domingo, 28 de setembro de 2008
A análise da crise econômica americana
O "Caderno Mais" da "Folha de São Paulo" de 28 de setembro de 2008 traz a matéria do sociológo alemão Robert Kurz sobre a crise econômica americana. Reflitamos!A superideologiaDinheiro queimadoColapso aponta para o fim dos EUA como potência mundial e o enfraquecimento do dólar como moeda de troca - e isso pode ser ruim .Crise -qual crise? Eis o que tonitruavam até pouco tempo atrás ideólogos liberais, de direita e também de esquerda, que acreditam na vida eterna do capitalismo. Saiu cada vez mais do foco da atenção o fato de essa espécie de sociedade não apenas ter uma história, mas ser mesmo a história de uma dinâmica cega.Justamente nas duas últimas décadas, as pessoas queriam perceber apenas os "eventos" transitórios nas formas sociais a-históricas de uma ontologia capitalista. Isso vale para indivíduos comuns e para os pobres, assim como para as elites.À semelhança do personagem Dorian Gray no romance homônimo do irlandês Oscar Wilde, parecia que no lugar do capitalismo só envelhecia a imagem do mundo social por ele criado, assumindo os traços da miséria, enquanto a lógica do dinheiro brilhava em falso frescor juvenil.Agora, a "Segunda-Feira Negra" da maior quebra financeira da história [a do Lehman Brothers, 15/9] desvela num único golpe o verdadeiro rosto do Dorian Gray capitalista.Ocorre que ninguém quer reconhecer essa natureza do novo surto de crise. A confiança atávica no capitalismo conduz apenas à busca de culpados."Práticas nada sérias" de especuladores e uma "política econômica anglo-saxã" são responsabilizadas pelo desastre. Tal explicação míope com ecos anti-semitas já foi mobilizada recorrentemente no passado.Há mais de 20 anos uma onda de crises financeiras acompanha a globalização. Todas as medidas aparentemente bem-sucedidas para evitar uma "fusão nuclear" do sistema financeiro internacional só lograram reformular o problema, em vez de solucioná-lo.Humanos obsoletosSua evolução atual implode todas as concepções até agora propostas. Não afetou apenas o setor dos créditos hipotecários nos EUA, mas provocou também uma reação em cadeia, cujo fim ainda é distante.É impossível que as causas sejam a falha individual e as deficiências morais dos atores. Elas só podem residir no núcleo do sistema, referido à economia real.O capitalismo é apenas a acumulação autotélica de dinheiro, cuja "substância" consiste no uso crescentemente ampliado da mão-de-obra humana. Ao mesmo tempo, porém, a concorrência conduz a um aumento da produtividade, que torna a mão-de-obra obsoleta, em escala também crescente.Apesar de todas as crises, tal autocontradição parecia dissolver-se sempre em uma regeneração da absorção maciça da mão-de-obra por novas indústrias. O "milagre econômico" depois de 1945 transformou em credo essa capacidade do capitalismo, mas, desde os anos 1980, a "Terceira Revolução Industrial", microeletrônica, ensejou uma nova qualidade da racionalização, que desvaloriza a mão-de-obra humana em medida antes desconhecida.Sem o surgimento de novas indústrias dotadas da potência de crescimento auto-sustentado, a "substância" real da valorização do capital se derrete.O neoliberalismo foi tão-somente a tentativa de gerir com meios repressivos a crise social daí decorrente, por um lado, e de produzir um crescimento "sem substância" do "capital fictício" mediante o inchaço irrefreado do crédito, do endividamento e das bolhas financeiras nos mercados de ações e de imóveis, por outro lado.Mas essa abertura mundial das comportas monetárias e, sobretudo, a avalanche de dólares produzida pelo Banco Central dos EUA já foram o pecado original do assim chamado monetarismo, que postulara como cerne da doutrina neoliberal a redução forçada da quantidade de dinheiro.Na verdade, o jorro de dinheiro, criado pelo Estado a partir do nada, subsidiou uma inflação de ativos patrimoniais fictícios. O paradoxal "socialismo do dinheiro sem substância" experimenta agora seu "Waterloo", como antes já ocorreu com o capitalismo de Estado do Leste Europeu e a versão keynesiana do crescimento fomentado pelo Estado no Ocidente.A estatização de fato do sistema bancário dos EUA e o plano do secretário do Tesouro dos EUA para conter a crise com recursos estatais só podem ser avaliados como atos de desespero. Da noite para o dia revelou-se o caráter de capitalismo estatal da suposta liberdade dos mercados.Estágio finalComentaristas irônicos já falam em "República Popular de Wall Street". Mas isso não resolve nada.De certa forma, estamos diante do último estágio do capitalismo de Estado, que na melhor das hipóteses pode postergar o colapso dos balanços com mais emissões inflacionárias de moeda.À diferença de épocas anteriores, inexiste espaço para novos programas conjunturais, que precisariam alimentar-se na mesma fonte.Com isso também chegou o fim dos EUA enquanto potência mundial. Não é mais possível financiar guerras intervencionistas com recursos próprios. O dólar se torna obsoleto enquanto moeda mundial.Ocorre que não podemos vislumbrar no horizonte nenhum substituto para os papéis da última potência mundial e do dólar. O ressentimento contra a "dominação anglo-saxã" não é uma crítica do capitalismo e não tem credibilidade, pois os fluxos unilaterais de exportações aos EUA sustentaram a conjuntura do déficit global.Na Ásia, na Europa e alhures, as capacidades industriais não viveram de ganhos e salários reais, mas, direta ou indiretamente, do endividamento externo dos EUA.Déficit globalNo fundo, a economia neoliberal das bolhas financeiras foi uma espécie de "keynesianismo mundial", que agora se extingue como a anterior variante nacional do keynesianismo.Todas as "novas potências" supostamente emergentes estão inseridas de modo economicamente dependente na circulação global do déficit.Sua dinâmica muito admirada foi uma mera aparência, sem desenvolvimento interno próprio. Por isso não haverá em nenhum lugar o retorno a um capitalismo "sério" com empregos "reais".Em vez disso, devemos esperar o efeito dominó de uma repercussão da crise financeira na conjuntura mundial, ao qual nenhuma região poderá subtrair-se.O capitalismo de Estado e o capitalismo concorrencial "livre" evidenciam ser dois lados da mesma moeda. Abala-se não um "modelo" passível de ser substituído por outro, mas o modo vigente da produção e da vida enquanto fundamento comum do mercado mundial.ROBERT KURZ é sociólogo alemão, autor de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra). Tradução de Peter Naumann.
As novas constituições latino-americanas do século XXI
A "Folha de São Paulo" publica no dia 28 de setembro de 2008 matéria importante sobre os novos textos constitucionais. Tal fato indica a necessidade de realizarmos um estudo comparativo. Se os constitucionalistas americanos nos anos 90 do século passado ajudaram a transição política na Europa do Lesta ao proporem projetos constitucionais, vejam que, também, na América Latina, temos assessorias nesse sentido com base na Venezuela.Novo texto constitucional ecoa os da Venezuela e da BoliviaAs semelhanças no conteúdo da nova proposta da Constituição equatoriana com os da Venezuela e da Bolívia têm provocado no país o debate sobre qual o grau de influência externa durante a elaboração da Carta que irá à votação hoje.O roteiro é praticamente o mesmo. Antes do equatoriano Rafael Correa, os presidentes Evo Morales (Bolívia) e Hugo Chávez (Venezuela) iniciaram seus mandatos impulsionando uma Assembléia Constituinte.Chávez conseguiu aprovar a nova Carta por meio de um referendo no mesmo ano em que assumiu a Presidência, em 1999. Já Morales, no poder desde janeiro de 2006, enfrenta uma grave crise política porque a oposição não reconhece a sua proposta de Carta. Aprovada no final do ano passado apenas por governistas, depende, para entrar em vigor, de consulta popular ainda sem data.Além da aprovação por referendo, outros pontos coincidentes incluem a reeleição presidencial, o aumento das atribuições do Executivo, uma maior presença do Estado na economia e a criação de uma espécie de Poder Popular.A semelhança entre as três Constituições foi reforçada no Equador pela presença como consultor de um grupo liderado pelo advogado constitucionalista espanhol Roberto Viciano. Ligado ao Ceps (Centro de Estudos Políticos e Sociais), com sede em Valência, é um antigo colaborador de Chávez."Eles faziam praticamente tudo, desde a ordem do dia. Eles propunham os artigos e inclusive davam as orientações sobre como os constituintes governistas deveriam aprovar esses artigos", acusa o ex-presidente Lucio Gutiérrez, cujo partido, Sociedade Patriótica, tinha a segunda maior bancada da Assembléia Constituinte.Para Gutiérrez, a principal semelhança é "a busca pelo controle dos organismos de fiscalização e de Justiça"."As três Constituições têm uma matriz comum, a busca de construir um regime político totalmente distinto, com uma nova classe dirigente, uma nova burocracia no poder, com posturas radicais de esquerda no discurso, mas, dada a altíssima concentração de poder na figura do presidente, um grande nível discricionário em funções essenciais", compara o analista César Montúfar.Para o analista Adrián Bonilla, a Constituição equatoriana de fato tem vários pontos comuns com a da Venezuela. Ele, porém, minimiza a influência de Chávez sobre Correa."O Equador não integra a Alba [bloco político liderado pela Venezuela], não tem a mesma retórica antiamericana, não há técnicos venezuelanos nem médicos cubanos e não há grandes volumes de cooperação venezuelana."Para Maria Paula Romo, ex-constituinte do partido governista Aliança País, as semelhanças refletem principalmente a substituição de governos "neoliberais" por presidentes de esquerda em vários países da América Latina."Há semelhanças não apenas com a Venezuela e a Bolívia como também com vários outros deste continente, incluindo o próprio Brasil."Sobre a participação de assessoria estrangeira, Romo disse que a Constituição que vai a referendo hoje "é equatoriana, feita por equatorianos para equatorianos e recolhe as experiências desse país. Dizer o contrário é nos subestimar."
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Boaventura de Sousa Santos e a crise do capitalismo americano
O jornal "Folha de São Paulo" publica matéria em 26 de setembro de 2008 de Boaventura de Sousa Santos sobre a crise do capitalismo americano.
O impensável aconteceu
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela
A PALAVRA não aparece na mídia dos EUA, mas é disso que se trata: nacionalização.Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo federal norte-americano decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro.A medida não é inédita. O governo interveio em outras crises profundas: 1792 (no mandato do primeiro presidente do país), 1907 (o papel central na resolução da crise coube ao grande banco de então, J.P. Morgan, hoje, Morgan Stanley, também em risco), 1929 (a Grande Depressão: em 1933, mil norte-americanos por dia perdiam suas casas para os bancos) e 1985 (crise das associações de poupança e empréstimo). O que é novo na intervenção em curso é sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de 30 anos de evangelização neoliberal conduzida com mão-de-ferro em nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia, porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social.Foi com essas receitas que se "resolveram" as crises financeiras da América Latina e da Ásia e que se impuseram ajustamentos estruturais em dezenas de países. Foi também com elas que milhões de pessoas foram lançadas no desemprego, perderam as suas terras ou os seus direitos laborais, tiveram de emigrar.À luz disso, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingem o nível de autodestruição.Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela, tão generalizada foi a sua conversão ao evangelho neoliberal. Muito continuará como dantes: o espírito individualista, egoísta e anti-social que anima o capitalismo; o fato de que a fatura das crises é sempre paga por quem nada contribuiu para elas, a esmagadora maioria dos cidadãos.Mas muito mais mudará. Primeiro, o declínio dos EUA como potência mundial atinge novo patamar. O país acaba de ser vítima das armas de destruição financeira maciça com que agrediu tantos países nas últimas décadas e a decisão "soberana" de se defender foi afinal induzida pela pressão dos seus credores estrangeiros (sobretudo chineses) que ameaçaram com uma fuga que seria devastadora para o atual "american way of life".Segundo, FMI e Banco Mundial deixaram de ter autoridade para impor suas receitas, pois sempre usaram como bitola uma economia que se revela fantasma. Daqui em diante, a primazia do interesse nacional pode ditar, por exemplo, taxas de juro subsidiadas para apoiar indústrias em perigo (como as que o Congresso dos EUA acaba de aprovar para o setor automotivo).Não estamos ante uma desglobalização, mas estamos certamente ante uma nova globalização pós-neoliberal internamente muito mais diversificada. Emergem novos regionalismos, já presentes na África e na Ásia, mas sobretudo importantes na América Latina, como o agora consolidado com a criação da União das Nações Sul-Americanas e do Banco do Sul.Terceiro, as políticas de privatização da segurança social ficam desacreditadas: é eticamente monstruoso acumular lucros fabulosos com o dinheiro de milhões de trabalhadores humildes e abandonar estes à sua sorte quando a especulação dá errado. Quarto, o Estado que regressa como solução é o mesmo que foi moral e institucionalmente destruído pelo neoliberalismo, o qual tudo fez para que sua profecia se cumprisse: transformar o Estado num antro de corrupção. Isso significa que, se o Estado não for profundamente reformado e democratizado, em breve será, agora, sim, um problema sem solução.Quinto, as mudanças na globalização hegemônica vão provocar mudanças na globalização dos movimentos sociais e vão certamente refletir-se no Fórum Social Mundial: a nova centralidade das lutas nacionais e regionais; as relações com Estados e partidos progressistas e as lutas pela refundação democrática do Estado; as contradições entre classes nacionais e transnacionais e as políticas de alianças.BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 67, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).
