domingo, 14 de setembro de 2008

A sociedade de vigilância

Eis a sociedade de vigilância no caderno Mais na Folha de São Paulo de 14 de setembro de 2008
Videocacetadas
BIOMETRIA, CARTÕES DE COMPRAS, CÂMARAS DE VIGILÂNCIA E INTERNET MONITORAM INDIVÍDUOS E EXTINGUEM IDÉIA DE ANONIMATO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A vigilância hoje abrange quase todas as nossas interações com o mundo e todos os nossos sentidos Desaparecer ainda é possível, mas é preciso saber o que isso representa em termos de esforço Quando recorremos ao Yahoo!, revelamos 811 informações pessoais ao mesmo tempo
Satélites de observação, câmeras de vigilância, passaportes biométricos, arquivos administrativos, policiais ou comerciais, chips movidos a freqüência de rádio, GPS, celulares, internet: o cidadão moderno vive no centro de uma rede de tecnologias cada vez mais aperfeiçoadas e cada vez mais indiscretas. Cada uma dessas ferramentas, criadas supostamente para nos oferecer segurança e conforto, nos classifica ou até mesmo nos observa. Ao mesmo tempo cúmplices e inconscientes, somos enredados em uma sociedade de vigilância. Será que ainda é possível escapar desses dispositivos múltiplos que nos cercam por todos os lados? Quem tenta responder a essa pergunta é Thierry Rousselin, consultor de observação espacial e ex-diretor do programa de armamentos da Direção Geral de Armamentos da França, que, com François de Blomac (especialista em novas tecnologias de informação), lança "Sous Surveillance" [Sob Vigilância, ed. Les Carnets de l'Info, 252 págs., 16, R$ 41]. O livro traz uma visão geral dessas tecnologias, procurando diferenciar entre os temores irracionais e os riscos reais de desvios.

PERGUNTA - Quais são hoje os grandes domínios da vigilância tecnológica? THIERRY ROUSSELIN - Podemos traçar círculos concêntricos. O primeiro são os "pedaços" de nós mesmos -tudo o que diz respeito à biometria. Vamos progressivamente entregando um certo número de elementos que nos pertencem, que nos identificam. Essa história começou com nossas impressões digitais. Hoje, chegou ao DNA, à íris, à palma da mão; dentro em breve, será nosso modo de andar ou nossos tiques. O segundo círculo é aquele formado por todos os captadores que nos cercam -aqueles que nos observam, como videovigilância, webcams, aeronaves de espionagem não tripuladas, aviões, helicópteros, satélites. Há também a escuta, em todos os sentidos do termo. Não se deve esquecer nunca que o primeiro método de escuta é uma pessoa ao nosso lado. Também podem ser usados nossos próprios objetos, especialmente o telefone. Comprei um GPS ou um telefone celular. Será que é possível me seguir graças a esses aparelhos? Será que os vários cartões -de crédito, de fidelidade, de assinante- que carrego na carteira revelam coisas a meu respeito, em tempo real, a cada vez que os utilizo? Os formulários que preenchi nos últimos 30 anos traçam uma imagem de mim que é mais precisa que minhas próprias recordações? O último ponto diz respeito ao computador, e já há alguns anos se vêem policiais levando o computador de suspeitos. Depois, há a internet. Será que minha sede de fazer amigos, de me fazer conhecer, não me leva a revelar coisas demais, que algum dia poderão ser usadas contra mim? Logo, os domínios de vigilância hoje abrangem quase todas as nossas interações com o mundo externo e praticamente todos os nossos sentidos. Os receios são mais fortes na medida em que percebermos que teríamos muita dificuldade em viver sem muitas dessas tecnologias. Essa situação é bastante representativa de nossa ambivalência diante dessas questões.
PERGUNTA - O interesse financeiro pode também exercer um papel? ROUSSELIN - Evidentemente! Se aceito um cartão de fidelidade, receberei presentes em troca de alguns dados pessoais. No Reino Unido, várias empresas oferecem seguro mais barato a motoristas que se comprometam a não usar seus carros em determinados horários considerados "de risco". Para verificar se o fazem, elas têm o direito de acessar todas as informações sobre deslocamento contidas no aparato eletrônico do veículo. Os clientes trocam uma economia substancial pela perda de confidencialidade quanto a seu ir e vir.
