domingo, 11 de outubro de 2009

Bolívia e o constitucionalismo latino-americano

Folha de São Paulo, domingo, 11 de outubro de 2009



Morales é favorito em disputa que focará Congresso
Boliviano tentará ficar mais 5 anos no poder; com oposição enfraquecida, governo busca controle do Parlamento para implementar Carta


Pouco mais de um ano após enfrentar a oposição regional em uma feroz queda de braço na Bolívia, Evo Morales entrou na campanha para obter sua reeleição em 6 de dezembro como franco favorito, a ponto de transformar a maioria qualificada no Congresso no principal prêmio em disputa.
As eleições para presidente e parlamentares estão previstas na nova Constituição, aprovada no ano passado. É por causa da Carta que o controle do Parlamento se torna central.
O MAS (Movimento ao Socialismo) de Morales quer tirar da oposição o poder de bloqueio -que detinha por controlar o Senado- e, assim, comandar as votações de legislações secundárias que darão contorno à nova Constituição.
Resultado da negociação para passar o texto no Congresso, após a turbulenta Constituinte, vários pontos ficaram em aberto -entre eles, os complexos temas indígenas, aponta o antropólogo Salvador Shavelzon, que escreve sua tese de doutorado sobre política boliviana no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Segundo o levantamento mais recente, o presidente boliviano tem 30 pontos de vantagem na disputa que pode lhe dar mais cinco anos no poder -a Carta instituiu a reeleição, e Morales poderia concorrer de novo em 2014, mas ele jurou à oposição não fazê-lo.
Um dos motivos do conforto é que as poderosas lideranças regionais -as do rico departamento de Santa Cruz à frente-, que há um ano conclamavam à rebelião contra La Paz, não se uniram em torno de um candidato capaz de oferecer um discurso nacional. "As oposições estão mais preocupadas em recuperar espaços regionais de poder", diz Shavelzon.
A meta dos opositores é barrar a ofensiva governista em suas regiões -o governo já disse que centrará fogo onde tem menor adesão- e juntar forças para a eleição para governadores, que ocorrerá em abril.
A situação da oposição também reflete o desgaste provocado pela jornada de protestos de 2008, segundo o cientista boliviano Roberto Laserna. Por semanas, manifestantes fecharam estradas, promoveram locautes, tomaram o controle de válvulas de gás e repartições em ações contra a Carta.
Professor das universidades de San Simón, no departamento de Cochabamba (centro), e Princeton, nos EUA, Laserna também atribuiu o recuo de líderes cruzenhos ao efeito de um nebuloso episódio: a morte, pela polícia, de três estrangeiros acusados de tramar o assassinato de Morales, com o suposto apoio de parte da elite de Santa Cruz, que buscaria a independência da região. "Não houve investigação conclusiva até agora e é tudo muito nebuloso. Mas o efeito midiático foi feito, além da intimidação."

Quase calmaria
A principal chapa da oposição só tem apelo com o voto anti-Morales convicto: o candidato a presidente da oposição é o militar reformado Manfred Reyes Villa, que era governador de Cochabamba até receber "não" do eleitorado em referendo em 2009. Seu companheiro de chapa é Leopoldo Fernández, ex-governador do departamento de Pando, fronteira com o Acre.
Fernández é um dos símbolos de que as feridas da crise política seguem latentes.
Ele está preso por suposta coautoria intelectual do massacre que matou ao menos 11 pessoas em Pando, a maioria pró-Morales, em setembro de 2008, no auge da crise política. O ex-governador ainda não foi julgado e diz que fará campanha da cadeia.
"Serão eleições quase tranquilas. Mas a questão é o tamanho do quase", diz Laserna.
O sistema de registro eleitoral foi mudado -uma exigência da oposição-, o que deve ajudar no espírito de calmaria. Mas o professor lembra que setores ligados ao governo prometem impedir a campanha da oposição em regiões do país.

sábado, 10 de outubro de 2009

Fishlow e o papel do Brasil

Folha de S~çao Paulo 10 de outubro de 2009

Papel em crise é mostra de novo Brasil, diz professor

A atitude do Brasil de acolher o presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, na embaixada do país em Tegucigalpa faz parte de uma mudança histórica na maneira como o Brasil constrói suas relações diplomáticas com os demais países da América Latina. Esta é a avaliação do professor emérito da Universidade Columbia e da Universidade Berkeley e colunista da Folha Albert Fishlow.
Em seminário promovido pelo Center for Hemispheric Policy em Miami, na manhã de ontem, Fishlow disse que a estratégia do Brasil é tentar exercer um papel central na América Latina, comparável ao dos EUA na América do Norte.
"Estamos caminhando para um mundo multilateral e, se o Brasil é uma estrela em ascensão, os EUA são uma estrela cadente em termos de participação no comércio mundial e inovação", disse. Confira abaixo trechos de entrevista concedida à Folha após o seminário:




FOLHA - O senhor disse que as relações com os EUA são as melhores nos últimos 20 anos, mas até agora os EUA só enviaram ao Brasil o general Jim Jones, assessor de Segurança Nacional...
FISHLOW - Você tem outra realidade que está acontecendo no mundo: a importância do Irã, a Guerra do Afeganistão. O governo americano nem tem embaixador novo no Brasil [a oposição vem bloqueando a confirmação do nomeado, Thomas Shannon]. Como consequência não se poderia dizer nem que as novas relações dos anos Obama já começaram, de fato estamos esperando o começo.

