DISPUTA TERRITORIAL NO PACÍFICO
Corte de Haia concede ao Peru direitos marítimos acima do limite das 80 milhas
A sentença dos juízes conserva parte da atual fronteira latitudinal no Pacífico, para depois seguir para o sul em sentido perpendicular à costa
O Peru pediu em 2008 uma linha equidistante da costa, e o Chile defendia o paralelo usado desde a década de 1950
O Peru obteve uma vitória parcial em seu empenho por traçar uma nova fronteira marítima com o Chile no oceano Pacífico. Em uma decisão que evidencia a complexidade do assunto, a Corte Internacional de Justiça da ONU (CIJ) ampliou a soberania do Peru, parte reclamante, mas sem privar totalmente o Chile da área marítima em disputa. Os juízes conservaram a atual divisória, em sentido latitudinal, só até 80 milhas náuticas (ponto A). A partir daí, a linha se torna perpendicular à costa, até chegar a um ponto B no meio da água. O trecho final até o limite das 200 milhas será uma reta longitudinal para o sul, até um ponto C. A sentença não detalha as coordenadas precisas dessa redefinição. “A Corte espera que elas sejam determinadas [pelas capitais em litígio] com espírito e boa vontade vicinal”, disse Peter Tomka, seu presidente.
O novo traçado sai da fronteira terrestre entre Lima e Santiago estabelecida pelo chamado Marco 1, situado 182,3 quilômetros terra adentro e reivindicado pelo Chile. O Peru preferia que a contagem fosse a partir do chamado Ponto Concórdia, já na costa. Embora o Governo peruano tenha ganhado um pedaço adicional de mar, os especialistas em pesca chilenos asseguram que as 80 milhas náuticas conservadas pelo Chile são essenciais para a captura da anchoveta. Ambos os países lideram a exportação de farinha de peixe obtida dessa variedade de anchova, que é utilizada como fertilizante e ração animal no mundo todo. Os pescadores de Arica (Chile) e Tacna (Peru), na costa do Pacífico, aguardavam as palavras dos juízes com uma expectativa natural para quem veria reduzidas, ou ampliadas, as rotas essenciais à sua subsistência. Aliás, os multimilionários dividendos gerados pela pesca eram a principal razão subjacente para a disputa. Se conseguisse que a fronteira toda fosse perpendicular à costa, o Peru iria se apropriar de aproximadamente 38.000 quilômetros quadrados de águas ricas em anchovetas.
O meio-termo judicial mantém o espírito equânime buscado pela CIJ para a resolução de conflitos territoriais desde a fundação do tribunal, em 1945. Entretanto, neste caso era muito difícil contentar a todos. Prova disso são as reações das delegações enviadas a Haia (Holanda), onde fica a sede do Tribunal. Para a peruana, embora só tenham sido reconhecidas 60% de suas reivindicações, “a vitória é importante”. A avaliação completa do fato ficou nas mãos do Governo do presidente Ollanta Humala. Já os representantes chilenos estavam menos satisfeitos. “Lamentamos profundamente uma decisão que, para nós, carece de fundamento. Será preciso analisar o seu alcance”, disse Alberto van Klaveren, representante diplomático chileno perante o Tribunal. Santiago temia a presença de pesqueiros peruanos na zona disputada caso os rivais tivesse obtido uma vitória completa no litígio.
Contudo, a sentença pode marcar um ponto de inflexão nas relações bilaterais entre ambos. Em sua queixa de 2008, Lima sustentava que a divisão marítima não estava fixada, pois os tratados assinados com o Chile em 1952 e 1954 (que Santiago considera vinculantes) seriam apenas declarações políticas destinadas a regulamentar a pesca artesanal. Segundo os juízes, “a declaração de 1952 não faz referência expressa à delimitação, e falta a informação necessária para que possa se falar em um acordo que fixe as fronteiras marítimas. Mas, em seu Capítulo 4, há de fato elementos que permitem a delimitação do mar”, disse o presidente Tomka durante a leitura da decisão, que se prolongou por duas horas.
Proferida em plena fase de transição dos poderes presidenciais no Chile, a decisão da CIJ significa um trago amargo para Michelle Bachelet, nova chefa de Estado a partir de março. Seu antecessor, Sebastián Piñera, protagonizou o período de incerteza do caso. Caberá a ela administrar “com sentido de Estado”, conforme já disse, a aplicação da decisão, cujo cumprimento é de caráter obrigatório. As duas capitais prometeram respeitar o processo, embora os prazos de aplicação variem. A Corte confiou em sua boa vontade e, embora sempre tenha mantido as repercussões políticas longe do seu trabalho, a nova fronteira marítima poderá facilitar uma forma diferente de cooperação.
As duas partes envolvidas sabem bem que a rivalidade chileno-peruana remonta à Guerra do Pacífico (1879-1883), perdida por Lima e pela Bolívia, sua aliada. A redução de território peruano posterior ao conflito continua dolorosa para Lima, mas nos últimos anos houve gestos de aproximação mútua. Embora seja uma harmonia nada fácil de conseguir, as populações de ambos os lados defendem ou reivindicam com ardor os mesmos pedaços de terra. A sentença exigirá um complicado trâmite de modificações nas cartas náuticas e nas leis, mas talvez reafirme o trabalho da Aliança do Pacífico, o acordo de 2011 que une Peru, Chile, Colômbia e México para “construir uma área de integração profunda e impulsionar o crescimento, desenvolvimento e competitividade das partes”. A Bolívia, que também recorreu à Corte para tentar recuperar a saída ao mar perdida para o Chile na guerra do século XIX, agora aguarda a sua vez.
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