PERGUNTA - Nas cidades do Reino Unido, os sistemas de vigilância já utilizam 25 milhões de câmeras em lugares públicos. A que se deve esse interesse? ROUSSELIN - É algo muito irracional, pois não existe trabalho de pesquisa que confirme a eficácia das câmeras. Por trás dos sistemas tecnológicos de vigilância, o que há é uma incapacidade do governo de oferecer respostas reais aos problemas colocados. Instalam-se câmeras porque são muito visíveis, e isso custará menos que contratar pessoas e realizar um verdadeiro trabalho de campo. No Reino Unido, os resultados dos programas de videovigilância são muito incertos. O efeito é fraco em termos de prevenção e dissuasão, sobretudo no tocante aos ataques a pessoas (brigas, estupros etc.), freqüentemente cometidos por pessoas de comportamento impulsivo, que não dão a mínima ao fato de serem filmadas, ainda que estejam cientes disso. Com os terroristas acontece o mesmo: os "loucos de Deus" ou de uma causa qualquer ficariam até satisfeitos em poder passar para a posteridade dessa maneira. Quanto aos pequenos delitos, como os cometidos por batedores de carteiras no metrô, são rápidos demais para serem registrados, e seus autores os cometem em lugares freqüentemente extensos, com múltiplas saídas. A videovigilância é uma ajuda preciosa principalmente para a solução de investigações, a posteriori.
PERGUNTA - Ainda é possível "desaparecer" em nossas sociedades? Isto é, ainda é possível escapar do controle da tecnologia? ROUSSELIN - Desaparecer ainda é possível, mas é preciso saber o que isso representa em termos de esforço, sobretudo se você ainda vive na legalidade, sem falsa identidade ou cirurgia plástica. A opção "ilha deserta" aparentemente é a mais simples de concretizar. Você vai viver em algum lugar na zona rural onde possa praticar um modo de vida que minimize as trocas comerciais -sem computador nem telefone celular. Você fecha sua conta bancária e paga tudo em dinheiro vivo. Será preciso não sair do país, especialmente não ir aos EUA, para evitar a necessidade de obter documentos que usem a biometria. É claro que será impossível escolarizar seus filhos no sistema de ensino oficial. E a maior limitação será relativa à saúde pública. O problema é que esse afastamento da sociedade vai parecer sobretudo uma viagem ao passado, um retorno às formas antigas de controle social. Em seu pequeno vilarejo perdido, não haverá quase ninguém, mas todo mundo num raio de dez quilômetros saberá tudo sobre seus hábitos cotidianos, suas particularidades. Os séculos anteriores à tecnologia moderna estavam longe de serem épocas sem vigilância. Para evitar isso, você talvez prefira mergulhar fundo na selva urbana. As multidões das cidades ainda podem garantir o anonimato. Nesse caso, porém, a margem entre a saída do sistema e a exclusão é perigosamente estreita. Você passará despercebido, mas seu modo de vida será cada vez mais próximo ao de um sem-teto.
PERGUNTA - Sem ir tão longe assim, ainda é possível pelo menos controlar as informações a nosso respeito que permitimos que sejam registradas? ROUSSELIN - Se você decide permanecer na sociedade, as informações a seu respeito vão necessariamente circular. Você paga impostos ao fisco, que, conseqüentemente, sabe coisas a seu respeito, assim como sabe seu empregador etc. Mas você pode evitar dar informações a seu respeito que ninguém o obrigue a revelar.Você pode evitar preencher todos os questionários aos quais geralmente não presta atenção. Podemos sobreviver muito bem sem cartões de fidelidade e sem precisarmos informar nosso estado civil para comprar uma torradeira.Alguns desses arquivos circulam livremente se você esquece de fazer um xis no quadradinho na parte inferior do documento, proibindo seu interlocutor de ceder seus dados a seus "parceiros".Portanto, quando preenche questionários não obrigatórios, não é de maneira alguma forçado a dar informações reais. Nada o impede de "enganar-se" sobre seu próprio endereço ou número de telefone.