O impensável aconteceu
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela
A PALAVRA não aparece na mídia dos EUA, mas é disso que se trata: nacionalização.Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo federal norte-americano decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro.A medida não é inédita. O governo interveio em outras crises profundas: 1792 (no mandato do primeiro presidente do país), 1907 (o papel central na resolução da crise coube ao grande banco de então, J.P. Morgan, hoje, Morgan Stanley, também em risco), 1929 (a Grande Depressão: em 1933, mil norte-americanos por dia perdiam suas casas para os bancos) e 1985 (crise das associações de poupança e empréstimo). O que é novo na intervenção em curso é sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de 30 anos de evangelização neoliberal conduzida com mão-de-ferro em nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia, porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social.Foi com essas receitas que se "resolveram" as crises financeiras da América Latina e da Ásia e que se impuseram ajustamentos estruturais em dezenas de países. Foi também com elas que milhões de pessoas foram lançadas no desemprego, perderam as suas terras ou os seus direitos laborais, tiveram de emigrar.À luz disso, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingem o nível de autodestruição.Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela, tão generalizada foi a sua conversão ao evangelho neoliberal. Muito continuará como dantes: o espírito individualista, egoísta e anti-social que anima o capitalismo; o fato de que a fatura das crises é sempre paga por quem nada contribuiu para elas, a esmagadora maioria dos cidadãos.Mas muito mais mudará. Primeiro, o declínio dos EUA como potência mundial atinge novo patamar. O país acaba de ser vítima das armas de destruição financeira maciça com que agrediu tantos países nas últimas décadas e a decisão "soberana" de se defender foi afinal induzida pela pressão dos seus credores estrangeiros (sobretudo chineses) que ameaçaram com uma fuga que seria devastadora para o atual "american way of life".Segundo, FMI e Banco Mundial deixaram de ter autoridade para impor suas receitas, pois sempre usaram como bitola uma economia que se revela fantasma. Daqui em diante, a primazia do interesse nacional pode ditar, por exemplo, taxas de juro subsidiadas para apoiar indústrias em perigo (como as que o Congresso dos EUA acaba de aprovar para o setor automotivo).Não estamos ante uma desglobalização, mas estamos certamente ante uma nova globalização pós-neoliberal internamente muito mais diversificada. Emergem novos regionalismos, já presentes na África e na Ásia, mas sobretudo importantes na América Latina, como o agora consolidado com a criação da União das Nações Sul-Americanas e do Banco do Sul.Terceiro, as políticas de privatização da segurança social ficam desacreditadas: é eticamente monstruoso acumular lucros fabulosos com o dinheiro de milhões de trabalhadores humildes e abandonar estes à sua sorte quando a especulação dá errado. Quarto, o Estado que regressa como solução é o mesmo que foi moral e institucionalmente destruído pelo neoliberalismo, o qual tudo fez para que sua profecia se cumprisse: transformar o Estado num antro de corrupção. Isso significa que, se o Estado não for profundamente reformado e democratizado, em breve será, agora, sim, um problema sem solução.Quinto, as mudanças na globalização hegemônica vão provocar mudanças na globalização dos movimentos sociais e vão certamente refletir-se no Fórum Social Mundial: a nova centralidade das lutas nacionais e regionais; as relações com Estados e partidos progressistas e as lutas pela refundação democrática do Estado; as contradições entre classes nacionais e transnacionais e as políticas de alianças.BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 67, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Gargarella tem razão!
A revista eletrônica de 23 de setembro de 2008 publica matéria sobre o caso Ulstra dando razão ao estudioso argentino Roberto Gargarella no sentido de que o Poder Judiciário na América Latina não decide o essencial. Sempre apela para "o formal" e " o neutro"
Porões da ditadura
TJ paulista extingue processo contra Brilhante Ustra
O Tribunal de Justiça de São Paulo extinguiu, nesta terça-feira (23/9), o processo movido pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna (Doi-Codi), do 2º Exército, em São Paulo. A informação é da Agência Brasil.
Por dois votos a um, os desembargadores acataram o recurso apresentado pelos advogados de Ustra, que pedia a suspensão do processo. O julgamento ocorreu no início da tarde desta terça-feira e, agora, cabe aos familiares de Merlino recorrerem ao Superior Tribunal de Justiça.
A votação estava empatada. Em junho, o desembargador Luiz Antônio Godoy, relator do caso, havia votado pelo acolhimento do recurso e o desembargador Carlos Augusto de Santi Ribeiro, em agosto, votou contra. Já nesta terça-feira (23/9), o relator e o desembargador mantiveram seus votos, cabendo o desempate ao desembargador Hamilton Eliot Akel, que também votou favorável ao agravamento de recurso, julgando o processo extinto, sem julgamento de mérito.
De acordo com o processo, o jornalista Merlino militava no Partido Operário Comunista (POC) em 1971, quando foi detido. Levado ao Doi-Codi, então comandado por Brilhante Ustra, foi torturado e assassinado aos 23 anos. A ação movida pela família de Merlino é uma Ação Civil Declaratória, que responsabiliza o militar pela morte, sem no entanto condená-lo a multa ou prisão.
Segundo o advogado Fábio Konder Comparato, que representa os familiares de Merlino, os desembargadores declararam a ação extinta alegando “que não cabia a ação declaratória”.
“É uma ação técnica. Na ação declaratória deve-se verificar ou não apenas a existência de uma relação jurídica. E o tribunal considerou que, no caso, não se tratava de uma relação jurídica, tratava-se apenas de reconhecimento de fato. É uma pena que o Tribunal tenha seguido essa via, porque já há várias decisões deste e de outros tribunais no sentido de que a relação de responsabilidade pode ser objeto de ação declaratória mesmo que não se queira cobrar nenhuma indenização”, afirmou.
Comparato disse que pretende recorrer ao STJ, questionando também a existência de um documento juntado pela defesa do coronel, “cujo original não foi encontrado”.
“Vamos fazer uma representação, provavelmente ao Ministério Público, para que se verifique se a cópia apresentada é autêntica ou não. Se não for autêntica, terá havido um crime de falsidade”, disse, acrescentando que a família vai continuar na batalha. “Lutar sempre, vencer às vezes, e desistir jamais”, afirmou.
Porões da ditadura
TJ paulista extingue processo contra Brilhante Ustra
O Tribunal de Justiça de São Paulo extinguiu, nesta terça-feira (23/9), o processo movido pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna (Doi-Codi), do 2º Exército, em São Paulo. A informação é da Agência Brasil.
Por dois votos a um, os desembargadores acataram o recurso apresentado pelos advogados de Ustra, que pedia a suspensão do processo. O julgamento ocorreu no início da tarde desta terça-feira e, agora, cabe aos familiares de Merlino recorrerem ao Superior Tribunal de Justiça.
A votação estava empatada. Em junho, o desembargador Luiz Antônio Godoy, relator do caso, havia votado pelo acolhimento do recurso e o desembargador Carlos Augusto de Santi Ribeiro, em agosto, votou contra. Já nesta terça-feira (23/9), o relator e o desembargador mantiveram seus votos, cabendo o desempate ao desembargador Hamilton Eliot Akel, que também votou favorável ao agravamento de recurso, julgando o processo extinto, sem julgamento de mérito.
De acordo com o processo, o jornalista Merlino militava no Partido Operário Comunista (POC) em 1971, quando foi detido. Levado ao Doi-Codi, então comandado por Brilhante Ustra, foi torturado e assassinado aos 23 anos. A ação movida pela família de Merlino é uma Ação Civil Declaratória, que responsabiliza o militar pela morte, sem no entanto condená-lo a multa ou prisão.
Segundo o advogado Fábio Konder Comparato, que representa os familiares de Merlino, os desembargadores declararam a ação extinta alegando “que não cabia a ação declaratória”.
“É uma ação técnica. Na ação declaratória deve-se verificar ou não apenas a existência de uma relação jurídica. E o tribunal considerou que, no caso, não se tratava de uma relação jurídica, tratava-se apenas de reconhecimento de fato. É uma pena que o Tribunal tenha seguido essa via, porque já há várias decisões deste e de outros tribunais no sentido de que a relação de responsabilidade pode ser objeto de ação declaratória mesmo que não se queira cobrar nenhuma indenização”, afirmou.
Comparato disse que pretende recorrer ao STJ, questionando também a existência de um documento juntado pela defesa do coronel, “cujo original não foi encontrado”.
“Vamos fazer uma representação, provavelmente ao Ministério Público, para que se verifique se a cópia apresentada é autêntica ou não. Se não for autêntica, terá havido um crime de falsidade”, disse, acrescentando que a família vai continuar na batalha. “Lutar sempre, vencer às vezes, e desistir jamais”, afirmou.
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
A Lei da Anistia e o STF
A Folha de São Paulo publica importante texto de Fábio Comparato informando que o Conselho Federal da OAB ingressará no STF com uma ADPF para rever o alcance da Lei de Anistia de 1979. Foi esta posição que defendemos na Audiência Pública promovida pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 31 de julho de 2008. Mas vejam o Ext. 974 - Argentina - referente a militar uruguaio implicado na Operação Condor. O voto do Min. relator Marco Aurélio (vide Informativo 519 do STF) que demonstra a provavel postura conservadora contra a justiça retributiva ou de transição entre nós.
Crimes sem castigo
FÁBIO KONDER COMPARATO
A facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado é dos aspectos menos louváveis do caráter nacional
Em homenagem a todos os que tiveram suas vidas ceifadas e suas almas dilaceradas pelo poder militar
UM DOS aspectos menos louváveis do caráter nacional é a leviana facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado. Desde o inicio da colonização e até hoje, múltiplas etnias indígenas foram vítimas de genocídio e de desculturação forçada. Durante quase quatro séculos, a escravatura legal de africanos e afrodescendentes destruiu e aviltou milhões de seres humanos, deformando os nossos costumes e a nossa mentalidade. Em relação a ambos esses crimes coletivos, as gerações atuais não se sentem minimamente interessadas. Pior: é geral a ignorância a esse respeito, sobretudo entre os jovens, provocada pela intencional omissão de tais fatos históricos nos currículos escolares. Reproduzimos agora, com relação aos horrores do regime militar, a mesma atitude vergonhosa de virar as costas ao passado: "não tenho nada a ver com isso"; "não quero saber, pois não havia nascido"; "vamos nos ocupar do futuro do país, não de fatos pretéritos". Pois bem, sustento e sustentarei, até o último sopro de vida, que interpretar a lei nº 6.683, de 28/8/1979, como tendo produzido a anistia dos agentes públicos que, entre outros abusos, mataram, torturaram e violentaram sexualmente presos políticos é juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo. Sob o aspecto técnico-jurídico, a citada lei não estendeu a anistia criminal aos carrascos do regime militar. Só há conexão entre crimes políticos e crimes comuns quando a lei expressamente o declara, como sucedeu com a Lei de Anistia promulgada por Getúlio Vargas em abril de 1945, em preparação ao fim do Estado Novo. Mas, mesmo quando a lei o declara, a conexão criminal supõe que o autor ou os autores de tais crimes perseguiram o mesmo objetivo e não estavam em situação de confronto. Admitir a conexão entre crimes cometidos com objetivos totalmente adversos é um despropósito. Isso sem falar na violação flagrante, no caso, de preceitos consagrados internacionalmente em matéria de direitos humanos e que não comportam anistia. Sob o aspecto moral, impedir oficialmente que sejam apuradas e reveladas ao público práticas infames e aviltantes de abuso de autoridade é inculcar, para todos os efeitos, a vantagem final da injustiça sobre a decência; ou seja, afirmar que a imoralidade compensa. Falar, a respeito da citada lei, em reconciliação nacional é um cínico abuso de linguagem. Moralmente, só pode haver reconciliação quando pactuada entre as partes envolvidas no litígio e perfeitamente cientes dos fatos ocorridos. O que não ocorreu no caso: uma das partes, justamente o conjunto das vítimas das atrocidades cometidas, não foi chamada a dizer se aceitava ou não essa forma de apaziguamento, nem foi informada sobre a identidade dos executores e de seus mandantes. Politicamente, admitir que agentes do Estado, que exerciam funções oficiais e eram remunerados com recursos públicos, isto é, dinheiro do povo, possam gozar de imunidade penal por meio de simples lei, votada sem consulta prévia nem referendo popular, representa clamoroso atentado contra o princípio republicano e democrático. O Congresso Nacional, ao assim proceder, usurpou a soberania popular e subordinou o bem comum do povo ("res publica") ao interesse particular de um punhado de facínoras e de seus comanditários, dentro e fora do governo. Qual a solução? É pedir à mais alta corte de Justiça do país que julgue, definitivamente, se a Lei de Anistia deve ou não ser interpretada à luz dos princípios fundamentais que esteiam todo o nosso sistema jurídico. Nesse sentido, é confortador saber que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já decidiu propor, no Supremo Tribunal Federal, uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no tocante à interpretação desviante da Justiça e da decência dada por certos setores à lei nº 6.683, de 1979. FÁBIO KONDER COMPARATO, 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras).
