domingo, 30 de dezembro de 2012

Direitos Humanos na Argentina

Folha de São Paulo 30 de dezembro de 2012



Integrante de comissão que apurou nos anos 80 os crimes da ditadura Argentina, jornalista Magdalena Guiñazú critica os Kirchner pelo que considera uso político das investigações



SYLVIA COLOMBO



DE BUENOS AIRES



Quando a Comissão Nacional Sobre a Desaparição de Pessoas (Conadep) terminou os seus trabalhos na Argentina, em setembro de 1984, seus membros se dividiram em dois carros.



Num deles, o líder do grupo, o escritor Ernesto Sábato ("O Túnel"), levava o relatório sobre os desaparecidos no regime militar (1976-1983). No outro, iam os outros integrantes, com cópia idêntica do mesmo relatório.



"Tínhamos medo de um atentado ou de um ataque do Exército. Por isso levamos duas cópias, em veículos separados. A ditadura terminara, mas ainda nos sentíamos ameaçados pelos militares", conta a jornalista Magdalena Ruiz Guiñazú, uma das dez integrantes da histórica comissão que agora celebra os 30 anos de sua formação.



O temido ataque não veio, e o grupo conseguiu entregar nas mãos do então presidente do país, Raúl Alfonsín (1927-2009), a lista de 8.961 desaparecidos e dos 380 centros clandestinos de repressão instalados em todo o território argentino.



O trabalho da Conadep colocou a Argentina na vanguarda da luta pelos direitos humanos. Em tempo recorde, logo depois do fim da ditadura, a comissão fez o primeiro levantamento de vítimas dos crimes de Estado no período.



O informe seria usado como peça fundamental para o julgamento das juntas militares, em 1985, que condenou os principais responsáveis pela violência dos anos 70.



"Era um tema muito urgente, por isso se fez muito rápido. A sociedade exigia respostas, e Alfonsín foi exemplar na rápida formação da comissão e nos julgamentos."



Ao fazer o balanço das últimas três décadas de democracia e de luta pelos direitos humanos na Argentina, porém, Guiñazú não se mostra completamente otimista.



"Houve muito vaivém motivado por questões políticas. Não se respeita mais a ideia de que um crime é um crime e que precisa ser julgado."



Logo após o trabalho da Conadep e o julgamento das juntas militares, o próprio Alfonsín deu um passo atrás, cedendo a pressões, ainda nos anos 80. Determinou então que militares que cumpriam ordens não poderiam ser julgados. Foram as leis de Obediência Devida e Ponto Final, que voltaram a pôr em liberdade muitos condenados.



"Nós, da Conadep, fomos contra. Assinamos um documento de repúdio e nos afastamos de Alfonsín. Mas o que veio depois, infelizmente, foi pior", conta Guiñazú.



Nos anos 90, o então presidente Carlos Menem promoveu ampla anistia, libertando tanto pessoas como o ditador Jorge Videla, responsável pelo período mais cruel da repressão, como o líder dos guerrilheiros montoneros Mario Firmenich, autor de uma série de crimes políticos, como o assassinato do general Pedro Aramburu, ex-presidente argentino, em 1970.



Firmenich, sobre quem recaem suspeitas também de ter entregado companheiros montoneros e feito um acordo com o almirante Emilio Massera -integrante da junta militar que tomou o poder na Argentina em 1976-, hoje está exilado na Espanha.



"Menem não queria problemas com ninguém, mas a anistia foi um retrocesso depois de tantas condenações exemplares."



CRÍTICA AOS KIRCHNER



Hoje, Guiñazú é crítica da política de direitos humanos dos Kirchner. Apesar de terem promovido um amplo processo de julgamentos desde 2003, ela considera que Néstor e Cristina tentaram se apoderar da luta pela verdade. "É como se tudo tivesse começado com eles, como se os que lutam pelo esclarecimento dos crimes dos anos 70 não existissem", diz.



A gestão Kirchner ignorou as leis de indulto e levou mais de 900 ao banco dos réus.



Algumas condenações são consideradas históricas mesmo por antikirchneristas, como o julgamento dos repressores da Esma (Escola de Mecânica da Marinha) e dos assassinos do escritor Rodolfo Walsh, das duas monjas francesas que faziam trabalho humanitário no país e de Mães da Praça de Maio sequestradas e atiradas no rio da Prata.



"Esses julgamentos são muito positivos. O que está errado é que se aproveitem politicamente deles e excluam do cenário gente que está lutando por Justiça desde aquela época", diz Guiñazú.



Além dos integrantes da Conadep, ela considera injustiçados os juízes que julgaram os militares nos anos 80 e as dissidências das Mães da Praça de Maio, que não estão alinhadas ao governo e por isso não recebem apoio.



Guiñazú também considera hipócrita o comportamento da presidente Cristina Kirchner com relação a seu passado. Ela e o marido, Néstor, morto em 2010, declararam que haviam sido militantes nos anos 70, mas não existem provas de sua participação na resistência e é sabido que, quando a violência aumentou na Argentina, ambos se refugiaram na Patagônia.



"Não era obrigatório que participassem. Mas então que não mintam agora dizendo que estavam lá. Não estavam. Nós nunca os vimos", diz.



E acrescenta que as investigações dos crimes obedecem a critérios políticos e ignoram a violência cometida por parte dos guerrilheiros.



Para ela, a instalação da Comissão da Verdade, no Brasil, é muito importante para o continente. "Gostaria que o exemplo argentino fosse mais comum na América Latina. O que teve de singular, além de ser no calor do momento, é que foi um processo inteiramente argentino. Promotores, juízes, entidades, comissão, todos éramos argentinos. Nem Nuremberg foi assim."



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