PERGUNTA - Os telefones celulares são cada vez mais vistos como potenciais delatores. Ainda é possível limitar esse risco? ROUSSELIN - A partir do momento em que seu aparelho está ligado, sua operadora pode de fato colocar em andamento toda uma série de mecanismos de espionagem, atendendo ao pedido de algum "vigilante". Existem procedimentos diferentes que permitem localizar alguém com margem de erro de mais ou menos 50 metros, fazendo uma triangulação com as três antenas de telefonia celular mais próximas de seu telefone. Os telefones de nova geração, os "top de linha" atuais, contêm um chip GPS e serão localizáveis com muito mais facilidade e precisão. Para a escuta, não há apenas a possibilidade de interceptar um telefonema, algo que já se tornou muito simples. Uma operadora também tem a possibilidade de fazer um celular funcionar como microfone de ambiente. Juridicamente, a polícia pode, sob certas condições, pedir que a operadora transforme o telefone em microfone, ouvindo tudo o que é dito em volta da pessoa que carrega o aparelho. Em todos esses casos, porém, tanto para a localização como para a escuta, é preciso que o telefone esteja ligado. Portanto, se você quiser evitar ser permanentemente localizável, faça como fazem policiais ou criminosos: desligue seu celular quando não o estiver usando.
PERGUNTA - A maior porta para a invasão de nossa vida privada ainda é o computador ligado à internet? ROUSSELIN - Com certeza. A maioria dos computadores nos é entregue com sistemas operacionais que dão direito legal à Microsoft ou à Apple de colocar em nossas casas espiões que supostamente estão ali por boas razões. A partir do momento em que somos conectados à rede, independentemente de qualquer decisão autônoma de nossa parte, um pequeno tráfico começa a se desenrolar, nos propondo atualizações, pedindo para não usarmos edições piratas e coletando informações sobre nossa estação de trabalho. Recentemente, o Estado alemão da Renânia do Norte-Vestfália votou um projeto de lei autorizando a polícia a colocar vírus espiões nos computadores de suspeitos. O problema se agrava mais a partir do momento em que se navega na web. A cada vez que visitamos um site, este registra o número de páginas vistas, o tempo de consulta em cada uma, os links seguidos, o percurso integral do cliente antes da transação, assim como os sites consultados antes e depois. Imagine os mesmos métodos aplicados à revista que seus leitores têm nas mãos: será que os leitores concordariam que você conhecesse sistematicamente o tipo de poltrona em que estão sentados, a espessura de seus óculos, suas horas de leitura, o jornal que leram antes dela? Certamente não. No entanto é isso o que se passa, à nossa revelia, cada vez que navegamos. O "New York Times" publicou no final do ano passado uma pesquisa constatando que, quando recorremos ao Yahoo!, revelamos 811 informações pessoais simultaneamente. O computador é uma verdadeira janela sobre o mundo -uma janela sem cortinas. Desde já, se quero ter certeza de passar despercebido, não devo ir à internet. Mas isso equivale, cada vez mais, a dizer "estou fora do jogo social".
PERGUNTA - Isso será possível dentro de 15 ou 20 anos, quando tudo tiver se desmaterializado, especialmente as formalidades administrativas? Neste novo "jogo social", por que o sr. é tão crítico com as redes sociais e a prática dos blogs? ROUSSELIN - Porque, para mim, o risco maior está aí, especialmente no que diz respeito aos adolescentes. Milhões deles mantêm blogs ou participam de fóruns em que deixam uma quantidade enorme de informações, sem dar-se conta das conseqüências. Já vimos diversos casos: jovens que, em seus blogs, fazem críticas massacrantes às empresas em que fizeram estágio e que, dois anos mais tarde, se surpreendem ao descobrir que os recrutadores lêem esse tipo de coisa. Fazer besteiras e querer se exibir é algo próprio da adolescência. O problema é que os adolescentes difundem suas besteiras em sistemas tecnológicos privados que vão guardar sua memória. Cerca de 90% das pessoas que se cadastram numa rede social não estão mais nela dois meses mais tarde. Fazem todo o processo de admissão, mas acabam se cansando. Deixam para trás uma quantidade enorme de informação pessoal. Acabo de fazer um experimento revelador sobre esse ponto, no contexto profissional. Eu estava num centro de informações militares. Para uma auditoria, estava visitando as