Crimes sem castigo
FÁBIO KONDER COMPARATO
A facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado é dos aspectos menos louváveis do caráter nacional
Em homenagem a todos os que tiveram suas vidas ceifadas e suas almas dilaceradas pelo poder militar
UM DOS aspectos menos louváveis do caráter nacional é a leviana facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado. Desde o inicio da colonização e até hoje, múltiplas etnias indígenas foram vítimas de genocídio e de desculturação forçada. Durante quase quatro séculos, a escravatura legal de africanos e afrodescendentes destruiu e aviltou milhões de seres humanos, deformando os nossos costumes e a nossa mentalidade. Em relação a ambos esses crimes coletivos, as gerações atuais não se sentem minimamente interessadas. Pior: é geral a ignorância a esse respeito, sobretudo entre os jovens, provocada pela intencional omissão de tais fatos históricos nos currículos escolares. Reproduzimos agora, com relação aos horrores do regime militar, a mesma atitude vergonhosa de virar as costas ao passado: "não tenho nada a ver com isso"; "não quero saber, pois não havia nascido"; "vamos nos ocupar do futuro do país, não de fatos pretéritos". Pois bem, sustento e sustentarei, até o último sopro de vida, que interpretar a lei nº 6.683, de 28/8/1979, como tendo produzido a anistia dos agentes públicos que, entre outros abusos, mataram, torturaram e violentaram sexualmente presos políticos é juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo. Sob o aspecto técnico-jurídico, a citada lei não estendeu a anistia criminal aos carrascos do regime militar. Só há conexão entre crimes políticos e crimes comuns quando a lei expressamente o declara, como sucedeu com a Lei de Anistia promulgada por Getúlio Vargas em abril de 1945, em preparação ao fim do Estado Novo. Mas, mesmo quando a lei o declara, a conexão criminal supõe que o autor ou os autores de tais crimes perseguiram o mesmo objetivo e não estavam em situação de confronto. Admitir a conexão entre crimes cometidos com objetivos totalmente adversos é um despropósito. Isso sem falar na violação flagrante, no caso, de preceitos consagrados internacionalmente em matéria de direitos humanos e que não comportam anistia. Sob o aspecto moral, impedir oficialmente que sejam apuradas e reveladas ao público práticas infames e aviltantes de abuso de autoridade é inculcar, para todos os efeitos, a vantagem final da injustiça sobre a decência; ou seja, afirmar que a imoralidade compensa. Falar, a respeito da citada lei, em reconciliação nacional é um cínico abuso de linguagem. Moralmente, só pode haver reconciliação quando pactuada entre as partes envolvidas no litígio e perfeitamente cientes dos fatos ocorridos. O que não ocorreu no caso: uma das partes, justamente o conjunto das vítimas das atrocidades cometidas, não foi chamada a dizer se aceitava ou não essa forma de apaziguamento, nem foi informada sobre a identidade dos executores e de seus mandantes. Politicamente, admitir que agentes do Estado, que exerciam funções oficiais e eram remunerados com recursos públicos, isto é, dinheiro do povo, possam gozar de imunidade penal por meio de simples lei, votada sem consulta prévia nem referendo popular, representa clamoroso atentado contra o princípio republicano e democrático. O Congresso Nacional, ao assim proceder, usurpou a soberania popular e subordinou o bem comum do povo ("res publica") ao interesse particular de um punhado de facínoras e de seus comanditários, dentro e fora do governo. Qual a solução? É pedir à mais alta corte de Justiça do país que julgue, definitivamente, se a Lei de Anistia deve ou não ser interpretada à luz dos princípios fundamentais que esteiam todo o nosso sistema jurídico. Nesse sentido, é confortador saber que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já decidiu propor, no Supremo Tribunal Federal, uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no tocante à interpretação desviante da Justiça e da decência dada por certos setores à lei nº 6.683, de 1979. FÁBIO KONDER COMPARATO, 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras).
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
O comentário sobre o voto relator do Min. Marco Aurélio a respeito da questão de extradição
O site do Programa de Pós-Graduação da Unisinos de Direito traz importante texto da Profa de Direito Internacional Público Deisy Ventura a respeito do pedido de extradição de ex-oficial urugaio no voto relator do Min. Marco Aurélio. Leiam!
Infâmia no STF: lobos em pele de “Cordero”?
Estou louco, mas por astúcia. As célebres palavras de Hamlet bem definem o voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento do pedido de extradição do militar uruguaio Manuel Cordero Piacentini. A cortina de completa confusão jurídica erigida pelo voto serve para esconder uma revoltante mescla entre a indiferença absoluta à jurisprudência internacional, a grave ignorância do direito comum da humanidade e a simples falta de valentia. Para espanto geral, foi acompanhada por Carlos Alberto Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Eros Grau, até que os Ministros Lewandowski e Peluso puseram fim, ao menos temporariamente, ao vexame que nossa Corte Suprema oferece ao mundo.
Pouco discernimento basta para desfazer a barafunda jurídica promovida pelo Ministro. Argentina e Uruguai clamam pela extradição deste torturador contumaz, preso em Santana do Livramento, em fevereiro de 2007. Naqueles países tramitam contra o agente público (foto ao lado) diversas ações penais que almejam sua responsabilização, entre outros crimes, pelo desaparecimento forçado do cidadão argentino Valdemar Soba Fernandes, ocorrido em 1976. Em primeiro lugar, entendamos o que é a extradição: um Estado pede a outro Estado que lhe entregue uma pessoa, a fim de que responda a processo ou cumpra pena em seu território. Unânime na doutrina que não cabe ao Estado demandado explorar o mérito da acusação, reservado exclusivamente ao Estado que pede a extradição. Pois o Ministro Marco Aurélio se pôs a tergiversar sobre a natureza do crime de Cordero. Em macabro entretenimento, pondera que, passado todo este tempo, a vítima deve estar morta, senão já teria aparecido ! Recorre, então, ao direito ordinário, como se lei especial não existisse, para dizer que se trata de homicídio, e ademais prescrito. Mas a boa pergunta não é: há seqüestro ou homicídio? Na verdade, a questão é: há jurista ou títere?
Ora, o desaparecimento forçado é um tipo penal próprio do direito internacional: nem seqüestro, nem homicídio. É imprescritível, por ser crime permanente, até que o corpo seja encontrado e a verdade sobre a morte apurada. O Ministro Marco Aurélio tem o direito de pensar que “feridas poderão vir a ser abertas” e que a anistia no Brasil “deve ser entendida como uma virada de página”, como declarou em seu voto. Mas o que interessa, no julgamento destes pedidos de extradição, a sua lamentável opinião sobre o alcance da Lei de Anistia do Brasil? Ao STF não cabe, nem nos melhores sonhos dos conservadores, tolher a coragem que os países vizinhos ostentam de julgar os seus agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime militar.
Ainda que, em delirante imperialismo, o Ministro pretendesse impor sua interpretação da Lei de Anistia aos juízes argentinos e uruguaios, ressoa uma objeção técnica maior: desaparecimento forçado, tortura e execução sumária não são crimes políticos, logo não estão cobertos por lei de anistia alguma. Estamos diante de algo similar ao que, no futebol, na impossibilidade de entender a marcação do juiz, chamamos de “perigo de gol”. O que Marco Aurélio julga não é o lance em si, a extradição, mas o absurdo temor de que ela seja entendida como precedente no Brasil.
Não é por ter vivido anos no Uruguai, que ganhou grande parte do meu coração cosmopolita. Não é pela honra de ter trabalhado, em incontáveis reuniões dos movimentos sociais do Mercosul, com a Lilian Celiberti (uruguaia presa em Porto Alegre e torturada diante do seu marido e dos seus filhos). Tampouco é por ter conhecido os comitês da Frente Ampla, em Montevidéu, quando eu tinha apenas 17 anos, pela mão de minha amiga Cecilia Caballero. É pelo imenso amor que tenho pelo Brasil, terra adorada, que espero, ardente, pela radical mudança dos votos dos demais Ministros, rumo à lucidez; e para que aqui não se termine por parafrasear de outro modo o Bardo: fragilidade, teu nome é Direito. (DV, SP, 14/09/08)
Infâmia no STF: lobos em pele de “Cordero”?
Estou louco, mas por astúcia. As célebres palavras de Hamlet bem definem o voto do Ministro Marco Aurélio no julgamento do pedido de extradição do militar uruguaio Manuel Cordero Piacentini. A cortina de completa confusão jurídica erigida pelo voto serve para esconder uma revoltante mescla entre a indiferença absoluta à jurisprudência internacional, a grave ignorância do direito comum da humanidade e a simples falta de valentia. Para espanto geral, foi acompanhada por Carlos Alberto Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Eros Grau, até que os Ministros Lewandowski e Peluso puseram fim, ao menos temporariamente, ao vexame que nossa Corte Suprema oferece ao mundo.
Pouco discernimento basta para desfazer a barafunda jurídica promovida pelo Ministro. Argentina e Uruguai clamam pela extradição deste torturador contumaz, preso em Santana do Livramento, em fevereiro de 2007. Naqueles países tramitam contra o agente público (foto ao lado) diversas ações penais que almejam sua responsabilização, entre outros crimes, pelo desaparecimento forçado do cidadão argentino Valdemar Soba Fernandes, ocorrido em 1976. Em primeiro lugar, entendamos o que é a extradição: um Estado pede a outro Estado que lhe entregue uma pessoa, a fim de que responda a processo ou cumpra pena em seu território. Unânime na doutrina que não cabe ao Estado demandado explorar o mérito da acusação, reservado exclusivamente ao Estado que pede a extradição. Pois o Ministro Marco Aurélio se pôs a tergiversar sobre a natureza do crime de Cordero. Em macabro entretenimento, pondera que, passado todo este tempo, a vítima deve estar morta, senão já teria aparecido ! Recorre, então, ao direito ordinário, como se lei especial não existisse, para dizer que se trata de homicídio, e ademais prescrito. Mas a boa pergunta não é: há seqüestro ou homicídio? Na verdade, a questão é: há jurista ou títere?
Ora, o desaparecimento forçado é um tipo penal próprio do direito internacional: nem seqüestro, nem homicídio. É imprescritível, por ser crime permanente, até que o corpo seja encontrado e a verdade sobre a morte apurada. O Ministro Marco Aurélio tem o direito de pensar que “feridas poderão vir a ser abertas” e que a anistia no Brasil “deve ser entendida como uma virada de página”, como declarou em seu voto. Mas o que interessa, no julgamento destes pedidos de extradição, a sua lamentável opinião sobre o alcance da Lei de Anistia do Brasil? Ao STF não cabe, nem nos melhores sonhos dos conservadores, tolher a coragem que os países vizinhos ostentam de julgar os seus agentes públicos que cometeram crimes contra a humanidade durante o regime militar.
Ainda que, em delirante imperialismo, o Ministro pretendesse impor sua interpretação da Lei de Anistia aos juízes argentinos e uruguaios, ressoa uma objeção técnica maior: desaparecimento forçado, tortura e execução sumária não são crimes políticos, logo não estão cobertos por lei de anistia alguma. Estamos diante de algo similar ao que, no futebol, na impossibilidade de entender a marcação do juiz, chamamos de “perigo de gol”. O que Marco Aurélio julga não é o lance em si, a extradição, mas o absurdo temor de que ela seja entendida como precedente no Brasil.
Não é por ter vivido anos no Uruguai, que ganhou grande parte do meu coração cosmopolita. Não é pela honra de ter trabalhado, em incontáveis reuniões dos movimentos sociais do Mercosul, com a Lilian Celiberti (uruguaia presa em Porto Alegre e torturada diante do seu marido e dos seus filhos). Tampouco é por ter conhecido os comitês da Frente Ampla, em Montevidéu, quando eu tinha apenas 17 anos, pela mão de minha amiga Cecilia Caballero. É pelo imenso amor que tenho pelo Brasil, terra adorada, que espero, ardente, pela radical mudança dos votos dos demais Ministros, rumo à lucidez; e para que aqui não se termine por parafrasear de outro modo o Bardo: fragilidade, teu nome é Direito. (DV, SP, 14/09/08)
domingo, 14 de setembro de 2008
A sociedade de vigilância
Eis a sociedade de vigilância no caderno Mais na Folha de São Paulo de 14 de setembro de 2008
Videocacetadas
BIOMETRIA, CARTÕES DE COMPRAS, CÂMARAS DE VIGILÂNCIA E INTERNET MONITORAM INDIVÍDUOS E EXTINGUEM IDÉIA DE ANONIMATO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A vigilância hoje abrange quase todas as nossas interações com o mundo e todos os nossos sentidos Desaparecer ainda é possível, mas é preciso saber o que isso representa em termos de esforço Quando recorremos ao Yahoo!, revelamos 811 informações pessoais ao mesmo tempo
Satélites de observação, câmeras de vigilância, passaportes biométricos, arquivos administrativos, policiais ou comerciais, chips movidos a freqüência de rádio, GPS, celulares, internet: o cidadão moderno vive no centro de uma rede de tecnologias cada vez mais aperfeiçoadas e cada vez mais indiscretas. Cada uma dessas ferramentas, criadas supostamente para nos oferecer segurança e conforto, nos classifica ou até mesmo nos observa. Ao mesmo tempo cúmplices e inconscientes, somos enredados em uma sociedade de vigilância. Será que ainda é possível escapar desses dispositivos múltiplos que nos cercam por todos os lados? Quem tenta responder a essa pergunta é Thierry Rousselin, consultor de observação espacial e ex-diretor do programa de armamentos da Direção Geral de Armamentos da França, que, com François de Blomac (especialista em novas tecnologias de informação), lança "Sous Surveillance" [Sob Vigilância, ed. Les Carnets de l'Info, 252 págs., 16, R$ 41]. O livro traz uma visão geral dessas tecnologias, procurando diferenciar entre os temores irracionais e os riscos reais de desvios.