FOLHA - O sr. tratou da estratégia do Brasil de se firmar como centro na América Latina. Como isso se reflete no caso da crise em Honduras?
FISHLOW - Para o Brasil representa algo importante. O fato é que as relações diplomáticas do Brasil foram construídas de modo a separar o país de outros vizinhos na América Latina e ter relacionamentos em português e não em espanhol. Só durante os últimos 20 anos houve uma tentativa de integração com o Mercosul. Há uma tentativa clara em relação à Venezuela, com a possibilidade de admissão no Mercosul. E o Brasil ainda não decidiu como tratar do assunto. O país tem relações ativas na ONU [Organização das Nações Unidas], na OMC [Organização Mundial do Comércio], em organizações internacionais. Há uma tentativa de definir melhor as relações políticas que devem existir como base na nova política do século 21.

FOLHA - No caso de Zelaya são novas relações com Honduras ou com a Venezuela?
FISHLOW - [Hugo] Chávez [presidente da Venezuela] tem muito a ver com a situação de Honduras. Ele escolheu a embaixada brasileira para Zelaya e está sempre tentando restabelecer Zelaya para construir uma base maior para a Venezuela na região.

FOLHA - Mas historicamente o Brasil tem tradição de não interferir em conflitos de outros países...
FISHLOW - É uma consequência inegável do crescimento, do maior patamar de crescimento econômico. Além disso, Lula e o Itamaraty estão tentando restabelecer o Brasil como um centro. [O ex-presidente Fernando Henrique] Cardoso foi criticado por todas as viagens para o exterior, mas Lula viaja muito mais. É uma consequência dessa evolução, mas [o país] ainda não tem estabilidade na definição do seu papel.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A economia política

Valor Economico
A defesa, o ataque e a economia política

José Luís Fiori
07/10/2009




"Entre 1650 e 1950, a Inglaterra participou de 110 guerras aproximadamente, dentro e fora da Europa, ou seja, em média, uma à cada três anos E entre 1783 e 1991, os Estados Unidos participaram de cerca de 80 guerras, dentro e fora da América, ou seja, em média, também, uma a cada três anos." J.L.F. , Valor, 09/09/2009

O economista inglês, William Petty (1623-1687), escreveu dois pequenos textos que revolucionaram o pensamento econômico do século XVII, e que estão na origem da economia política clássica: o "Tratado sobre Impostos e Contribuições", publicado em 1662, e a "Aritmética Política", publicado em 1690, depois da sua morte. Nesses dois textos, Petty desenvolve uma teoria econômica que dá importância central ao papel do Estado e das guerras no funcionamento das sociedades. A teoria de Petty parte da definição dos principais "encargos públicos", e depois propõe uma estratégia econômica de multiplicação dos recursos necessários para o cumprimento dessas funções. Para Petty, a primeira obrigação do Estado é a "defesa por terra e mar, da sua paz interna e externa, como também a vindicação honrosa das ofensas de outros estados" (Tratado dos Impostos e Contribuições, Abril Cultural, p.15, 1983).

, e a forma de obter os recursos indispensáveis é através dos tributos. Mas segundo Petty, o aumento da tributação depende do aumento da produtividade e do "excedente econômico" nacional.

No momento em que Petty publicou sua obra, a Inglaterra era uma potência de segunda ordem, e se sentia ameaçada pela França e pela Holanda. Petty estava voltando de uma breve exílio em Paris e Amsterdam - onde foi secretário particular de Thomas Hobbes - e tinha uma grande preocupação que se transformou no ponto de partida de toda a sua teoria: a necessidade de defender o território inglês, aumentando sua produtividade e o seu produto nacional. Por isto, sua economia política introduz, pela primeira vez, o conceito de "excedente econômico" como principal instrumento do poder do Estado, e rompe definitivamente com a tradição do pensamento mercantilista.

William Petty foi um grande economista político, mas se pode dizer que foi também um profeta. Porque depois da sua morte, em 1687, seu país deu seus primeiros passos para se transformar na principal potência do sistema mundial, até meados do século XX. Apesar do seu tamanho, a pequena ilha começou a expandir o seu poder, o seu território e a sua riqueza de forma contínua, durante os três séculos seguintes em que construiu o Império Britânico e consolidou a supremacia mundial do capitalismo inglês. Mas, apesar de sua antecipação profética, William Petty não previu duas coisas fundamentais: 1) a transformação da Inglaterra numa potência agressiva; 2) e a transformação da agressão e do "ataque" num mecanismo de acumulação de riqueza.

A preocupação política e a teoria de Petty visavam aumentar o poder defensivo da Inglaterra. E, do ponto de vista estritamente militar, o objetivo da "defesa" será sempre a conservação de um determinado território. Mas é impossível acreditar que todas as 110 guerras que a Inglaterra fez, entre 1650 e 1950, tenham sido "guerras defensivas", inclusive porque a maioria delas foi travada fora do território europeu. Ou seja, depois da morte de Petty, a a Inglaterra acabou se transformando numa potência agressiva e conquistadora.

