A visita do presidente [Barack] Obama ao país demonstra que, para os EUA, o relacionamento com o Brasil é muito importante. Os Brics são um agrupamento meio peculiar, mas, dentre os países Brics, o Brasil é único porque é uma democracia forte, com a qual nós queremos trabalhar.
O presidente Obama está muito animado com a vinda da presidente Dilma Rousseff aos EUA -ela será a primeira mulher a abrir a Assembleia Geral da ONU. Eu estou muito animada com a minha ida ao Brasil, em outubro. Fui várias vezes ao Brasil, quando era secretária de Estado, mas faz 11 anos que não vou ao país. Servi nas Nações Unidas ao lado do atual ministro da Defesa, Celso Amorim.
Analistas decretam que missões de ajuda humanitária e reconstrução, como as que os EUA fizeram na Somália, no Haiti, em Kosovo e no Afeganistão, estão condenadas a desaparecer.
Há uma infinidade de jeitos de ajudar outros países a terem uma infraestrutura e se tornarem sociedades funcionais. Mas nós não vamos fazer isso sozinhos -também brasileiros vão se beneficiar muito se não formos mais cercados por Estados falidos.
Nossos países, que sabem como liderar democracias funcionais, precisam trabalhar juntos para ajudar outros países.
Então vocês estariam dividindo com outros países a responsabilidade nas intervenções humanitárias?
Sim, lidero uma força-tarefa sobre "a responsabilidade de proteger" e o que a comunidade internacional deve a cada país. Os EUA, como o Brasil, estarão em uma situação muito melhor se houver estabilidade no mundo, sem Estados falidos, então precisamos achar métodos de colaborar para que não tenhamos Estados falidos.
O que muda com a morte de Osama bin Laden? Os EUA terão mais tempo para se focar em aspectos que haviam sido um pouco negligenciados, como a ascensão da China?
A morte de Bin Laden decapitou a Al Qaeda, que não conseguiu reconstituir completamente sua liderança. Claramente ainda há células da Al Qaeda em vários lugares, então não podemos falar em derrota do terrorismo.
E, em relação a negligenciar outros aspectos, eu discordo -uma das características dos EUA é que nós conseguimos fazer várias coisas ao mesmo tempo. Temos observado a China, temos pontos muito positivos na relação, e outros que deixam alguns nervosos, como as intenções do país no mar do sul da China e em relação a Taiwan
sábado, 3 de setembro de 2011
Ulrich Beck
ELPAIS. Opinión 5 de 12 en Opinión anterior siguiente TRIBUNA: ULRICH BECK
Más justicia mediante más Europa
La introducción de eurobonos no supondría una traición a los intereses germanos. Al contrario. Como ocurrió con su reunificación, la unión solidaria, ahora la de Europa, es el camino que conviene de veras a Alemania
ULRICH BECK 03/09/2011
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La política europea está en una encrucijada tan importante como la que afrontó durante los años setenta la de Alemania occidental hacia el bloque soviético en general y la RDA en particular, la denominada ostpolitik (política oriental). El lema de entonces, "Al cambio mediante el acercamiento", podría ser hoy: "Más justicia mediante más Europa".
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Los países acreedores de la UE tratan de imponer sus programas de ahorro
Los deudores se ven sometidos a dictados que vulneran su independencia y hieren su dignidad
En aquella y en esta ocasión se trataba de superar una escisión: entonces, la existente entre Occidente y el Este; ahora, la que se da entre el Norte y el Sur. Como no se cansan de repetir los políticos, Europa es una comunidad de destino. Lo fue ya en el momento de su fundación. La Unión Europea es la idea que surgió de la devastación material y moral producida por la II Guerra Mundial. La ostpolitik era una idea que pretendía desactivar la guerra fría y abrir agujeros en el telón de acero.
A diferencia de lo que ocurría con anteriores Estados e imperios, que buscaban su origen en mitos y victorias heroicas, la Unión Europea es una institución transnacional de gobierno que nació de la agonía de la derrota y del horror por el Holocausto. Pero hoy, cuando ya no se trata de la guerra o de la paz, ¿qué significa la comunidad de destino europea? ¿Cuál es la nueva experiencia generacional?
Es la amenaza existencial de la crisis financiera y la crisis del euro lo que ha hecho que los europeos recobren la conciencia de que no viven en Alemania, Italia o Francia, sino en Europa. La juventud de Europa experimenta por primera vez su "destino europeo": con mejor formación que nunca, se incorpora al mercado laboral con sus esperanzas menguadas por la amenaza de las quiebras estatales y la crisis económica. Uno de cada cinco europeos menores de 25 años está en paro.
En aquellos lugares en los que los universitarios en precario han levantado sus campamentos y elevado sus voces, los jóvenes demandan siempre lo mismo: justicia social. Trátese de España o Portugal o de Túnez, Egipto o Israel (a diferencia de lo ocurrido en Reino Unido). Son protestas no violentas pero sin embargo poderosas. Europa y su juventud se unen en la indignación por una política que salva a los bancos con sumas que desafían a la imaginación, pero que derrocha el futuro de los jóvenes. Si la esperanza de la juventud europea cae víctima de la crisis del euro, ¿qué futuro le aguarda a una Europa cada vez más envejecida?