PERGUNTA - Quais são hoje os grandes domínios da vigilância tecnológica? THIERRY ROUSSELIN - Podemos traçar círculos concêntricos. O primeiro são os "pedaços" de nós mesmos -tudo o que diz respeito à biometria. Vamos progressivamente entregando um certo número de elementos que nos pertencem, que nos identificam. Essa história começou com nossas impressões digitais. Hoje, chegou ao DNA, à íris, à palma da mão; dentro em breve, será nosso modo de andar ou nossos tiques. O segundo círculo é aquele formado por todos os captadores que nos cercam -aqueles que nos observam, como videovigilância, webcams, aeronaves de espionagem não tripuladas, aviões, helicópteros, satélites. Há também a escuta, em todos os sentidos do termo. Não se deve esquecer nunca que o primeiro método de escuta é uma pessoa ao nosso lado. Também podem ser usados nossos próprios objetos, especialmente o telefone. Comprei um GPS ou um telefone celular. Será que é possível me seguir graças a esses aparelhos? Será que os vários cartões -de crédito, de fidelidade, de assinante- que carrego na carteira revelam coisas a meu respeito, em tempo real, a cada vez que os utilizo? Os formulários que preenchi nos últimos 30 anos traçam uma imagem de mim que é mais precisa que minhas próprias recordações? O último ponto diz respeito ao computador, e já há alguns anos se vêem policiais levando o computador de suspeitos. Depois, há a internet. Será que minha sede de fazer amigos, de me fazer conhecer, não me leva a revelar coisas demais, que algum dia poderão ser usadas contra mim? Logo, os domínios de vigilância hoje abrangem quase todas as nossas interações com o mundo externo e praticamente todos os nossos sentidos. Os receios são mais fortes na medida em que percebermos que teríamos muita dificuldade em viver sem muitas dessas tecnologias. Essa situação é bastante representativa de nossa ambivalência diante dessas questões.
PERGUNTA - O interesse financeiro pode também exercer um papel? ROUSSELIN - Evidentemente! Se aceito um cartão de fidelidade, receberei presentes em troca de alguns dados pessoais. No Reino Unido, várias empresas oferecem seguro mais barato a motoristas que se comprometam a não usar seus carros em determinados horários considerados "de risco". Para verificar se o fazem, elas têm o direito de acessar todas as informações sobre deslocamento contidas no aparato eletrônico do veículo. Os clientes trocam uma economia substancial pela perda de confidencialidade quanto a seu ir e vir.
PERGUNTA - Nas cidades do Reino Unido, os sistemas de vigilância já utilizam 25 milhões de câmeras em lugares públicos. A que se deve esse interesse? ROUSSELIN - É algo muito irracional, pois não existe trabalho de pesquisa que confirme a eficácia das câmeras. Por trás dos sistemas tecnológicos de vigilância, o que há é uma incapacidade do governo de oferecer respostas reais aos problemas colocados. Instalam-se câmeras porque são muito visíveis, e isso custará menos que contratar pessoas e realizar um verdadeiro trabalho de campo. No Reino Unido, os resultados dos programas de videovigilância são muito incertos. O efeito é fraco em termos de prevenção e dissuasão, sobretudo no tocante aos ataques a pessoas (brigas, estupros etc.), freqüentemente cometidos por pessoas de comportamento impulsivo, que não dão a mínima ao fato de serem filmadas, ainda que estejam cientes disso. Com os terroristas acontece o mesmo: os "loucos de Deus" ou de uma causa qualquer ficariam até satisfeitos em poder passar para a posteridade dessa maneira. Quanto aos pequenos delitos, como os cometidos por batedores de carteiras no metrô, são rápidos demais para serem registrados, e seus autores os cometem em lugares freqüentemente extensos, com múltiplas saídas. A videovigilância é uma ajuda preciosa principalmente para a solução de investigações, a posteriori.
PERGUNTA - Ainda é possível "desaparecer" em nossas sociedades? Isto é, ainda é possível escapar do controle da tecnologia? ROUSSELIN - Desaparecer ainda é possível, mas é preciso saber o que isso representa em termos de esforço, sobretudo se você ainda vive na legalidade, sem falsa identidade ou cirurgia plástica. A opção "ilha deserta" aparentemente é a mais simples de concretizar. Você vai viver em algum lugar na zona rural onde possa praticar um modo de vida que minimize as trocas comerciais -sem computador nem telefone celular. Você fecha sua conta bancária e paga tudo em dinheiro vivo. Será preciso não sair do país, especialmente não ir aos EUA, para evitar a necessidade de obter documentos que usem a biometria. É claro que será impossível escolarizar seus filhos no sistema de ensino oficial. E a maior limitação será relativa à saúde pública. O problema é que esse afastamento da sociedade vai parecer sobretudo uma viagem ao passado, um retorno às formas antigas de controle social. Em seu pequeno vilarejo perdido, não haverá quase ninguém, mas todo mundo num raio de dez quilômetros saberá tudo sobre seus hábitos cotidianos, suas particularidades. Os séculos anteriores à tecnologia moderna estavam longe de serem épocas sem vigilância. Para evitar isso, você talvez prefira mergulhar fundo na selva urbana. As multidões das cidades ainda podem garantir o anonimato. Nesse caso, porém, a margem entre a saída do sistema e a exclusão é perigosamente estreita. Você passará despercebido, mas seu modo de vida será cada vez mais próximo ao de um sem-teto.
PERGUNTA - Sem ir tão longe assim, ainda é possível pelo menos controlar as informações a nosso respeito que permitimos que sejam registradas? ROUSSELIN - Se você decide permanecer na sociedade, as informações a seu respeito vão necessariamente circular. Você paga impostos ao fisco, que, conseqüentemente, sabe coisas a seu respeito, assim como sabe seu empregador etc. Mas você pode evitar dar informações a seu respeito que ninguém o obrigue a revelar.Você pode evitar preencher todos os questionários aos quais geralmente não presta atenção. Podemos sobreviver muito bem sem cartões de fidelidade e sem precisarmos informar nosso estado civil para comprar uma torradeira.Alguns desses arquivos circulam livremente se você esquece de fazer um xis no quadradinho na parte inferior do documento, proibindo seu interlocutor de ceder seus dados a seus "parceiros".Portanto, quando preenche questionários não obrigatórios, não é de maneira alguma forçado a dar informações reais. Nada o impede de "enganar-se" sobre seu próprio endereço ou número de telefone.
PERGUNTA - Os telefones celulares são cada vez mais vistos como potenciais delatores. Ainda é possível limitar esse risco? ROUSSELIN - A partir do momento em que seu aparelho está ligado, sua operadora pode de fato colocar em andamento toda uma série de mecanismos de espionagem, atendendo ao pedido de algum "vigilante". Existem procedimentos diferentes que permitem localizar alguém com margem de erro de mais ou menos 50 metros, fazendo uma triangulação com as três antenas de telefonia celular mais próximas de seu telefone. Os telefones de nova geração, os "top de linha" atuais, contêm um chip GPS e serão localizáveis com muito mais facilidade e precisão. Para a escuta, não há apenas a possibilidade de interceptar um telefonema, algo que já se tornou muito simples. Uma operadora também tem a possibilidade de fazer um celular funcionar como microfone de ambiente. Juridicamente, a polícia pode, sob certas condições, pedir que a operadora transforme o telefone em microfone, ouvindo tudo o que é dito em volta da pessoa que carrega o aparelho. Em todos esses casos, porém, tanto para a localização como para a escuta, é preciso que o telefone esteja ligado. Portanto, se você quiser evitar ser permanentemente localizável, faça como fazem policiais ou criminosos: desligue seu celular quando não o estiver usando.
PERGUNTA - A maior porta para a invasão de nossa vida privada ainda é o computador ligado à internet? ROUSSELIN - Com certeza. A maioria dos computadores nos é entregue com sistemas operacionais que dão direito legal à Microsoft ou à Apple de colocar em nossas casas espiões que supostamente estão ali por boas razões. A partir do momento em que somos conectados à rede, independentemente de qualquer decisão autônoma de nossa parte, um pequeno tráfico começa a se desenrolar, nos propondo atualizações, pedindo para não usarmos edições piratas e coletando informações sobre nossa estação de trabalho. Recentemente, o Estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália votou um projeto de lei autorizando a polícia a colocar vírus espiões nos computadores de suspeitos. O problema se agrava mais a partir do momento em que se navega na web. A cada vez que visitamos um site, este registra o número de páginas vistas, o tempo de consulta em cada uma, os links seguidos, o percurso integral do cliente antes da transação, assim como os sites consultados antes e depois. Imagine os mesmos métodos aplicados à revista que seus leitores têm nas mãos: será que os leitores concordariam que você conhecesse sistematicamente o tipo de poltrona em que estão sentados, a espessura de seus óculos, suas horas de leitura, o jornal que leram antes dela? Certamente não. No entanto é isso o que se passa, à nossa revelia, cada vez que navegamos. O "New York Times" publicou no final do ano passado uma pesquisa constatando que, quando recorremos ao Yahoo!, revelamos 811 informações pessoais simultaneamente. O computador é uma verdadeira janela sobre o mundo -uma janela sem cortinas. Desde já, se quero ter certeza de passar despercebido, não devo ir à internet. Mas isso equivale, cada vez mais, a dizer "estou fora do jogo social".
PERGUNTA - Isso será possível dentro de 15 ou 20 anos, quando tudo tiver se desmaterializado, especialmente as formalidades administrativas? Neste novo "jogo social", por que o sr. é tão crítico com as redes sociais e a prática dos blogs? ROUSSELIN - Porque, para mim, o risco maior está aí, especialmente no que diz respeito aos adolescentes. Milhões deles mantêm blogs ou participam de fóruns em que deixam uma quantidade enorme de informações, sem dar-se conta das conseqüências. Já vimos diversos casos: jovens que, em seus blogs, fazem críticas massacrantes às empresas em que fizeram estágio e que, dois anos mais tarde, se surpreendem ao descobrir que os recrutadores lêem esse tipo de coisa. Fazer besteiras e querer se exibir é algo próprio da adolescência. O problema é que os adolescentes difundem suas besteiras em sistemas tecnológicos privados que vão guardar sua memória. Cerca de 90% das pessoas que se cadastram numa rede social não estão mais nela dois meses mais tarde. Fazem todo o processo de admissão, mas acabam se cansando. Deixam para trás uma quantidade enorme de informação pessoal. Acabo de fazer um experimento revelador sobre esse ponto, no contexto profissional. Eu estava num centro de informações militares. Para uma auditoria, estava visitando as unidades de produção. Quando redigi meu relatório, me dei conta de que não tinha anotado o nome do responsável. Recorri a uma ferramenta que me permite procurar quem está em qual rede social. Digitei as informações de que dispunha (seu primeiro nome, sua nacionalidade e seu empregador atual). Encontrei o sujeito na [rede de relacionamento] LinkedIn. Estavam no site sua biografia, que ele próprio digitara, e todos os cargos e locais nos quais já trabalhara como militar. Fiquei pasmo. Assim, o Google e o Yahoo! tornaram-se os maiores detentores de informações sobre nossos comportamentos e nossos hábitos de consumo. São empresas que, dez ou 15 anos atrás, não existiam. Quem pode prever o que será feito delas daqui a 20 anos? Acabamos de ver que ainda restam algumas margens de manobra para quem deseja escapar da vigilância tecnológica. Mas como será isso quando todos esses sistemas estiverem interligados, quando for instaurada a "convergência" de arquivos, computadores, meios de observação, coisa que alguns autores vêem como inevitável antes mesmo de 2050? Não sei se podemos ser tão categóricos assim quanto ao surgimento de tal metassistema. Existem diversos fatores difíceis de medir que podem atrasar essa evolução ou até mesmo impedi-la, bloqueando o sistema. O vigilante é por definição um paranóico. Conseqüentemente, existem muitos inimigos entre os que supostamente estão a seu lado. Antes de chegar a um sistema que poderia dispensar os humanos, ainda haverá pessoas que brigam, serviços que não se comunicam, chefes que escondem informações uns dos outros. O beabá da administração há 5.000 anos consiste, entre os diferentes serviços de inteligência, em esconder informações uns dos outros. Em todos os assuntos ligados ao terrorismo, percebe-se que a lógica é o FBI roubar informações da CIA e que esta as rouba da NSA etc. É também por essa razão que o mulá Omar [líder do Taleban] e Osama bin Laden ainda estão livres. É isso que às vezes acho excessivo nos panfletos sobre a vigilância: sempre há um exagero, a tendência a pensar que aquele que vigia não erra, que não se afasta no meio do vídeo para tomar um café etc. Como se não fosse humano. Na realidade, ocorrem muitas imperfeições que prejudicam o potencial de eficácia da vigilância. O outro parâmetro a levar em conta é que cada uma dessas tecnologias cria seus próprios contrapoderes. Para a observação (videovigilância ou satélites), percebe-se que a grande dificuldade está no excesso de imagens, comparado ao número de analistas existentes e às capacidades técnicas de análise disponíveis. Dezenas de milhares de amadores que decodificam imagens se tornam tão poderosos quanto os poderes constituídos, que dispõem de meios limitados. Isso foi constatado com o furacão Katrina [que atingiu os EUA em 2005], quando, olhando as imagens disponíveis, os internautas chamaram a atenção para a impotência das autoridades americanas. Os cidadãos também podem voltar certos meios contra seus criadores, vigiando os vigiadores. Um dos aspectos de nossa pesquisa que nos deixou otimistas é a efervescência criadora que está crescendo em torno desse assunto. Diversas formas de resistência, artísticas ou associativas, estão sendo criadas. Podem retardar ou impedir o pior, sensibilizando o grande público.
PERGUNTA - Em lugar de passar despercebida, a solução seria continuar ativo para subverter o sistema? ROUSSELIN - Sim, ainda restam muitas áreas de nossa vida pessoal em que nem tudo está decidido. E cabe a cada um de nós fazer com que a vigilância não se amplie. Estamos assistindo ao surgimento de ativistas, vemos artistas, pessoas que têm comportamentos sadios. Mas então topamos com nosso próprio comodismo, nossos pequenos interesses momentâneos. É contra isso que é preciso lutar. Contra nós mesmos? Sim! Porque gostamos do que é moderno e simples. A força do Google ou da Apple é a dessas interfaces incrivelmente fáceis e intuitivas, que nos seduzem. Todos nós temos amigos que nos fazem a demonstração de seu mais novo objeto "super-high-tech", que se gabam interminavelmente das qualidades de seu novo telefone etc. O que fazem não é nada mais, nada menos que promover o novo instrumento que os vigia. E sentem muito orgulho disso. Somos todos um pouco assim. Isso mostra que somos modernos. Em alguns momentos é preciso mostrar-se um pouco antiquado e aceitar que a vida nos seja um pouco menos simplificada.
Videocacetadas
BIOMETRIA, CARTÕES DE COMPRAS, CÂMARAS DE VIGILÂNCIA E INTERNET MONITORAM INDIVÍDUOS E EXTINGUEM IDÉIA DE ANONIMATO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A vigilância hoje abrange quase todas as nossas interações com o mundo e todos os nossos sentidos Desaparecer ainda é possível, mas é preciso saber o que isso representa em termos de esforço Quando recorremos ao Yahoo!, revelamos 811 informações pessoais ao mesmo tempo
Satélites de observação, câmeras de vigilância, passaportes biométricos, arquivos administrativos, policiais ou comerciais, chips movidos a freqüência de rádio, GPS, celulares, internet: o cidadão moderno vive no centro de uma rede de tecnologias cada vez mais aperfeiçoadas e cada vez mais indiscretas. Cada uma dessas ferramentas, criadas supostamente para nos oferecer segurança e conforto, nos classifica ou até mesmo nos observa. Ao mesmo tempo cúmplices e inconscientes, somos enredados em uma sociedade de vigilância. Será que ainda é possível escapar desses dispositivos múltiplos que nos cercam por todos os lados? Quem tenta responder a essa pergunta é Thierry Rousselin, consultor de observação espacial e ex-diretor do programa de armamentos da Direção Geral de Armamentos da França, que, com François de Blomac (especialista em novas tecnologias de informação), lança "Sous Surveillance" [Sob Vigilância, ed. Les Carnets de l'Info, 252 págs., 16, R$ 41]. O livro traz uma visão geral dessas tecnologias, procurando diferenciar entre os temores irracionais e os riscos reais de desvios.
PERGUNTA - Quais são hoje os grandes domínios da vigilância tecnológica? THIERRY ROUSSELIN - Podemos traçar círculos concêntricos. O primeiro são os "pedaços" de nós mesmos -tudo o que diz respeito à biometria. Vamos progressivamente entregando um certo número de elementos que nos pertencem, que nos identificam. Essa história começou com nossas impressões digitais. Hoje, chegou ao DNA, à íris, à palma da mão; dentro em breve, será nosso modo de andar ou nossos tiques. O segundo círculo é aquele formado por todos os captadores que nos cercam -aqueles que nos observam, como videovigilância, webcams, aeronaves de espionagem não tripuladas, aviões, helicópteros, satélites. Há também a escuta, em todos os sentidos do termo. Não se deve esquecer nunca que o primeiro método de escuta é uma pessoa ao nosso lado. Também podem ser usados nossos próprios objetos, especialmente o telefone. Comprei um GPS ou um telefone celular. Será que é possível me seguir graças a esses aparelhos? Será que os vários cartões -de crédito, de fidelidade, de assinante- que carrego na carteira revelam coisas a meu respeito, em tempo real, a cada vez que os utilizo? Os formulários que preenchi nos últimos 30 anos traçam uma imagem de mim que é mais precisa que minhas próprias recordações? O último ponto diz respeito ao computador, e já há alguns anos se vêem policiais levando o computador de suspeitos. Depois, há a internet. Será que minha sede de fazer amigos, de me fazer conhecer, não me leva a revelar coisas demais, que algum dia poderão ser usadas contra mim? Logo, os domínios de vigilância hoje abrangem quase todas as nossas interações com o mundo externo e praticamente todos os nossos sentidos. Os receios são mais fortes na medida em que percebermos que teríamos muita dificuldade em viver sem muitas dessas tecnologias. Essa situação é bastante representativa de nossa ambivalência diante dessas questões.
PERGUNTA - O interesse financeiro pode também exercer um papel? ROUSSELIN - Evidentemente! Se aceito um cartão de fidelidade, receberei presentes em troca de alguns dados pessoais. No Reino Unido, várias empresas oferecem seguro mais barato a motoristas que se comprometam a não usar seus carros em determinados horários considerados "de risco". Para verificar se o fazem, elas têm o direito de acessar todas as informações sobre deslocamento contidas no aparato eletrônico do veículo. Os clientes trocam uma economia substancial pela perda de confidencialidade quanto a seu ir e vir.
PERGUNTA - Nas cidades do Reino Unido, os sistemas de vigilância já utilizam 25 milhões de câmeras em lugares públicos. A que se deve esse interesse? ROUSSELIN - É algo muito irracional, pois não existe trabalho de pesquisa que confirme a eficácia das câmeras. Por trás dos sistemas tecnológicos de vigilância, o que há é uma incapacidade do governo de oferecer respostas reais aos problemas colocados. Instalam-se câmeras porque são muito visíveis, e isso custará menos que contratar pessoas e realizar um verdadeiro trabalho de campo. No Reino Unido, os resultados dos programas de videovigilância são muito incertos. O efeito é fraco em termos de prevenção e dissuasão, sobretudo no tocante aos ataques a pessoas (brigas, estupros etc.), freqüentemente cometidos por pessoas de comportamento impulsivo, que não dão a mínima ao fato de serem filmadas, ainda que estejam cientes disso. Com os terroristas acontece o mesmo: os "loucos de Deus" ou de uma causa qualquer ficariam até satisfeitos em poder passar para a posteridade dessa maneira. Quanto aos pequenos delitos, como os cometidos por batedores de carteiras no metrô, são rápidos demais para serem registrados, e seus autores os cometem em lugares freqüentemente extensos, com múltiplas saídas. A videovigilância é uma ajuda preciosa principalmente para a solução de investigações, a posteriori.
PERGUNTA - Ainda é possível "desaparecer" em nossas sociedades? Isto é, ainda é possível escapar do controle da tecnologia? ROUSSELIN - Desaparecer ainda é possível, mas é preciso saber o que isso representa em termos de esforço, sobretudo se você ainda vive na legalidade, sem falsa identidade ou cirurgia plástica. A opção "ilha deserta" aparentemente é a mais simples de concretizar. Você vai viver em algum lugar na zona rural onde possa praticar um modo de vida que minimize as trocas comerciais -sem computador nem telefone celular. Você fecha sua conta bancária e paga tudo em dinheiro vivo. Será preciso não sair do país, especialmente não ir aos EUA, para evitar a necessidade de obter documentos que usem a biometria. É claro que será impossível escolarizar seus filhos no sistema de ensino oficial. E a maior limitação será relativa à saúde pública. O problema é que esse afastamento da sociedade vai parecer sobretudo uma viagem ao passado, um retorno às formas antigas de controle social. Em seu pequeno vilarejo perdido, não haverá quase ninguém, mas todo mundo num raio de dez quilômetros saberá tudo sobre seus hábitos cotidianos, suas particularidades. Os séculos anteriores à tecnologia moderna estavam longe de serem épocas sem vigilância. Para evitar isso, você talvez prefira mergulhar fundo na selva urbana. As multidões das cidades ainda podem garantir o anonimato. Nesse caso, porém, a margem entre a saída do sistema e a exclusão é perigosamente estreita. Você passará despercebido, mas seu modo de vida será cada vez mais próximo ao de um sem-teto.
PERGUNTA - Sem ir tão longe assim, ainda é possível pelo menos controlar as informações a nosso respeito que permitimos que sejam registradas? ROUSSELIN - Se você decide permanecer na sociedade, as informações a seu respeito vão necessariamente circular. Você paga impostos ao fisco, que, conseqüentemente, sabe coisas a seu respeito, assim como sabe seu empregador etc. Mas você pode evitar dar informações a seu respeito que ninguém o obrigue a revelar.Você pode evitar preencher todos os questionários aos quais geralmente não presta atenção. Podemos sobreviver muito bem sem cartões de fidelidade e sem precisarmos informar nosso estado civil para comprar uma torradeira.Alguns desses arquivos circulam livremente se você esquece de fazer um xis no quadradinho na parte inferior do documento, proibindo seu interlocutor de ceder seus dados a seus "parceiros".Portanto, quando preenche questionários não obrigatórios, não é de maneira alguma forçado a dar informações reais. Nada o impede de "enganar-se" sobre seu próprio endereço ou número de telefone.
PERGUNTA - Os telefones celulares são cada vez mais vistos como potenciais delatores. Ainda é possível limitar esse risco? ROUSSELIN - A partir do momento em que seu aparelho está ligado, sua operadora pode de fato colocar em andamento toda uma série de mecanismos de espionagem, atendendo ao pedido de algum "vigilante". Existem procedimentos diferentes que permitem localizar alguém com margem de erro de mais ou menos 50 metros, fazendo uma triangulação com as três antenas de telefonia celular mais próximas de seu telefone. Os telefones de nova geração, os "top de linha" atuais, contêm um chip GPS e serão localizáveis com muito mais facilidade e precisão. Para a escuta, não há apenas a possibilidade de interceptar um telefonema, algo que já se tornou muito simples. Uma operadora também tem a possibilidade de fazer um celular funcionar como microfone de ambiente. Juridicamente, a polícia pode, sob certas condições, pedir que a operadora transforme o telefone em microfone, ouvindo tudo o que é dito em volta da pessoa que carrega o aparelho. Em todos esses casos, porém, tanto para a localização como para a escuta, é preciso que o telefone esteja ligado. Portanto, se você quiser evitar ser permanentemente localizável, faça como fazem policiais ou criminosos: desligue seu celular quando não o estiver usando.
PERGUNTA - A maior porta para a invasão de nossa vida privada ainda é o computador ligado à internet? ROUSSELIN - Com certeza. A maioria dos computadores nos é entregue com sistemas operacionais que dão direito legal à Microsoft ou à Apple de colocar em nossas casas espiões que supostamente estão ali por boas razões. A partir do momento em que somos conectados à rede, independentemente de qualquer decisão autônoma de nossa parte, um pequeno tráfico começa a se desenrolar, nos propondo atualizações, pedindo para não usarmos edições piratas e coletando informações sobre nossa estação de trabalho. Recentemente, o Estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália votou um projeto de lei autorizando a polícia a colocar vírus espiões nos computadores de suspeitos. O problema se agrava mais a partir do momento em que se navega na web. A cada vez que visitamos um site, este registra o número de páginas vistas, o tempo de consulta em cada uma, os links seguidos, o percurso integral do cliente antes da transação, assim como os sites consultados antes e depois. Imagine os mesmos métodos aplicados à revista que seus leitores têm nas mãos: será que os leitores concordariam que você conhecesse sistematicamente o tipo de poltrona em que estão sentados, a espessura de seus óculos, suas horas de leitura, o jornal que leram antes dela? Certamente não. No entanto é isso o que se passa, à nossa revelia, cada vez que navegamos. O "New York Times" publicou no final do ano passado uma pesquisa constatando que, quando recorremos ao Yahoo!, revelamos 811 informações pessoais simultaneamente. O computador é uma verdadeira janela sobre o mundo -uma janela sem cortinas. Desde já, se quero ter certeza de passar despercebido, não devo ir à internet. Mas isso equivale, cada vez mais, a dizer "estou fora do jogo social".
PERGUNTA - Isso será possível dentro de 15 ou 20 anos, quando tudo tiver se desmaterializado, especialmente as formalidades administrativas? Neste novo "jogo social", por que o sr. é tão crítico com as redes sociais e a prática dos blogs? ROUSSELIN - Porque, para mim, o risco maior está aí, especialmente no que diz respeito aos adolescentes. Milhões deles mantêm blogs ou participam de fóruns em que deixam uma quantidade enorme de informações, sem dar-se conta das conseqüências. Já vimos diversos casos: jovens que, em seus blogs, fazem críticas massacrantes às empresas em que fizeram estágio e que, dois anos mais tarde, se surpreendem ao descobrir que os recrutadores lêem esse tipo de coisa. Fazer besteiras e querer se exibir é algo próprio da adolescência. O problema é que os adolescentes difundem suas besteiras em sistemas tecnológicos privados que vão guardar sua memória. Cerca de 90% das pessoas que se cadastram numa rede social não estão mais nela dois meses mais tarde. Fazem todo o processo de admissão, mas acabam se cansando. Deixam para trás uma quantidade enorme de informação pessoal. Acabo de fazer um experimento revelador sobre esse ponto, no contexto profissional. Eu estava num centro de informações militares. Para uma auditoria, estava visitando as unidades de produção. Quando redigi meu relatório, me dei conta de que não tinha anotado o nome do responsável. Recorri a uma ferramenta que me permite procurar quem está em qual rede social. Digitei as informações de que dispunha (seu primeiro nome, sua nacionalidade e seu empregador atual). Encontrei o sujeito na [rede de relacionamento] LinkedIn. Estavam no site sua biografia, que ele próprio digitara, e todos os cargos e locais nos quais já trabalhara como militar. Fiquei pasmo. Assim, o Google e o Yahoo! tornaram-se os maiores detentores de informações sobre nossos comportamentos e nossos hábitos de consumo. São empresas que, dez ou 15 anos atrás, não existiam. Quem pode prever o que será feito delas daqui a 20 anos? Acabamos de ver que ainda restam algumas margens de manobra para quem deseja escapar da vigilância tecnológica. Mas como será isso quando todos esses sistemas estiverem interligados, quando for instaurada a "convergência" de arquivos, computadores, meios de observação, coisa que alguns autores vêem como inevitável antes mesmo de 2050? Não sei se podemos ser tão categóricos assim quanto ao surgimento de tal metassistema. Existem diversos fatores difíceis de medir que podem atrasar essa evolução ou até mesmo impedi-la, bloqueando o sistema. O vigilante é por definição um paranóico. Conseqüentemente, existem muitos inimigos entre os que supostamente estão a seu lado. Antes de chegar a um sistema que poderia dispensar os humanos, ainda haverá pessoas que brigam, serviços que não se comunicam, chefes que escondem informações uns dos outros. O beabá da administração há 5.000 anos consiste, entre os diferentes serviços de inteligência, em esconder informações uns dos outros. Em todos os assuntos ligados ao terrorismo, percebe-se que a lógica é o FBI roubar informações da CIA e que esta as rouba da NSA etc. É também por essa razão que o mulá Omar [líder do Taleban] e Osama bin Laden ainda estão livres. É isso que às vezes acho excessivo nos panfletos sobre a vigilância: sempre há um exagero, a tendência a pensar que aquele que vigia não erra, que não se afasta no meio do vídeo para tomar um café etc. Como se não fosse humano. Na realidade, ocorrem muitas imperfeições que prejudicam o potencial de eficácia da vigilância. O outro parâmetro a levar em conta é que cada uma dessas tecnologias cria seus próprios contrapoderes. Para a observação (videovigilância ou satélites), percebe-se que a grande dificuldade está no excesso de imagens, comparado ao número de analistas existentes e às capacidades técnicas de análise disponíveis. Dezenas de milhares de amadores que decodificam imagens se tornam tão poderosos quanto os poderes constituídos, que dispõem de meios limitados. Isso foi constatado com o furacão Katrina [que atingiu os EUA em 2005], quando, olhando as imagens disponíveis, os internautas chamaram a atenção para a impotência das autoridades americanas. Os cidadãos também podem voltar certos meios contra seus criadores, vigiando os vigiadores. Um dos aspectos de nossa pesquisa que nos deixou otimistas é a efervescência criadora que está crescendo em torno desse assunto. Diversas formas de resistência, artísticas ou associativas, estão sendo criadas. Podem retardar ou impedir o pior, sensibilizando o grande público.
PERGUNTA - Em lugar de passar despercebida, a solução seria continuar ativo para subverter o sistema? ROUSSELIN - Sim, ainda restam muitas áreas de nossa vida pessoal em que nem tudo está decidido. E cabe a cada um de nós fazer com que a vigilância não se amplie. Estamos assistindo ao surgimento de ativistas, vemos artistas, pessoas que têm comportamentos sadios. Mas então topamos com nosso próprio comodismo, nossos pequenos interesses momentâneos. É contra isso que é preciso lutar. Contra nós mesmos? Sim! Porque gostamos do que é moderno e simples. A força do Google ou da Apple é a dessas interfaces incrivelmente fáceis e intuitivas, que nos seduzem. Todos nós temos amigos que nos fazem a demonstração de seu mais novo objeto "super-high-tech", que se gabam interminavelmente das qualidades de seu novo telefone etc. O que fazem não é nada mais, nada menos que promover o novo instrumento que os vigia. E sentem muito orgulho disso. Somos todos um pouco assim. Isso mostra que somos modernos. Em alguns momentos é preciso mostrar-se um pouco antiquado e aceitar que a vida nos seja um pouco menos simplificada.
A sociedade de risco e o Estado Confidencial
Vejam o Caderno Mais de da Folha de São Paulo de 14 de setembro de 2008 reflitam
Estado confidencial
PROFESSOR NA UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO, JEFFREYS-JONES DIZ QUE GOVERNOS ESTÃO QUASE SEMPRE POR TRÁS DOS CASOS DE ESPIONAGEM E AFIRMA QUE SOFREU RETALIAÇÕES DO FBI POR TER ESCRITO UMA HISTÓRIA CRÍTICA DA AGÊNCIA A Agência de Segurança Nacional dos EUA tem satélites que podem grampear qualquer ligação de telefone no mundo todo
Os governos quase sempre estão por trás das ações de seus serviços de espionagem, mas usam a tese do agente "fora de controle" para não assumir responsabilidades. A opinião é do galês Rhodri Jeffreys-Jones, professor da Universidade de Edimburgo (Escócia) especializado em história da espionagem norte-americana. Ele cita o exemplo do lendário e controvertido J. Edgar Hoover (1895-1972), que comandou por 48 anos o FBI, a polícia federal dos EUA, e fazia escutas ilegais de inimigos políticos com o apoio tácito do presidente Franklin Roosevelt. Jeffreys-Jones, que acaba de lançar nos EUA "The FBI - A History" (FBI - Uma História, Yale University Press, 320 págs., US$ 18, R$ 32), diz que os tempos de Hoover estão voltando nos EUA e em outros países, como no Reino Unido, com os poderes do governo avançando progressivamente no terreno das liberdades civis. E comenta um episódio pessoal desse tipo de controle, no qual, segundo ele, o FBI tentou censurar seu livro sobre a história da agência, que em 2008 completa cem anos.
FOLHA - Como é o histórico de escutas ilegais das agências de inteligência dos EUA? RHODRI JEFFREYS-JONES - Uma suspeita parecida com a que cerca a Abin rondou J. Edgar Hoover. Quando era diretor do FBI ele teria grampeado pessoas influentes para desencorajá-las a criticar a agência. Casos como esse e o do Brasil sempre levantam a discussão sobre se os serviços secretos se tornaram fortes demais ou se saíram do controle. Mas a verdade é que eles nunca estão fora de controle -são sempre controlados pela Casa Branca.
FOLHA - O governo sempre esteve por trás de casos como o de Hoover e de outros abusos mais recentes? JEFFREYS-JONES - A Casa Branca deu encorajamentos tácitos. Não há nada documentado em papel. O presidente Franklin Roosevelt, nos anos 30 e 40, certamente encorajou J. Edgar Hoover a fazer escutas telefônicas ilegais de opositores políticos. Um exemplo é o debate sobre se os EUA deveriam entrar na Segunda Guerra. Hoover grampeou as conversas de senadores americanos que se opunham à entrada dos EUA na guerra, ao lado da França e do Reino Unido, e informava o presidente sobre suas táticas políticas.
FOLHA - Usava os dados também para chantageá-los? JEFFREYS-JONES - J. Edgar Hoover era muito sutil e inteligente. Ele não chantageava diretamente. O que fazia era mostrar aos adversários informações confidenciais sobre os colegas deles. Dessa forma, os assustava e conseguia sua submissão. As informações poderiam ser de natureza pessoal, como um filho ilegítimo ou práticas homossexuais. As pessoas tinham muito medo de serem expostas.
FOLHA - Há exemplos recentes desse tipo de prática? JEFFREYS-JONES - O problema é que esse tipo de prática é muito facilmente ocultável. Nos anos 1970, informações sobre essas práticas chegaram à imprensa, houve uma grande investigação sobre a CIA e o FBI, e foi criada uma nova legislação. Por exemplo, em 1978, a Lei de Inteligência de Segurança Estrangeira foi sancionada com o objetivo de estabelecer padrões legais para a escuta telefônica. Em casos em que precisavam usar grampos para contra-espionagem, os agentes recorriam a cortes secretas, e o FBI ou a polícia local ou a CIA tinham que convencer os juízes da necessidade do grampo. Desde então, essa práticas e as possíveis chantagens passaram para os bastidores. Mas, sob o governo do presidente George W. Bush, a situação mudou. É sabido que o FBI, junto com a Agência de Segurança Nacional e outras partes da comunidade de inteligência dos EUA, usa métodos ilegais, ignorando essas cortes especiais. E, se são descobertos, eles podem pedir permissão de forma retroativa para grampear telefones e e-mails. Infelizmente estamos voltando à situação parecida com os tempos de J. Edgar Hoover. Cada vez mais as liberdades civis estão perdendo para os poderes do governo, não só nos EUA, mas também aqui, no Reino Unido.
FOLHA - As novas tecnologias aumentaram muito esses poderes? JEFFREYS-JONES - A Agência de Segurança Nacional dos EUA tem satélites que podem grampear, por exemplo, qualquer ligação de telefone fixo ou celular do mundo. Nesse sentido, as ferramentas são muito mais poderosas do que anos atrás. Mas em termos de utilidade de toda essa informação, que eles mantêm armazenada, é um problema. Porque acaba-se coletando tanta informação que fica difícil analisá-la apropriadamente. Além disso, não há no serviço secreto americano tradutores suficientes em idiomas vitais, como o árabe. Uma massa enorme de dados está sendo acumulada, mas não é útil como deveria ser. Ao mesmo tempo, a coleta desses dados é muito perigosa para as liberdades civis, principalmente quando caem em mãos erradas. Um exemplo são dados pessoais sobre a saúde de alguém, doenças hereditárias que possa haver em sua família, coisas assim. Esse é o tipo de informação que as agências coletam. E, se essas informações chegam às mãos de companhias de seguro, a pessoa já não consegue fazer um seguro. É algo muito sensível.
FOLHA - Os governos dos EUA tentaram impor limites a suas agências de inteligência ou preferiram mantê-las "fora de controle", para não assumirem suas enrascadas? JEFFREYS-JONES - Essa tese de que as agências estão fora do controle do governo é controvertida, porque se trata de uma possibilidade problemática. Mais grave, contudo, é quando o governo controla suas agências de espionagem, mas bota a culpa nelas se algo dá errada. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o 11 de Setembro. Mas a verdade é que os governos quase sempre sabem o que seus serviços secretos estão fazendo. Se não sabem, deveriam assumir a responsabilidade por isso. Não sei exatamente os detalhes do caso brasileiro, mas culpar as agências de inteligência é uma forma de fugir à responsabilidade. Uma outra tática usada por governos é recompensar o fracasso. Se algo dá errado, eles pagam aos responsáveis para mantê-los calados enquanto, em público, falam mal das agências.
FOLHA - O sr. teve um incidente recente com a inteligência americana, quando o FBI ordenou a retirada do logotipo da agência da capa de seu livro. Por que o sr. acha que há outras intenções por trás disso? JEFFREYS-JONES - O FBI sob J. Edgar Hoover era muito pouco tolerante com qualquer tipo de crítica. E acho que [no caso do meu livro] o FBI mais uma vez tenta estrangular a crítica. Ele tem algumas críticas, mas é um livro bem equilibrado. Neste ano o FBI completa cem anos. Outro livro foi lançado sem problema com o logotipo do FBI na capa, mas mostra a agência de forma bem mais positiva. Acho que o que querem é projetar o livro que lhes é mais favorável.
FOLHA - Para liberar o livro com o logotipo, o FBI exigiu fazer uma "revisão" da obra, o que o sr. não aceitou por considerar uma tentativa de censura. Que partes o sr. desconfia que eles censurariam se pudessem? JEFFREYS-JONES - Eles ficaram muito irritados porque escrevi que o FBI sempre teve problemas com racismo. Outra parte que causou desconforto foi a que mostra que a luta contra o terrorismo se tornou ineficiente pelo fracasso do FBI e da CIA em trocar informações
Estado confidencial
PROFESSOR NA UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO, JEFFREYS-JONES DIZ QUE GOVERNOS ESTÃO QUASE SEMPRE POR TRÁS DOS CASOS DE ESPIONAGEM E AFIRMA QUE SOFREU RETALIAÇÕES DO FBI POR TER ESCRITO UMA HISTÓRIA CRÍTICA DA AGÊNCIA A Agência de Segurança Nacional dos EUA tem satélites que podem grampear qualquer ligação de telefone no mundo todo
Os governos quase sempre estão por trás das ações de seus serviços de espionagem, mas usam a tese do agente "fora de controle" para não assumir responsabilidades. A opinião é do galês Rhodri Jeffreys-Jones, professor da Universidade de Edimburgo (Escócia) especializado em história da espionagem norte-americana. Ele cita o exemplo do lendário e controvertido J. Edgar Hoover (1895-1972), que comandou por 48 anos o FBI, a polícia federal dos EUA, e fazia escutas ilegais de inimigos políticos com o apoio tácito do presidente Franklin Roosevelt. Jeffreys-Jones, que acaba de lançar nos EUA "The FBI - A History" (FBI - Uma História, Yale University Press, 320 págs., US$ 18, R$ 32), diz que os tempos de Hoover estão voltando nos EUA e em outros países, como no Reino Unido, com os poderes do governo avançando progressivamente no terreno das liberdades civis. E comenta um episódio pessoal desse tipo de controle, no qual, segundo ele, o FBI tentou censurar seu livro sobre a história da agência, que em 2008 completa cem anos.
FOLHA - Como é o histórico de escutas ilegais das agências de inteligência dos EUA? RHODRI JEFFREYS-JONES - Uma suspeita parecida com a que cerca a Abin rondou J. Edgar Hoover. Quando era diretor do FBI ele teria grampeado pessoas influentes para desencorajá-las a criticar a agência. Casos como esse e o do Brasil sempre levantam a discussão sobre se os serviços secretos se tornaram fortes demais ou se saíram do controle. Mas a verdade é que eles nunca estão fora de controle -são sempre controlados pela Casa Branca.
FOLHA - O governo sempre esteve por trás de casos como o de Hoover e de outros abusos mais recentes? JEFFREYS-JONES - A Casa Branca deu encorajamentos tácitos. Não há nada documentado em papel. O presidente Franklin Roosevelt, nos anos 30 e 40, certamente encorajou J. Edgar Hoover a fazer escutas telefônicas ilegais de opositores políticos. Um exemplo é o debate sobre se os EUA deveriam entrar na Segunda Guerra. Hoover grampeou as conversas de senadores americanos que se opunham à entrada dos EUA na guerra, ao lado da França e do Reino Unido, e informava o presidente sobre suas táticas políticas.
FOLHA - Usava os dados também para chantageá-los? JEFFREYS-JONES - J. Edgar Hoover era muito sutil e inteligente. Ele não chantageava diretamente. O que fazia era mostrar aos adversários informações confidenciais sobre os colegas deles. Dessa forma, os assustava e conseguia sua submissão. As informações poderiam ser de natureza pessoal, como um filho ilegítimo ou práticas homossexuais. As pessoas tinham muito medo de serem expostas.
FOLHA - Há exemplos recentes desse tipo de prática? JEFFREYS-JONES - O problema é que esse tipo de prática é muito facilmente ocultável. Nos anos 1970, informações sobre essas práticas chegaram à imprensa, houve uma grande investigação sobre a CIA e o FBI, e foi criada uma nova legislação. Por exemplo, em 1978, a Lei de Inteligência de Segurança Estrangeira foi sancionada com o objetivo de estabelecer padrões legais para a escuta telefônica. Em casos em que precisavam usar grampos para contra-espionagem, os agentes recorriam a cortes secretas, e o FBI ou a polícia local ou a CIA tinham que convencer os juízes da necessidade do grampo. Desde então, essa práticas e as possíveis chantagens passaram para os bastidores. Mas, sob o governo do presidente George W. Bush, a situação mudou. É sabido que o FBI, junto com a Agência de Segurança Nacional e outras partes da comunidade de inteligência dos EUA, usa métodos ilegais, ignorando essas cortes especiais. E, se são descobertos, eles podem pedir permissão de forma retroativa para grampear telefones e e-mails. Infelizmente estamos voltando à situação parecida com os tempos de J. Edgar Hoover. Cada vez mais as liberdades civis estão perdendo para os poderes do governo, não só nos EUA, mas também aqui, no Reino Unido.
FOLHA - As novas tecnologias aumentaram muito esses poderes? JEFFREYS-JONES - A Agência de Segurança Nacional dos EUA tem satélites que podem grampear, por exemplo, qualquer ligação de telefone fixo ou celular do mundo. Nesse sentido, as ferramentas são muito mais poderosas do que anos atrás. Mas em termos de utilidade de toda essa informação, que eles mantêm armazenada, é um problema. Porque acaba-se coletando tanta informação que fica difícil analisá-la apropriadamente. Além disso, não há no serviço secreto americano tradutores suficientes em idiomas vitais, como o árabe. Uma massa enorme de dados está sendo acumulada, mas não é útil como deveria ser. Ao mesmo tempo, a coleta desses dados é muito perigosa para as liberdades civis, principalmente quando caem em mãos erradas. Um exemplo são dados pessoais sobre a saúde de alguém, doenças hereditárias que possa haver em sua família, coisas assim. Esse é o tipo de informação que as agências coletam. E, se essas informações chegam às mãos de companhias de seguro, a pessoa já não consegue fazer um seguro. É algo muito sensível.
FOLHA - Os governos dos EUA tentaram impor limites a suas agências de inteligência ou preferiram mantê-las "fora de controle", para não assumirem suas enrascadas? JEFFREYS-JONES - Essa tese de que as agências estão fora do controle do governo é controvertida, porque se trata de uma possibilidade problemática. Mais grave, contudo, é quando o governo controla suas agências de espionagem, mas bota a culpa nelas se algo dá errada. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o 11 de Setembro. Mas a verdade é que os governos quase sempre sabem o que seus serviços secretos estão fazendo. Se não sabem, deveriam assumir a responsabilidade por isso. Não sei exatamente os detalhes do caso brasileiro, mas culpar as agências de inteligência é uma forma de fugir à responsabilidade. Uma outra tática usada por governos é recompensar o fracasso. Se algo dá errado, eles pagam aos responsáveis para mantê-los calados enquanto, em público, falam mal das agências.
FOLHA - O sr. teve um incidente recente com a inteligência americana, quando o FBI ordenou a retirada do logotipo da agência da capa de seu livro. Por que o sr. acha que há outras intenções por trás disso? JEFFREYS-JONES - O FBI sob J. Edgar Hoover era muito pouco tolerante com qualquer tipo de crítica. E acho que [no caso do meu livro] o FBI mais uma vez tenta estrangular a crítica. Ele tem algumas críticas, mas é um livro bem equilibrado. Neste ano o FBI completa cem anos. Outro livro foi lançado sem problema com o logotipo do FBI na capa, mas mostra a agência de forma bem mais positiva. Acho que o que querem é projetar o livro que lhes é mais favorável.
FOLHA - Para liberar o livro com o logotipo, o FBI exigiu fazer uma "revisão" da obra, o que o sr. não aceitou por considerar uma tentativa de censura. Que partes o sr. desconfia que eles censurariam se pudessem? JEFFREYS-JONES - Eles ficaram muito irritados porque escrevi que o FBI sempre teve problemas com racismo. Outra parte que causou desconforto foi a que mostra que a luta contra o terrorismo se tornou ineficiente pelo fracasso do FBI e da CIA em trocar informações
sábado, 13 de setembro de 2008
O STF e a sociedade de risco
O jornal O Valor Economico de 12 de setembro de 2008 traz importante matéria para compreendermos pela ótica do STF a sociedade de risco de Beck e o direito reflexivo.
O Supremo e a compensação ambiental
Marcos Abreu Torres
Dias atrás, o Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo a tendência de julgar prioritariamente os casos de interesse maior, publicou uma decisão há muito aguardada pelos profissionais do direito ambiental. Trata-se da ação que questionou a constitucionalidade da compensação ambiental, prevista no artigo 36 da Lei nº 9.985, de 2000. Foi decidido pela parcial inconstitucionalidade do dispositivo legal, no sentido de que o valor da compensação há de ser fixado proporcionalmente ao significativo impacto ambiental apurado no estudo de impacto ambiental, além de revogar o piso mínimo de 0,5% sobre o valor total do empreendimento.
Tal posição modifica a base técnica para definir o valor da compensação. Com isso, o Supremo quis dizer que o meio ambiente pode, sim, ser valorado, mas que esse valor não pode (ou não deve) ser fixado previamente em lei. Em outras palavras: a aferição de um dano ambiental envolve critérios tão complexos e variados que fica difícil para o legislador fixar um mínimo ou máximo à sua compensação - esta deverá ser garantida pelo interessado na medida da proporcionalidade do dano ambiental efetivo.
Andou bem o Supremo ao declarar inconstitucional também a base de cálculo da compensação exigida na lei, qual seja, exclusivamente o valor total do empreendimento. Isso porque há que se cogitar a hipotética situação de um empreendimento sem impactos, que tenha investido eficientemente na sua mitigação e reparação. Um piso mínimo para a compensação, nesses casos, seria um locupletamento ilícito do Estado.
Também é importante analisar se a decisão abre um precedente para questionar alguns casos em que a lei ambiental preveja situações de compensação, mitigação, reparação ou até mesmo as taxas referentes ao poder de polícia, de modo desconectado com o nexo de causalidade entre o empreendimento e o potencial dano ambiental.
Admite-se - e isso ficou claro nos votos que embasaram a decisão - a previsão de parâmetros para a atuação do órgão ambiental, a exemplo de determinados dispositivos presentes no Código Florestal - a Lei nº 4.771, de 1965. Tais parâmetros, todavia, terão sempre que guardar um nexo de causalidade entre a ação danosa, a reação (mitigadora, reparadora ou compensadora) e o bem que se quer proteger, dentro da razoabilidade e proporcionalidade. Conseqüentemente, seria possível questionar as medidas de proteção das áreas de preservação permanente e de reserva legal definidas no Código Florestal?
O STF relativizou o poder discricionário dos órgãos ambientais, abrindo oportunidade para a contestação de critérios
Tecnicamente, sim, é possível. Todavia, trata-se de uma opção feita pelo legislador, que decidiu fixar parâmetros para a proteção daqueles bens ambientais, admitindo-se, contudo, decisões discricionárias, bem como o contraditório e a ampla defesa. É inadmissível que tais parâmetros se apóiem em critérios que não guardam conexão lógica; viola o princípio da proporcionalidade, corolário do conceito de significativo impacto ambiental.
O que dizer, então, das taxas cobradas pelo exercício do poder de polícia ambiental? Há casos não raros em que, similarmente ao critério presente no artigo 36, as taxas são exigidas de acordo com o porte do empreendimento, calculado com base em critérios imprecisos, como área construída, valor investido, número de funcionários etc. A cobrança deve ser proporcional ao grau de potencialidade. Por isso, a lei que fixar a base de cálculo para as taxas deve prever critérios proporcionais aos impactos ambientais. Porém, tais critérios devem ser precisos e objetivos, sob pena de, na prática, inviabilizar o licenciamento ambiental caso o órgão tenha que aferir, caso a caso, a proporção do impacto.
Os conceitos jurídicos indeterminados são inerentes ao direito ambiental. Por isso, a lei não é o instrumento adequado para fixar a compensação de um dano ambiental, visto que a proporcionalidade não pode jamais ser congelada pela norma. Sua aferição dar-se-á casuisticamente, de acordo com o caso concreto, sempre guardando uma pertinência lógica entre o impacto e a compensação, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.
A decisão do Supremo relativizou o poder discricionário dos órgãos ambientais, abrindo uma maior oportunidade para que o empreendedor interessado possa questionar os critérios adotados. Suprimidos os limites mínimos e máximos fixados pela norma, terá o empreendedor maior espaço para dialogar na escolha das medidas compensatórias da sua atividade, assim como, por outro lado, confere-se ao órgão ambiental a tarefa de decidir com base em critérios técnicos razoáveis e proporcionais. O ministro Carlos Minc anunciou que a nova fórmula para calcular o valor da compensação, a ser divulgada em breve, considerará os investimentos destinados a mitigar os impactos socioambientais adotados pelo empreendedor, como era de se esperar.
Concluindo, a decisão consagra os princípios da prevenção, do poluidor-pagador, da proporcionalidade e da razoabilidade ao fixar uma compensação pelos futuros e inevitáveis danos ambientais. A concretização desses princípios sempre foi uma dificuldade do legislador. Todavia, tal tarefa há que ser superada, pois, além de proporcionar segurança jurídica, trata-se do maior desafio no direito ambiental: definir em números e palavras as condições mínimas para a garantia de um ambiente ecologicamente equilibrado.
O Supremo e a compensação ambiental
Marcos Abreu Torres
Dias atrás, o Supremo Tribunal Federal (STF), seguindo a tendência de julgar prioritariamente os casos de interesse maior, publicou uma decisão há muito aguardada pelos profissionais do direito ambiental. Trata-se da ação que questionou a constitucionalidade da compensação ambiental, prevista no artigo 36 da Lei nº 9.985, de 2000. Foi decidido pela parcial inconstitucionalidade do dispositivo legal, no sentido de que o valor da compensação há de ser fixado proporcionalmente ao significativo impacto ambiental apurado no estudo de impacto ambiental, além de revogar o piso mínimo de 0,5% sobre o valor total do empreendimento.
Tal posição modifica a base técnica para definir o valor da compensação. Com isso, o Supremo quis dizer que o meio ambiente pode, sim, ser valorado, mas que esse valor não pode (ou não deve) ser fixado previamente em lei. Em outras palavras: a aferição de um dano ambiental envolve critérios tão complexos e variados que fica difícil para o legislador fixar um mínimo ou máximo à sua compensação - esta deverá ser garantida pelo interessado na medida da proporcionalidade do dano ambiental efetivo.
Andou bem o Supremo ao declarar inconstitucional também a base de cálculo da compensação exigida na lei, qual seja, exclusivamente o valor total do empreendimento. Isso porque há que se cogitar a hipotética situação de um empreendimento sem impactos, que tenha investido eficientemente na sua mitigação e reparação. Um piso mínimo para a compensação, nesses casos, seria um locupletamento ilícito do Estado.
Também é importante analisar se a decisão abre um precedente para questionar alguns casos em que a lei ambiental preveja situações de compensação, mitigação, reparação ou até mesmo as taxas referentes ao poder de polícia, de modo desconectado com o nexo de causalidade entre o empreendimento e o potencial dano ambiental.
Admite-se - e isso ficou claro nos votos que embasaram a decisão - a previsão de parâmetros para a atuação do órgão ambiental, a exemplo de determinados dispositivos presentes no Código Florestal - a Lei nº 4.771, de 1965. Tais parâmetros, todavia, terão sempre que guardar um nexo de causalidade entre a ação danosa, a reação (mitigadora, reparadora ou compensadora) e o bem que se quer proteger, dentro da razoabilidade e proporcionalidade. Conseqüentemente, seria possível questionar as medidas de proteção das áreas de preservação permanente e de reserva legal definidas no Código Florestal?
O STF relativizou o poder discricionário dos órgãos ambientais, abrindo oportunidade para a contestação de critérios
Tecnicamente, sim, é possível. Todavia, trata-se de uma opção feita pelo legislador, que decidiu fixar parâmetros para a proteção daqueles bens ambientais, admitindo-se, contudo, decisões discricionárias, bem como o contraditório e a ampla defesa. É inadmissível que tais parâmetros se apóiem em critérios que não guardam conexão lógica; viola o princípio da proporcionalidade, corolário do conceito de significativo impacto ambiental.