E o mesmo se pode dizer da sua colônia norte-americana, que seguiu os passos da Inglaterra, até se transformar na maior potência do sistema mundial, na segunda metade do século XX. O território norte-americano nunca foi atacado, mas apesar disso, as "Treze Colônias" expandiram seu território de forma contínua, desde o momento da sua independência. Nos dois casos, portanto, a proposta defensiva de Petty, foi substituída por uma estratégia agressiva de acumulação de poder. Mas além disso, Petty não previu que o "ataque" pudesse se transformar numa forma de acumular a riqueza de maneira mais rápida do que através do aumento da produtividade. A expansão da Inglaterra começou muito antes da sua "revolução industrial", e foi financiada pelo aumento dos tributos e da sua "dívida pública", que cresceu de forma exponencial durante o século XVIII, passando de 17 milhões de libras esterlinas, em 1690, para 700 milhões de libras, em 1800. Nessa trajetória ascendente, a expansão inglesa acabou se auto-financiando, graças do aumento da sua tributação nacional e extra-territorial, e do surpreendente aumento da "credibilidade" da sua "dívida pública", que cresceu apesar das guerras e do desequilíbrio fiscal de curto prazo. Da mesma forma como aconteceu nos Estados Unidos, onde a capacidade de tributação e de endividamento do estado também cresceu de mãos dadas e de forma permanente.

Nos dois casos, portanto, foi o "ataque" e não a "defesa", que permitiu aumentar permanentemente o endividamento publico dos dois estados, junto com a acumulação rápida e exponencial da riqueza privada, fora dos circuitos produtivos e mercantis. A teoria de Petty não previu essa "mágica anglo-saxônica", apesar de que o seu segredo já tivesse sido revelado por Thomas Hobbes - o grande amigo e mentor intelectual de William Petty - no seu Leviatã, publicado em 1652: "Os que se contentarem em manter-se tranquilamente dentro de modestos limites e não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão incapazes de subsistir durante muito tempo, por se limitarem apenas a uma atitude de defesa". (T. Hobbes, Leviatã, p. 72, 1983).

Agora bem: essa "mágica" estará ao alcance de todos os estados e economias capitalistas? Sim e não, a um só tempo, porque nesse jogo, se todos ganhassem ninguém ganharia, e os que já ganharam estreitam o caminho dos demais, reproduzindo dinamicamente, as condições da desigualdade. Além disto, é possível conceber formas de acumulação de poder e riqueza que não passem pelos ataques territoriais, Mas com certeza, este não foi o caminho seguido pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, as duas grandes potências ganhadoras que conseguiram transformar a sua "dívida pública" num instrumento do seu poder, e ao mesmo tempo, num mecanismo de acumulação da sua riqueza nacional

Crise mundial: as garantias de direitos sociais e o capitalismo

Texto sobre a Crise do capitalismo do professor Jorge Luiz Souto Maior da USP.
Publicado originalmente no Le monde diplomatique no endereço:
http://diplo.uol.com.br/2009-05,a2844


Crise mundial: as garantias de direitos sociais e o capitalismo
Nos últimos meses, grandes custos sociais arcados pelos trabalhadores, alvos de demissões em massa e da flexibilização dos direitos trabalhistas, são justificados para sanar a perda de lucro e do poder concorrencial de empresas. É justo a sociedade pagar a conta para salvar o sistema?

Jorge Luiz Souto Maior


Muito se tem dito sobre a crise econômica e suas possíveis repercussões na realidade social brasileira. À esta altura, uma abordagem crítica mais contundente é necessária por causa da constatação de que muitos se valem da crise como mero argumento para continuar jogando o jogo da vantagem a qualquer custo, desvinculando-se de qualquer projeto de sociedade mais democrática.

Para iniciar essa análise, devemos lembrar que a crise é nossa velha conhecida. Ela esteve presente em quase todos os momentos de nossa história. Em termos de relações de trabalho, o argumento da “crise econômica”, como forma de justificar uma reiterada reivindicação de redução das garantias jurídicas de natureza social (direitos trabalhistas e previdenciários), acompanha o debate trabalhista desde sempre. Se alguém disser que “agora, no entanto, é pra valer”, deve assumir que antes era tudo uma grande mentira... E, se assim for dito, que força moral se terá para fazer acreditar no argumento da crise atual?

Não se pode olvidar também que, mesmo quando o Brasil vivenciou, de 1964 a 1973, o que se convencionou chamar de “milagre brasileiro”, o crescimento econômico foi obtido às custas do empobrecimento da maioria da população, já que uma de suas características era a concentração de renda. Em 1970, os 50% mais pobres da população ficavam com apenas 13,1% da renda total e os mais ricos (1% da população) embolsavam 17,8%” [1].

No começo da presente crise pouco se falou na relevância da diminuição do valor do trabalho. A partir de outubro de 2008, iniciou-se um movimento organizado para requerer uma flexibilização das leis trabalhistas do país como forma de combater a crise financeira. Empresas começaram a anunciar dispensas coletivas de trabalhadores, criando um clima de pânico para, em seguida, pressionar sindicatos a cederem quanto às suas reivindicações e buscar junto ao governo a concessão de benefícios fiscais.
Entre janeiro de 2008 e janeiro de 2009, as vendas do varejo nacional acumularam alta de 8,7%.