Casi diariamente, los medios de comunicación exhiben nuevas muestras de que entramos en una era de desorden plagado de riesgos: la sociedad del riesgo mundial. Desde hace largo tiempo, los titulares son intercambiables: "Inseguridad por el futuro de la economía mundial"; "Los planes de rescate peligran: Merkel se reúne con Sarkozy para tratar de la crisis"; "Las agencias de calificación de riesgos degradan la deuda de EE UU"... ¿Señala la crisis global financiera la caída del viejo centro? Precisamente la China autoritaria se presenta como el apóstol de la moral financiera y sermonea al Estados Unidos democrático y también a los europeos.
Sea como sea, la crisis financiera ha conseguido una cosa: todos (también los expertos y políticos) han sido catapultados a un mundo que ya nadie entiende. En lo que respecta a las reacciones políticas, cabe confrontar dos escenarios extremos: uno, hegeliano, en el que junto a las amenazas que genera el capitalismo del riesgo mundial, la "argucia de la razón" contiene una oportunidad histórica. Este es el imperativo cosmopolita: cooperar o fracasar, ganar juntos o perder individualmente.
Al mismo tiempo, el carácter incontrolado de los riesgos financieros (como también del cambio climático y de los movimientos migratorios) introduce un escenario propio de Carl Schmitt, un juego de estrategia de poder que, junto a la normalización del estado de excepción planetario, abre puertas y ventanas a la política étnica y nacionalista. En ninguno de ambos modelos es posible sustraerse a la comunidad de destino, porque el capitalismo del riesgo mundial, hagamos lo que hagamos, funda novedosas escisiones y ataduras existenciales que trascienden las fronteras nacionales, étnicas, religiosas y políticas.
¿Cómo puede afirmarse Europa en medio de todo esto? Paradójicamente, el éxito de la Unión Europea es, al mismo tiempo, uno de sus mayores impedimentos. Muchas de sus conquistas se dan tan por descontado que quizá solo repararíamos en ellas cuando dejaran de existir. Imaginemos la reintroducción de controles fronterizos, que los alimentos no estuvieran sujetos en todas partes a normativas de calidad fiables, que no hubiera estándares idénticos para la libertad de prensa (que hoy conculca Hungría, atrayendo con eso un escrutinio estricto); que hubiera que cambiar moneda y estar atento a la fluctuación de las divisas no solo para viajar a Budapest, Copenhague o Praga, sino también a París, Madrid y Roma. La "patria europea" se ha convertido para nosotros en una segundad naturaleza, lo que precisamente podría acabar siendo la razón para ponerla en juego alegremente.
Con la crisis del euro y los planes de rescate de los países del sur de Europa se ha desarrollado una lógica schmittiana del conflicto entre países acreedores y países deudores. En el interior de Europa, los países acreedores tratan de imponer sus programas de ahorro. Los deudores, por el contrario, se ven sometidos al dictado de la UE, que vulnera su independencia nacional y zahiere su dignidad. Ambas cosas avivan el odio hacia Europa en Europa, porque todos ven en ella una acumulación de demasías.
A esto se añade lo que se percibe como amenazas desde el exterior. Los críticos del islam, que supuestamente abusa de los valores europeos de la libertad, han logrado conjugar xenofobia e Ilustración. De repente, es posible oponerse, incluso en nombre de la Ilustración, a la entrada de determinados emigrantes.
Muchos ven llegado el fin de la política cuando piensan en ella. ¡Cómo se puede ser tan ciego! En lo pequeño y en lo grande, en el plano europeo, pero en particular en el plano de la política mundial, se enfrentan Hegel, con su fe en la razón, y Schmitt, el que ve enemigos por todas partes.
En lo que se refiere a la eterna crisis llamada Europa, en esta confrontación por el modelo de futuro hay que plantear las siguientes preguntas: ¿en qué medida es realmente solidaria y trasciende las fronteras nacionales la rebelión de la juventud indignada? ¿Hasta qué punto lleva el sentimiento de haberse quedado descolgado a una experiencia generacional europea y a nuevas iniciativas en materia de política europea? ¿Cuál es la postura de los trabajadores, de los sindicatos, del centro de la sociedad Europea? ¿Qué gran partido, por ejemplo en Alemania, reunirá el valor de explicar a los ciudadanos el valor que tiene para ellos la patria europea?
Lo que fue la política oriental de los años setenta debería ser, dada la crisis financiera, la política europea de hoy, basada en una unificación capaz de trascender fronteras. ¿Por qué la unificación alemana, que acarreó costes inacabables, era algo incuestionable, mientras que causa indignación la integración económico-política de los países deudores como Portugal y Grecia? No se trata solo de quién paga la cuenta. Se trata más bien de repensar y dar nueva forma al futuro de Europa y su posición en el mundo. La introducción de los eurobonos no representaría una traición a los intereses alemanes. El camino de la unión solidaria es el que corresponde -como ocurrió cuando se reconoció la frontera oriental de Alemania a lo largo de la línea de los ríos Oder y Niesse- a los intereses europeos y alemanes bien entendidos.
© 2011, Ulrich Beck.
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