O que dizer, então, das taxas cobradas pelo exercício do poder de polícia ambiental? Há casos não raros em que, similarmente ao critério presente no artigo 36, as taxas são exigidas de acordo com o porte do empreendimento, calculado com base em critérios imprecisos, como área construída, valor investido, número de funcionários etc. A cobrança deve ser proporcional ao grau de potencialidade. Por isso, a lei que fixar a base de cálculo para as taxas deve prever critérios proporcionais aos impactos ambientais. Porém, tais critérios devem ser precisos e objetivos, sob pena de, na prática, inviabilizar o licenciamento ambiental caso o órgão tenha que aferir, caso a caso, a proporção do impacto.
Os conceitos jurídicos indeterminados são inerentes ao direito ambiental. Por isso, a lei não é o instrumento adequado para fixar a compensação de um dano ambiental, visto que a proporcionalidade não pode jamais ser congelada pela norma. Sua aferição dar-se-á casuisticamente, de acordo com o caso concreto, sempre guardando uma pertinência lógica entre o impacto e a compensação, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.
A decisão do Supremo relativizou o poder discricionário dos órgãos ambientais, abrindo uma maior oportunidade para que o empreendedor interessado possa questionar os critérios adotados. Suprimidos os limites mínimos e máximos fixados pela norma, terá o empreendedor maior espaço para dialogar na escolha das medidas compensatórias da sua atividade, assim como, por outro lado, confere-se ao órgão ambiental a tarefa de decidir com base em critérios técnicos razoáveis e proporcionais. O ministro Carlos Minc anunciou que a nova fórmula para calcular o valor da compensação, a ser divulgada em breve, considerará os investimentos destinados a mitigar os impactos socioambientais adotados pelo empreendedor, como era de se esperar.
Concluindo, a decisão consagra os princípios da prevenção, do poluidor-pagador, da proporcionalidade e da razoabilidade ao fixar uma compensação pelos futuros e inevitáveis danos ambientais. A concretização desses princípios sempre foi uma dificuldade do legislador. Todavia, tal tarefa há que ser superada, pois, além de proporcionar segurança jurídica, trata-se do maior desafio no direito ambiental: definir em números e palavras as condições mínimas para a garantia de um ambiente ecologicamente equilibrado.
A questão racial e a eleição americana: sistemas eleitorais e ação afirmativa
Acessem www.folha.com.br/082562 para lerem importante matéria publicada na Folha de São Paulo de 13 de setembro de 2008 destacando os procedimentos eleitorais nos Estados Unidos.
domingo, 7 de setembro de 2008
Zaffaroni e a segunda onda de cidadania
A Folha de São Paulo de 07 de setembro de 2008 publica entrevista com Eugênio Zaffaroni, Ministro da Corte Suprema argentina, abordando assuntos como as novas constituições e "a nova onda de cidadania" na América Latina
"Latinos vivem segunda onda cidadã"
Para Zaffaroni, da Suprema Corte argentina, governos "populistas" aumentam parcela a ter direitosMinistro que votou pelo fim da anistia para crimes na ditadura diz que Brasil não deve ignorar jurisdição internacional sobre o tema FLÁVIA MARREIRODA REDAÇÃO
Frases agudas e sarcásticas pontuam os discursos de Eugenio Raúl Zaffaroni, 68, ministro da Suprema Corte da Argentina e símbolo do tribunal que derrubou em 2005 as "leis do perdão" que impediam processos contra a maioria dos responsáveis por crimes contra os direitos humanos na ditadura. "Nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional", diz, sobre a discussão no Brasil a respeito da imprescritibilidade do crime de tortura. Militante contra a "pretensão de assepsia ideológica" no direito penal, exibiu por que razão é referência entre criminalistas progressistas da América Latina. Atacou defensores da redução da maioridade penal e disse que policiais têm seus direitos violados tanto quanto vítimas e criminosos. Defendeu que os governos esquerdistas de Bolívia e Equador, que preparam novas Constituições, são parte da "segunda onda de alargamento da cidadania" na região. A primeira veio com o varguismo e o peronismo, aponta. Zaffaroni falou à Folha em São Paulo, onde esteve na semana passada para falar em um seminário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
FOLHA - No Brasil, setores do governo defendem o fim da lei anistia. Mas críticos dizem que revogá-la é decisão política revanchista. EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI - As decisões são jurídicas. Se só se trata de julgar fatos políticos, não tem sentido. Mas, se houve crimes de lesa humanidade, nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional. Nossos países assinaram tratados internacionais do tema.
FOLHA - Bolívia e Equador preparam Constituições muito mais detalhistas que as atuais, com diretrizes de política econômica, por exemplo. São esses textos um acertado produto de seu tempo ou Cartas excessivamente políticas fadadas a não ter aplicabilidade? ZAFFARONI - Toda lei é fruto de um momento político, é resultado de uma experiência. A experiência, neste caso, é a maneira como foram eludidas as garantias estabelecidas pelas Constituições anteriores. Nós na América Latina temos uma característica que não podemos negar. Somos povos não muito acostumados ao respeito às instituições. Por que motivo? Porque, à diferença dos países europeus, as nossas leis muitas vezes reconheceram direitos inscritos em leis que não resultaram de lutas. Pegamos a Constituição dos EUA, arrumamos alguma coisa e pronto... Quando fizemos nossas Cartas de Repúblicas, tínhamos uma realidade quase feudal. Depois, a nossa cidadania foi se alargando no curso do século 20 por meio dos populismos. E o que são? Movimentos populares, às vezes contraditórios, às vezes autoritários, muitas vezes personalistas, mas que alargaram a cidadania. Perón na Argentina, Vargas no Brasil. As instituições não nascem com a lógica que os juristas queriam. Nascem como a política quer. Estamos numa segunda onda de alargamento da cidadania depois de sofrer as conseqüências de uma onda contrária, assassina, genocida nos anos 90. É o momento de pensar como institucionalizar alguns pontos, mas com a consciência de que a desconfiança de nossos povos com as Constituições não é gratuita. Quanto à questão de política econômica, ela deve ser orientada constitucionalmente, para evitar o que sofremos em vários países na década passada.
FOLHA - Com a criminalidade como um problema grave na região, cresce o clamor por mais punição, pela diminuição da maioridade penal. O sr. é crítico das duas coisas... ZAFFARONI - A vitimização tem uma distribuição tão injusta como a criminalização. Na medida em que eu posso pagar segurança pessoal, faço. Então vamos deteriorando as polícias, e o mau serviço fica para os mais pobres. Quando fazemos pesquisas, vemos que, quanto mais descemos na escala social, mais repressivo fica o discurso, porque têm a experiência da violência. Vitimizados e criminalizados são pobres, além da polícia. Os policiais vêm dos extratos baixos, vão para a rua ganhando pouco, numa estrutura militarizada sem direito a sindicalização. São alvos ambulantes. Seus direitos são tão violados quanto os dois primeiros grupos. A idéia é: matem-se entre si. O controle social age aí. A quem interessa controlar mais? Aos mais jovens. Criminalidade não é coisa de velhos. O Estado mata os velhos de outro jeito, tira a Previdência social... Querem criminalizar toda a adolescência. É verdade que temos adolescentes assassinos, mas a maioria é de autores de furtos e roubos, crimes contra a propriedade. Misturem meninos e adultos nas cadeias e teremos mais meninos violados. Causará surpresa se se tornam assassinos? Não sei se não me tornaria assassino. Depois, há uma grande incoerência. Se quisermos que uma pessoa seja responsável criminalmente aos 14 anos, por que não civilmente? Para assinar um contrato? Ou votar? Ou escolher a opção sexual. Não, nada disso. Só penalmente.
FOLHA - Como teórico da seletividade do sistema penal, como vê o debate no Brasil gerado pelo uso de algemas em banqueiros e políticos? ZAFFARONI - As garantias sempre avançam porque o poder punitivo atinge um VIP. Essas prisões servem para dizer: olha, essa sociedade é igualitária. Embora o VIP que cai no sistema penal seja aquele que perdeu a luta de poder contra outro VIP. O poder punitivo não dá direito a expor ninguém com algemas, mas neste caso não pode haver VIPs e não VIPs.
"Latinos vivem segunda onda cidadã"
Para Zaffaroni, da Suprema Corte argentina, governos "populistas" aumentam parcela a ter direitosMinistro que votou pelo fim da anistia para crimes na ditadura diz que Brasil não deve ignorar jurisdição internacional sobre o tema FLÁVIA MARREIRODA REDAÇÃO
Frases agudas e sarcásticas pontuam os discursos de Eugenio Raúl Zaffaroni, 68, ministro da Suprema Corte da Argentina e símbolo do tribunal que derrubou em 2005 as "leis do perdão" que impediam processos contra a maioria dos responsáveis por crimes contra os direitos humanos na ditadura. "Nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional", diz, sobre a discussão no Brasil a respeito da imprescritibilidade do crime de tortura. Militante contra a "pretensão de assepsia ideológica" no direito penal, exibiu por que razão é referência entre criminalistas progressistas da América Latina. Atacou defensores da redução da maioridade penal e disse que policiais têm seus direitos violados tanto quanto vítimas e criminosos. Defendeu que os governos esquerdistas de Bolívia e Equador, que preparam novas Constituições, são parte da "segunda onda de alargamento da cidadania" na região. A primeira veio com o varguismo e o peronismo, aponta. Zaffaroni falou à Folha em São Paulo, onde esteve na semana passada para falar em um seminário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
FOLHA - No Brasil, setores do governo defendem o fim da lei anistia. Mas críticos dizem que revogá-la é decisão política revanchista. EUGÊNIO RAÚL ZAFFARONI - As decisões são jurídicas. Se só se trata de julgar fatos políticos, não tem sentido. Mas, se houve crimes de lesa humanidade, nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional. Nossos países assinaram tratados internacionais do tema.
FOLHA - Bolívia e Equador preparam Constituições muito mais detalhistas que as atuais, com diretrizes de política econômica, por exemplo. São esses textos um acertado produto de seu tempo ou Cartas excessivamente políticas fadadas a não ter aplicabilidade? ZAFFARONI - Toda lei é fruto de um momento político, é resultado de uma experiência. A experiência, neste caso, é a maneira como foram eludidas as garantias estabelecidas pelas Constituições anteriores. Nós na América Latina temos uma característica que não podemos negar. Somos povos não muito acostumados ao respeito às instituições. Por que motivo? Porque, à diferença dos países europeus, as nossas leis muitas vezes reconheceram direitos inscritos em leis que não resultaram de lutas. Pegamos a Constituição dos EUA, arrumamos alguma coisa e pronto... Quando fizemos nossas Cartas de Repúblicas, tínhamos uma realidade quase feudal. Depois, a nossa cidadania foi se alargando no curso do século 20 por meio dos populismos. E o que são? Movimentos populares, às vezes contraditórios, às vezes autoritários, muitas vezes personalistas, mas que alargaram a cidadania. Perón na Argentina, Vargas no Brasil. As instituições não nascem com a lógica que os juristas queriam. Nascem como a política quer. Estamos numa segunda onda de alargamento da cidadania depois de sofrer as conseqüências de uma onda contrária, assassina, genocida nos anos 90. É o momento de pensar como institucionalizar alguns pontos, mas com a consciência de que a desconfiança de nossos povos com as Constituições não é gratuita. Quanto à questão de política econômica, ela deve ser orientada constitucionalmente, para evitar o que sofremos em vários países na década passada.
FOLHA - Com a criminalidade como um problema grave na região, cresce o clamor por mais punição, pela diminuição da maioridade penal. O sr. é crítico das duas coisas... ZAFFARONI - A vitimização tem uma distribuição tão injusta como a criminalização. Na medida em que eu posso pagar segurança pessoal, faço. Então vamos deteriorando as polícias, e o mau serviço fica para os mais pobres. Quando fazemos pesquisas, vemos que, quanto mais descemos na escala social, mais repressivo fica o discurso, porque têm a experiência da violência. Vitimizados e criminalizados são pobres, além da polícia. Os policiais vêm dos extratos baixos, vão para a rua ganhando pouco, numa estrutura militarizada sem direito a sindicalização. São alvos ambulantes. Seus direitos são tão violados quanto os dois primeiros grupos. A idéia é: matem-se entre si. O controle social age aí. A quem interessa controlar mais? Aos mais jovens. Criminalidade não é coisa de velhos. O Estado mata os velhos de outro jeito, tira a Previdência social... Querem criminalizar toda a adolescência. É verdade que temos adolescentes assassinos, mas a maioria é de autores de furtos e roubos, crimes contra a propriedade. Misturem meninos e adultos nas cadeias e teremos mais meninos violados. Causará surpresa se se tornam assassinos? Não sei se não me tornaria assassino. Depois, há uma grande incoerência. Se quisermos que uma pessoa seja responsável criminalmente aos 14 anos, por que não civilmente? Para assinar um contrato? Ou votar? Ou escolher a opção sexual. Não, nada disso. Só penalmente.
FOLHA - Como teórico da seletividade do sistema penal, como vê o debate no Brasil gerado pelo uso de algemas em banqueiros e políticos? ZAFFARONI - As garantias sempre avançam porque o poder punitivo atinge um VIP. Essas prisões servem para dizer: olha, essa sociedade é igualitária. Embora o VIP que cai no sistema penal seja aquele que perdeu a luta de poder contra outro VIP. O poder punitivo não dá direito a expor ninguém com algemas, mas neste caso não pode haver VIPs e não VIPs.
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