Essa corrida que passa por cima dos direitos trabalhistas é totalmente injustificável por, pelo menos, três motivos.

Primeiro, porque o custo do trabalho não está na origem da crise econômica como atestam as últimas análises. Nada autoriza a dizer que a sua redução seja fator determinante para que a crise seja suplantada.

Segundo, porque já se pode verificar o quanto se apresentou precipitada e oportunista tal atitude. Em fevereiro de 2009, um aumento do nível de emprego formal foi registrado sobretudo nos setores de serviços, construção civil, agricultura e administração pública [2]. A própria Companhia Vale do Rio Doce iniciou esse movimento irresponsável, quando anunciou dispensas coletivas de trabalhadores. No entanto, no quarto trimestre de 2008 obteve um lucro líquido de R$10,449 bilhões, que representa um aumento de 136,8% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando o lucro líquido foi de R$ 4,411 bilhões. A Bovespa, em março, acusou alta de 11% [3]. Em maio, já apresenta alta acumulada de 36,87% desde o início de 2009 [4]. A venda de automóveis, em razão da redução do IPI, sofreu um aumento de 11% [5]. As vendas do comércio varejista subiram 1,4% em janeiro com relação a dezembro do ano passado, segundo noticiou o IBGE. Entre janeiro de 2008 e janeiro de 2009, as vendas do varejo nacional acumularam alta de 8,7%. A Embraer dispensou 4,2 mil empregados. Ela é investigada pelo Ministério do Trabalho acusada de ter fornecido bônus de R$50 milhões a 12 diretores e de ter efetuado a contratação de 200 empregados terceirizados. Os fatos são negados pela empresa. O incontestável é que ela encerrou o primeiro trimestre de 2009 com lucro líquido de R$ 38,3 milhões e receita líquida de R$ 2,667 bilhões [6].
A forma oportunista como algumas empresas se posicionam diante da crise atual, desconsiderando o interesse de toda a comunidade, deve ser questionada

Em terceiro lugar, mesmo que a crise fosse o que se apresentava, é grave a ausência de uma compreensão histórica revelada pelo desprezo aos direitos trabalhistas. Ora, os argumentos de dificuldade econômica das empresas foram uma constante no período de formação da Revolução Industrial e se reproduziram por mais de cem anos até que, em 1914, sem qualquer possibilidade concreta de elaboração de um novo arranjo social, o mundo capitalista entrou em colapso.

À época, eram feitas alegações de que as empresas seriam obrigadas a fechar se fossem obrigadas a dar aumento de salário ou estabelecer melhores condições aos trabalhadores e de que seria melhor um trabalho qualquer a nenhum. Dizia-se ainda que seria preciso primeiro propiciar o sucesso econômico das empresas de forma sólida para somente depois pensar em uma possível e progressiva distribuição da riqueza produzida e que a livre iniciativa não poderia ser obstada pela interferência do Estado. Acreditava-se também que era mais saudável para as crianças de cinco a dez anos se dedicarem à disciplina do trabalho durante oito ou mais horas por dia do que ficarem nas ruas desocupadas.

Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1919, com a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconheceu-se que “havendo condições de trabalho que impliquem para um grande número de pessoas a injustiça, a miséria e privações, gera um tal descontentamento que a paz e harmonia universal são postas em perigo...” [7]. A organização ainda enfatiza que “uma paz universal e durável só pode ser fundada sobre a base da justiça social”.

A forma oportunista como algumas empresas se posicionam diante da crise atual, desconsiderando o interesse de toda a comunidade, acuando sindicatos a fim de auferir a redução de direitos trabalhistas e pressionando o Estado para recebimento de incentivos fiscais, deve ser questionada, porque abala consideravelmente a crença na formação de uma sociedade capitalista desenvolvida a partir de um pacto de solidariedade.

Ora, muitas empresas “modernas” falam de sua responsabilidade social, do seu dever de cuidar do meio ambiente, de ajudar pobres e necessitados, mas quando se veem diante de uma possível redução de seus lucros, não têm o menor escrúpulo de defender abertamente o seu direito de conduzir trabalhadores ao desemprego sem lhes apresentar uma justifica plausível.

Num contexto internacional, cumpre denunciar a postura de algumas multinacionais que pregam aos países “periféricos” um código de conduta, baseado na precarização das condições de trabalho para favorecer a manutenção dos ganhos que direcionam para o financiamento dos custos sociais em seus países de origem. Esse mecanismo é fator decisivo para eliminar qualquer espírito de solidariedade proletária em nível internacional.
O debate deve extrapolar o conflito entre trabalhadores e empresa e atingir o espectro mais amplo do arranjo socioeconômico.

É hora de tirar as máscaras, de se apresentarem os fatos como eles são, pois, do contrário, continuaremos sendo ludibriados por debates propositalmente pautados fora da discussão necessária, que nos leva à seguinte questão: O capitalismo tem jeito? Se a crise é do modelo capitalista não se pode deixá-lo fora da discussão.

O capitalismo se baseia na concorrência. Se o primeiro é desregrado, consequentemente, o segundo não encontra limites. A obtenção de lucro impulsiona a ação na busca de um lucro sempre maior. Os investimentos especulativos, por trazerem lucros fáceis, são naturalmente insaciáveis.

Em um mundo marcado pelo avanço tecnológico, as repercussões especulativas e os lucros pela produção se concretizam muito rapidamente. Não há tempo para reflexão e, até mesmo, para elaborar projetos a longo prazo. Assim, os riscos são potencializados e a sociedade tende ao colapso sobretudo pela perda de valores éticos e morais, afinal, não é só de sucesso econômico que se move a humanidade. É conveniente registrar que só a satisfação espiritual não basta, pois sem justiça social não há sociedade democrática.

Estas são reflexões necessárias para o presente momento. Não é mais possível apenas tentar salvar os ganhos dos trabalhadores diante das investidas de alguns segmentos empresariais. O debate deve extrapolar o conflito entre trabalhadores e empresa e atingir o espectro mais amplo do arranjo socioeconômico. Neste prisma, se os preceitos do Direito Social são entendidos como empecilhos ao desenvolvimento econômico por gerarem um custo que obsta a necessária inserção na concorrência internacional, a questão não se resolve simplesmente acatando a redução das garantias sociais.

Diante de uma constatação dessa ordem, então, será preciso reconhecer a inutilidade do Direito Social para a concretização da tarefa a que se propôs realizar, isto é, a de humanizar o capitalismo e de permitir que se produza justiça social dentro desse modelo de sociedade. Em seguida, será necessário assumir a inevitabilidade do caráter autodestrutivo do capitalismo, inviável como projeto de sociedade, uma vez que a desregulação pura e simples do mercado já deu mostras de ser incapaz de desenvolver a sociedade em bases sustentáveis. A prova disso é a própria crise econômica, realidade já vivenciada em outros países.

Duas são as alternativas que se apresentam para o momento e que devem ser tomadas com urgência:

a) ou fazer valer de forma eficaz, irredutível e inderrogável os direitos sociais, preservando a dignidade humana e, ao mesmo tempo, mantendo a esperança da efetivação de um capitalismo socialmente responsável. Isso exige uma série de medidas:

- Os trabalhadores não devem pagar a conta em tempos de crise;

- Uma “ética nos negócios” deve ser implantada, baseada no respeito à dignidade da pessoa humana, na democratização da empresa (permitindo co-gestão por parte dos trabalhadores, além de participação popular e institucional) e em uma distribuição real de lucros e na formulação de projetos a longo prazo;

- Não aceitação da terceirização de trabalhadores, que transforma pessoas em coisas de comércio;

- Não transformar homens em Pessoas Jurídicas para se servir de seus serviços pessoais de forma não-eventual;

- Não se valer de cooperativas, de contratos de estágio e de outras formas de trabalho com o objetivo de fraudar a aplicação da legislação trabalhista;

- Não impulsionar um sistema cruel de rotatividade da mão-de-obra;

- Não assediar moralmente os trabalhadores sobretudo mediante a ameaça do desemprego;

- Não utilizar mecanismos de subcontratação, transferindo para empresas descapitalizadas parte de sua produção, pois isso abala a efetividade dos direitos dos trabalhadores;

- Não institucionalizar um sistema de banco de horas com o único propósito de prorrogar a obrigação quanto ao efetivo pago às horas extras com o adicional constitucionalmente previsto;

- Não deixar de cumprir obrigações legalmente previstas, com a intenção de forjar acordos perante a Justiça do Trabalho com quitação de todos os direitos. Neste item, cabe mencionar o registro da CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social) do trabalhador, a dinâmica de horas extras e o seu pagamento, a preocupação com o desenvolvimento sustentável etc

- Nesta primeira alternativa, que considera a viabilidade do capitalismo, a solução dos problemas da crise não se resume à cômoda aceitação da intervenção do Estado na lógica de mercado. É preciso que o sentido ético se insira na ordem produtiva. Por exemplo, não servem as iniciativas de incentivo à produção ou à construção civil, se os produtos e obras se realizarem por intermédio de mecanismos de supressão dos direitos dos trabalhadores. Além de isso significar um desrespeito à ordem jurídica, representa também uma forma de agressão ao ser humano, quebrando toda possibilidade de pacto social. Para implementação desse projeto, já inscrito na Constituição brasileira, exercem papel decisivo a parcela consciente do empresariado nacional, além do Estado e do mercado consumidor por meio de uma atitude à base de sanções e prêmios.

b) ou iniciar a elaboração de um projeto de outro modelo de sociedade a partir dos postulados socialistas de divisão igualitária dos bens de produção e da riqueza auferida. Afinal, se dentro da lógica capitalista não for viável concretizar os preceitos supra, relativos aos direitos humanos inderrogáveis e previstos em declarações, tratados internacionais e em nossa própria Constituição, por que continuar seguindo esse modelo que reduz as garantias sociais, aprofundando as desigualdades e o retrocesso no nível da condição humana?


[1] Rubens Vaz da Costa, apud, José Jobson de A. Arruda & Nelson Piletti, Toda a História: história geral e história do Brasil, Ed. Ática, 2002, p. 436.

[2] Cf. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u536582.shtml.

[3] Cf. reportagem da Folha de São Paulo, p. B-3, de 24/03/09.

[4] http://eptv.globo.com/economia/economia_interna.aspx?257170

[5] Cf. noticia a rádio CBN: http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/economia/2009/03/13/COM-ALTA-DE-11-VENDA-DE-VEICULOS-PUXA-EXPANSAO-DO-COMERCIO-EM-JANEIRO.htm.

[6] http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2009/04/30/embraer+encerra+trimestre+com+lucro+liquido+menor+de+r+383+mi+5856931.html

[7] Preâmbulo da Constituição da OIT

Os desafios da esquerda

Excelente texto do professor Emir Sader que reproduzo aqui.
Publicado originalmente em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=359


As ilusões da esquerda

Bertold Brecht chamou sempre a atenção sobre a necessidade de tomar o inimigo pelo seu lado mais forte, não subestimá-lo, sob o risco de iludir-nos e preparar-nos para derrotas e não para vitórias. A esquerda - especialmente em tempos ruins para os ideais de esquerda - corre muitos riscos de cair em ilusões fáceis, o melhor caminho para a derrota.

Mecanismos de auto satisfação podem servir de forma imediata para elevar a auto estima de uma esquerda muito golpeada por sucessivas derrotas e retrocessos, mas não substitui uma análise rigorosa das situações concretas, não para nos determos nas denúncias, mas para propormos alternativas de superação das crises pela esquerda.

Uma grande ilusão que grassou amplamente na esquerda nos últimos meses foi a de que a crise capitalista atual levaria ao fim do neoliberalismo -que, para alguns, já terminou – e, até mesmo, do capitalismo. Que, paralelamente, a hegemonia norteamericana do mundo também estaria esgotada, superada, derrotada. Como se, por um passe de mágica, sem que forças antineoliberais e anticapitalistas tivessem construído projetos alternativos e capacidade de mobilização, de tomada de consciência, de organização e de ação, o neoliberalismo e o capitalismo fossem derrotados por suas próprias contradições internas.

Algumas visões, pela transferência mecânica da crise de 1929, chegaram a afirmar que entrávamos em uma era de guerras – sem dizer que outra potência ou grupo de potências as protagonizariam, como no caso anterior, porque as contradições atuais entre as grandes potências e mesmo com algumas emergentes como a China, se resolvem por outras vias que não a guerra, restando estas como guerras imperialistas localizadas, como as do Iraque, do Afeganistão, da Colômbia.

Nada mais equivocado e nada prepara mais o caminho para novos reveses da esquerda do que esse tipo de análise. Nem o neoliberalismo, nem o capitalismo, terminarão, se não são substituídos. Se se esgota o neoliberalismo, por exemplo, e não existe alternativa e força de esquerda para substituí-lo, poderá ser sucedido por outro modelo, organizado e dirigido pelas mesmas forças dominantes de hoje.

As visões que anunciam o fim desses modelos hegemônicos e formas de organização da sociedade e do Estado, sem apontar quem os derrubaria e por que seriam substituídos, estão supondo uma sucessão mecânica de modelos e de formas de sociedade, independentemente da intervenção dos homens. Seria um retrocesso a visões organicistas da história, segundo as quais haveria uma sucessão predeterminada de modos de produção e um finalismo, que conduziria a história numa determinada direção, sem intervenção dos homens, dos Estados, das forças organizadas, defendendo interesses determinados.

Quando aos catastrofismos anunciados se sucede não a superação dos modelos hegemônicos, mas a superação relativa da crise, esses arautos da catástrofe ficam despreparados para dizer qualquer coisa, a não ser anunciar que “o pior está por vir”. Depois de ter tomado a interpretação de Lênin sobre o imperialismo como “a fase superior” do capitalismo, como sua fase última – e não como sua fase superior -, o movimento comunista internacional, para compensar o isolamento e a fraqueza da URSS nos anos 1930 e 40, com o auge do fascismo, passou a falar de “segunda etapa da fase final do capitalismo”, e assim sucessivamente.

Os catastrofismos sempre fracassaram, se revelaram inócuos depois do impacto que suas previsões supostamente fundadas na realidade, provocaram. O mais tradicional deles, o malthusianismo, se revelou falso, porque se produz alimentos mais do que suficientes – praticamente o dobro – do que a humanidade requer, só que pessimamente distribuídos. O problema dos catastrofismos – biológicos, econômicos, ecológicos – é que não levam em conta as contra tendências, tomam uma tendência real e a projetam mecânica e linearmente para o futuro. Os chineses já possuem a maior indústria automobilística do mundo, contaminam o meio ambiente, mas isto não leva a uma catástrofe ecológica mundial.

Gramsci comentava as previsões de Trotsky sobre o caráter socialista da revolução em escala mundial, dizendo que se é certo que um dia cada menina se tornaria uma mulher, nem por isso ela deveria ser violentada quando era menina, para apressar esse processo. Os processos históricos são resultado das condições objetivas e da ação – consciente ou não – dos homens sobre essas condições. O mundo não caminha para o socialismo, independentemente dos projetos e das forças que se organizem em função desse projeto, da mesma forma que a humanidade não está condenada a viver sob o capitalismo. A história é um processo aberto, que depende da ação consciente e organizada dos homens e mulheres, como o momento atual o confirma.

Democracia e Autoritarismo em Honduras: o que está em jogo?

por Carlos Federico Domínguez Avila

Em 28 de junho de 2009, os hondurenhos estavam convidados a participar em uma consulta popular não-vinculante que possibilitaria (ou não) a realização de um plebiscito conjunta e simultaneamente com as eleições gerais programadas para 27 de novembro deste ano. Na hipótese de ter massivo apóio popular o plebiscito demandaria reformas constitucionais no governo a ser empossado em janeiro de 2010. É importante ressaltar que, diferentemente do que normalmente aparece na imprensa, o presidente José Manuel Zelaya Rosales (2006-2010) não é – e nunca foi – candidato a um novo período de governo – isto é, a uma eventual reeleição consecutiva, que de fato não existe história política recente do país.

Ao mesmo tempo, é inegável que o Honduras precisa de amplas e profundas reformas constitucionais, inclusive para – seguindo as recomendações do PNUD e seu consagrado relatório sobre A Democracia na América Latina (de 2004) – conseguir uma transformação da democracia eleitoral existente no país em uma democracia de cidadania.

Observe-se que durante todo seu governo o presidente Zelaya – sem ser necessariamente de orientação esquerdista – conquistou evidente apóio popular pelo firme compromisso com a justiça social, com crescimento econômico, com a luta contra a corrupção e o privilegio, e com o projeto democrático. Igualmente foi marcante seu compromisso com a diversificação das opções em política internacional.Lamentavelmente a alternativa popular causou irritação na fechada e obscurantista elite dominante do país.

Foi precisamente para evitar eventuais reformas constitucionais que, na madrugada de 28 de junho, um comando militar invadiu a residência do presidente da República, seqüestrou-o e finalmente expulsou-o do país. Poucas horas depois foi apresentada uma – patética e falsa – carta de renuncia do Zelaya. E eventualmente a oligarquia local, os militares e seus agentes e simpatizantes (inclusive aqueles tradicionalmente presentes no Parlamento e na Corte Suprema) anunciaram candidamente uma “sucessão constitucional.” Na verdade inaugurou-se um regime despótico e usurpador que se sustenta nas armas, na repressão e em uma ultrapassada concepção elitista das relações entre a sociedade e o Estado.

Contudo, e em contraste com golpes palacianos do passado, nesta oportunidade uma parcela significativa, consciente e conseqüente do povo hondurenho, encabeçado pelo denominado Frente Nacional de Resistência contra o Golpe, não aceitou a autoritária, veleidosa e traiçoeira ação golpista. Desde então, milhares de operários, camponeses, mulheres, jovens, moradores, indígenas, afro-descendentes, minorias sociais e docentes, dentre outros setores populares, têm realizado todo tipo de ações pacíficas para remover os usurpadores. Na práxis, eles representam e expressam a noção de soberania popular. Certamentea Resistência e a reserva moral, democrática e cidadã da nação em um momento decisivo da história. Acontece que em Honduras está em jogo não somente a dignidade de todo um povo, como também a natureza profética e libertadora do projeto democrático latino-americano.

Nesse contexto geral, o governo e o povo brasileiro condenaram desde o primeiro momento o golpe. Essencialmente Brasília acredita – junto com (quase) toda a comunidade hemisférica e mundial – que a resolução da crise hondurenha passa necessariamente pela via negociada entre as partes em conflito. Nessa linha, o presidente Lula e o chanceler Celso Amorim concordam com a plataforma política, filosófica e metodológica do denominado “acordo de São José” impulsionado pelo presidente da Costa Rica Oscar Arias Sanchez. Resumidamente o acordo de São José propugna por um pacto político que deverá necessariamente incluir os seguintes aspectos: (i) a restituição do presidente Zelaya para concluir pacificamente seu período de governo, (ii) a realização de eleições livres em 27 de novembro, (iii) a toma de posse de um novo e legítimo governo em janeiro de 2010, e (iv) a concessão de anistia política. Observe-se que o acordo de São José foi aceito imediatamente pelo presidente Zelaya, porém rejeitado pelo grupo golpista – que procura ganhar tempo com táticas dilatórias procurando emplacar, nas eleições de novembro, um novo governo conservador no país.

Daí a altíssima relevância da concessão de apoio, proteção e hospitalidade na sede da representação diplomática brasileira em Tegucigalpa a um presidente legítimo – e indiretamente a um povo em luta direta, democrática e pacífica contra o autoritarismo, a reação e o obscurantismo. “Obrigado Brasil!” diziam recentemente as faixas dos protestos populares em toda a geografia do país centro-americano, em contraste com as mentiras, a repressão e o radicalismo dos usurpadores e seus simpatizantes.

Em síntese, e ainda que possa parecer um tanto maniqueísta, a crise hondurenha deve continuar sendo abordada sob a óptica da histórica contradição entre autoritarismo e democracia – ou entre golpistas e democratas.E, salvo melhor juízo, aqueles que realmente acreditam na vigência do projeto democrático latino-americano não podem deixar de identificar-se com os homens e mulheres que, após 90 dias de luta constante e crescente, continuam firmes na linha de frente contra o autoritarismo e um eventual “dominó reacionário” em nosso continente e no mundo.

Carlos Federico Domínguez Avila é Doutor em História pela Universidade de Brasília. Docente e pesquisador do Mestrado em Ciência Política do UNIEURO (cdominguez_unieuro@yahoo.com.br).

domingo, 4 de outubro de 2009

Honduras e o protagonismo do Brasil

Folha de São Paulo, domingo, 04 de outubro de 2009



Honduras expõe novo status do Brasil
Papel durante crise, conquista olímpica e fortalecimento do G20 são vistos por analistas como sinais de que país está virando potência

Atuação maior na América Latina pode crescer com vácuo de Washington na região, mas há dúvidas sobre peso em relação a EUA

A frase estava em artigo publicado na quarta-feira na versão online da "Time". "Em anos recentes, a usina geradora sul-americana vem sendo reconhecida como o primeiro contrapeso real aos EUA no Hemisfério Ocidental." A maior e mais prestigiosa revista semanal dos EUA se referia ao caso hondurenho, em que a presença do presidente deposto Manuel Zelaya na embaixada do país em Tegucigalpa empurrou o Brasil para um papel de protagonismo na crise, para usar expressão cara ao Itamaraty.
Mas raciocínio semelhante seria repetido nos dias seguintes na imprensa americana, citando também a decisão dos países mais ricos de ampliar o fórum econômico global para acomodar as economias emergentes do G20, na semana retrasada, e a vitória do Rio de Janeiro como cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, anteontem, em Copenhague.
O fato "cristaliza o Brasil como potência emergente", escreveu o diário econômico "Wall Street Journal" de ontem, e "parece coroar a atrasada chegada do país ao palco internacional", ecoou a semanal "Newsweek". "Em resumo, os Jogos Olímpicos vão reafirmar a reputação internacional do governo como líder entre as nações emergentes", concluiu a mensal "Foreign Policy".
Ao longo do dia de sexta-feira, a Folha conversou com analistas da América Latina, do Brasil e da relação do país com o EUA e pediu a opinião deles sobre a proposição inicial desse texto. A conclusão unânime é que, sim, o momento é brasileiro e que nunca na história do país o protagonismo, vá lá, esteve tão claro e evidente. Mas há ressalvas a serem feitas.
Para Peter Hakim, presidente do centro de pensamento centrista Diálogo Interamericano, "o Brasil claramente ganhou influência, prestígio e autoridade, tanto regional como globalmente, e pode vir a ser um contrapeso aos EUA em algumas ocasiões e em algumas questões". Mas os recursos financeiros, o poderio militar e a influência política, combinados às expectativas de outros países, "dão aos EUA um papel muito maior na maior parte das situações", conclui.
A palavra "contrapeso" incomoda também Julia Sweig, especialista nas relações entre os EUA e a América Latina do influente Council on Foreign Relations. É errado pensar nisso, diz ela, "porque sugere que os EUA continuam sendo o peso predominante, o que é verdade só na esfera da América Central, mais México e Colômbia."
Ela acredita que isso vá mudar nos próximos anos. "Arriscaria dizer que, com exceção do México, os EUA vão cada vez mais dividir -e mesmo desejar essa divisão- de domínio, por assim dizer, com o Brasil. Honduras é só o começo." Para Sweig, o Brasil ocupou o vácuo americano. "E ofereceu substância e estilo alternativos em sua diplomacia."
É o que pensa um diplomata brasileiro envolvido em assuntos latino-americanos, que pede para não ser identificado. Para ele, a ação mais pró-ativa do Brasil decorre antes da redução do papel geopolítico dos EUA na região, uma vez que as maiores preocupações de Washington em termos de política externa não se encontram atualmente nas Américas. Essa limitação, diz, abre possibilidades de ação diplomática para o Brasil, como no caso do Haiti e, agora, Honduras.
Pode ser, afirma Mark Weisbrot, codiretor do instituto progressista Center for Economic and Policy Research. "De fato, o Brasil tem uma política externa na maior parte independente dos EUA, mais do que a da Europa, por exemplo. Mas é fato também que o Brasil tem sido muito tímido em relação a Honduras, procurando evitar enfrentamento com Washington enquanto a gestão de Barack Obama permite que o regime golpista viole os direitos internacionais da embaixada brasileira e os direitos humanos dos hondurenhos."
Se quisessem, diz Weisbrot, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus ministros poderiam ser mais agressivos e brecar Washington. Como? "Simplesmente falando mais duro e angariando o apoio de outros países da América do Sul -ou seja, exercendo liderança."
Um colega progressista de Weisbrot, Larry Birns, diretor do Council on Hemispheric Affairs, discorda em parte. Para ele, o Brasil do começo do século 21 é o que foram os EUA no começo do século 20.
"Assim como os EUA entraram no século passado relativamente intocados pelas dinâmicas das guerras europeias, o Brasil entra neste século não atingido pelas marcas pesadas que mancham os EUA hoje, depois de guerras impopulares como o Afeganistão e o Iraque." Para Birns, "o Brasil é a celebridade, o novo garoto do pedaço".