unidades de produção. Quando redigi meu relatório, me dei conta de que não tinha anotado o nome do responsável. Recorri a uma ferramenta que me permite procurar quem está em qual rede social. Digitei as informações de que dispunha (seu primeiro nome, sua nacionalidade e seu empregador atual). Encontrei o sujeito na [rede de relacionamento] LinkedIn. Estavam no site sua biografia, que ele próprio digitara, e todos os cargos e locais nos quais já trabalhara como militar. Fiquei pasmo. Assim, o Google e o Yahoo! tornaram-se os maiores detentores de informações sobre nossos comportamentos e nossos hábitos de consumo. São empresas que, dez ou 15 anos atrás, não existiam. Quem pode prever o que será feito delas daqui a 20 anos? Acabamos de ver que ainda restam algumas margens de manobra para quem deseja escapar da vigilância tecnológica. Mas como será isso quando todos esses sistemas estiverem interligados, quando for instaurada a "convergência" de arquivos, computadores, meios de observação, coisa que alguns autores vêem como inevitável antes mesmo de 2050? Não sei se podemos ser tão categóricos assim quanto ao surgimento de tal metassistema. Existem diversos fatores difíceis de medir que podem atrasar essa evolução ou até mesmo impedi-la, bloqueando o sistema. O vigilante é por definição um paranóico. Conseqüentemente, existem muitos inimigos entre os que supostamente estão a seu lado. Antes de chegar a um sistema que poderia dispensar os humanos, ainda haverá pessoas que brigam, serviços que não se comunicam, chefes que escondem informações uns dos outros. O beabá da administração há 5.000 anos consiste, entre os diferentes serviços de inteligência, em esconder informações uns dos outros. Em todos os assuntos ligados ao terrorismo, percebe-se que a lógica é o FBI roubar informações da CIA e que esta as rouba da NSA etc. É também por essa razão que o mulá Omar [líder do Taleban] e Osama bin Laden ainda estão livres. É isso que às vezes acho excessivo nos panfletos sobre a vigilância: sempre há um exagero, a tendência a pensar que aquele que vigia não erra, que não se afasta no meio do vídeo para tomar um café etc. Como se não fosse humano. Na realidade, ocorrem muitas imperfeições que prejudicam o potencial de eficácia da vigilância. O outro parâmetro a levar em conta é que cada uma dessas tecnologias cria seus próprios contrapoderes. Para a observação (videovigilância ou satélites), percebe-se que a grande dificuldade está no excesso de imagens, comparado ao número de analistas existentes e às capacidades técnicas de análise disponíveis. Dezenas de milhares de amadores que decodificam imagens se tornam tão poderosos quanto os poderes constituídos, que dispõem de meios limitados. Isso foi constatado com o furacão Katrina [que atingiu os EUA em 2005], quando, olhando as imagens disponíveis, os internautas chamaram a atenção para a impotência das autoridades americanas. Os cidadãos também podem voltar certos meios contra seus criadores, vigiando os vigiadores. Um dos aspectos de nossa pesquisa que nos deixou otimistas é a efervescência criadora que está crescendo em torno desse assunto. Diversas formas de resistência, artísticas ou associativas, estão sendo criadas. Podem retardar ou impedir o pior, sensibilizando o grande público.
PERGUNTA - Em lugar de passar despercebida, a solução seria continuar ativo para subverter o sistema? ROUSSELIN - Sim, ainda restam muitas áreas de nossa vida pessoal em que nem tudo está decidido. E cabe a cada um de nós fazer com que a vigilância não se amplie. Estamos assistindo ao surgimento de ativistas, vemos artistas, pessoas que têm comportamentos sadios. Mas então topamos com nosso próprio comodismo, nossos pequenos interesses momentâneos. É contra isso que é preciso lutar. Contra nós mesmos? Sim! Porque gostamos do que é moderno e simples. A força do Google ou da Apple é a dessas interfaces incrivelmente fáceis e intuitivas, que nos seduzem. Todos nós temos amigos que nos fazem a demonstração de seu mais novo objeto "super-high-tech", que se gabam interminavelmente das qualidades de seu novo telefone etc. O que fazem não é nada mais, nada menos que promover o novo instrumento que os vigia. E sentem muito orgulho disso. Somos todos um pouco assim. Isso mostra que somos modernos. Em alguns momentos é preciso mostrar-se um pouco antiquado e aceitar que a vida nos seja um pouco menos simplificada.

Nenhum comentário: