Folha de São Paulo, domingo, 07 de março de 2010
Conto das arábias
Bairro na periferia de Paris, Belleville revela que a imagem da Europa dominada por muçulmanos é um grande mito
SIMON KUPER
Qualquer pessoa interessada em entender a situação dos muçulmanos na Europa deveria fazer uma visita a Belleville. Esse bairro parisiense decadente a leste do centro da cidade é repleto de restaurantes que servem cuscuz, livrarias islâmicas e cidadãos franceses de origem árabe.
Cerca de 1,5 milhão de muçulmanos nominais [identificados com o grupo étnico, não necessariamente com a religião] vivem na região de Paris -mais do que em qualquer outra cidade da Europa. Mas as ruas estreitas de Belleville também são repletas de pessoas de origem chinesa, judaica, africana subsaariana e francesa de classe média. Uma classe de crianças sai de um jardim de infância; criancinhas de quatro cores de pele diferentes se dão as mãos, enquanto suas professoras dão ordens em francês.
É claro que nem toda a vida muçulmana na França ou na Europa se assemelha a Belleville. Nos guetos étnicos da periferia de Paris, muçulmanos nominais podem chegar à idade adulta sem nunca entrar na casa de um francês branco. Mas Belleville é importante. Um cenário comumente traçado para o futuro da Europa é o da "Eurábia", no qual uma maioria religiosa muçulmana comandaria o continente.
Mas a maioria dos cientistas políticos e demógrafos franceses acha mais provável um cenário de "mistura", à moda de Belleville.
Tá dominado?
O cenário da "Eurábia" vem tendo mais publicidade, em especial nos EUA. Bernard Lewis, célebre estudioso do islã, citou o número de imigrantes de países muçulmanos e seus índices de natalidade relativamente altos para concluir: "A julgar pelas tendências atuais, a Europa terá maiorias muçulmanas na população no mais tardar até o final do século 21".
O livro "Reflections on the Revolution in Europe - Immigration, Islam and the West" [Reflexões Sobre a Revolução na Europa - Imigração, Islã e o Ocidente], do comentarista político do "Financial Times" Christopher Caldwell, é a apresentação mais nuançada e sofisticada feita até agora da tese da "Eurábia".
Os muçulmanos chegaram à França em grande número na década de 1960, vindos principalmente do norte da África. O país tem hoje 5 milhões de habitantes de origem muçulmana -ou 8% da população.
Contudo há duas razões principais pelas quais o cenário de Belleville parece ser mais provável que o da "Eurábia". A primeira é de natureza populacional: nenhum demógrafo sério prevê que os muçulmanos virem maioria em qualquer país da Europa ocidental. A segunda diz respeito a atitudes: apenas uma minoria minúscula de muçulmanos parece desejar estabelecer um califado medieval na Europa.
Ouvidos em pesquisas, a maioria dos muçulmanos da França diz que se sente francesa. Muitos deles já não observam a religião islâmica. Embora aqui e ali tenham tornado a França um pouco mais norte-africana ou islâmica, a influência parece ser em sentido inverso: os imigrantes muçulmanos estão sendo contagiados pelo espírito francês. Para começar, a demografia.
A ideia de que os muçulmanos estariam produzindo bebês em escala industrial para tomar conta da Europa é um clichê desatualizado.
Os autores que defendem a tese da "Eurábia" se preocupam com o declínio da fertilidade europeia, mas o fato é que o declínio da fertilidade muçulmana é muito mais acentuado. Em 1970, as mulheres na Tunísia e na Argélia [no norte da África] tinham a média de sete filhos cada. Hoje, segundo o "World Factbook" da CIA, elas têm, em média, menos de 1,8 filho. O índice de natalidade francês é quase dois.
Os demógrafos parisienses Youssef Courbage e Emmanuel Todd mostraram em seu livro de 2007 "Le Rendez-Vous des Civilisations" [O Encontro das Civilizações] que, depois que a maioria dos homens em um país é alfabetizada, a maioria das mulheres também se alfabetiza, e, em seguida, a fertilidade diminui.
Essa transição demográfica já aconteceu na maioria dos países muçulmanos. Pela última contagem, as argelinas residentes na França tinham 2,57 filhos, ou seja, apenas um pouco acima do índice francês. Além disso, a taxa de fertilidade das mulheres norte-africanas na França vem caindo desde 1981.
Poucos minaretes
Uma imagem constantemente usada na literatura sobre a "Eurábia" é a do chamado do muezim para as orações ecoando de telhados europeus. Não se ouve muito isso em Belleville. Como em outras partes do país, parece que faltam mesquitas para os muçulmanos do bairro. Menos de 5% dos muçulmanos franceses frequentam a mesquita todas as sextas-feiras, escrevem Jonathan Laurence e Justin Vaisse em seu estudo sobre a integração muçulmana na França, "Integrating Islam" [Integrando o Islã].
Farhad Khosrokhavar, diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, estima que entre 15% e 20% dos muçulmanos franceses nem sequer praticam o islã. Jejuar durante o Ramadã é considerado um dever básico da religião, mas apenas cerca de 70% dos muçulmanos franceses afirmam fazê-lo. Em suma, o islã europeu tem muitos dos mesmos problemas que o cristianismo europeu.
É verdade que a mistura que se vê em Belleville não conta toda a história do islã na França. Pegue o trem para a cidade pobre de Dreux, a uma hora a oeste de Paris, e você verá algo que, à primeira vista, se assemelha mais à "Eurábia".
Em alguns lugares, Dreux lembra uma cidade árabe na chuva. Cerca de metade de seus 32 mil habitantes é de origem estrangeira.
A maioria não escolheu viver num gueto étnico. Mas, quando as fábricas locais começaram a fechar, os franceses brancos foram os que tiveram mais facilidade em encontrar empregos em outros lugares.
Franceses de origem árabe com frequência sofrem com o desemprego, em parte porque têm pouca instrução, em parte pela discriminação.
Em 2004, o sociólogo Jean-François Amadieu, da Sorbonne, enviou 500 currículos respondendo a anúncios buscando profissionais de vendas na região de Paris. Os currículos eram idênticos, exceto por uma coisa: alguns dos candidatos tinham nomes norte-africanos e outros tinham nomes franceses tradicionais. Os nomes masculinos franceses brancos receberam cinco vezes mais ofertas de emprego do que os norte-africanos.
Quando Amadieu repetiu o experimento em 2006, a razão foi de 20 para um. Mas mesmo Dreux não é a "Eurábia". A pobreza, e não a religião, é a preocupação principal dos muçulmanos nominais franceses, como as pesquisas mostram, de modo consistente.
Mais dinheiro que fé
O que os diferencia da população francesa em geral não é tanto sua religião quanto suas circunstâncias sociais e econômicas: vivem em conjuntos habitacionais isolados e pobres, com altos índices de criminalidade. Estudiosos concordam que os tumultos na periferia étnica de Paris em 2005 não foram uma "intifada europeia" de muçulmanos fundamentalistas atacando o Ocidente.
Foram, sobretudo, uma espécie de levante marxista de franceses pobres que, dentro da tradição revolucionária anárquica do país, exigiam o status socioeconômico que pensavam que deveria acompanhar sua condição de franceses.
A mulher
Se traçássemos um perfil da mulher muçulmana francesa média de hoje, o resultado seria algo mais ou menos assim: ela tem dois ou três filhos, que frequentam escolas não religiosas. Ela é relativamente pobre, mas, de modo geral, está satisfeita, embora se sinta indignada com a discriminação. Sente-se mais religiosa do que há uma década, porém não usa lenço na cabeça -mas tem amigas que o fazem. Opõe-se ao terrorismo, embora provavelmente conheça simpatizantes. Vota nos socialistas e se preocupa mais com problemas econômicos do que com qualquer coisa que acontece no Oriente Médio.
Desde 2007, os muçulmanos franceses têm estado longe dos noticiários. Isso ajudou a inaugurar uma nova fase: uma religião, no caso o islã, é formatada para adequar-se às normas sociais dominantes. Exemplo disso foi a proibição do uso do véu nas escolas francesas.
Outro, escreve o principal estudioso do islã no país e morador de Dreux, Olivier Roy, é a evolução de um novo tipo de casamento muçulmano francês: é realizado na mesquita, mas com o casal de mãos dadas, com a noiva vestida de branco e segurando um buquê de flores -exatamente como num casamento cristão.
Durante a "formatação" -como Roy descreve esse processo-, a sociedade descarta aspectos da religião que considera "bárbaros" (como a amputação das mãos de criminosos) ou simplesmente "esdrúxulos" (como o véu).
A formatação pode ser feita de baixo para cima ou pode ser imposta de cima para baixo. Alguns opõem resistência a ela: muitos muçulmanos franceses se opuseram à proibição do véu nas escolas, embora o Ministério do Interior tivesse estimado que menos de 1% das garotas muçulmanas usasse lenço na cabeça na escola.
Mas a maioria das pessoas aceita a nova formatação. Se não o fizesse, não haveria adesão a ela. Em junho passado, o presidente Nicolas Sarkozy lançou uma nova etapa na formatação do islã. Ele criticou um item de vestimenta que poucos franceses chegam a ver: a burca. Em Paris, uma piscina pública na periferia proibiu uma mulher de nadar de "burquini", uma roupa de banho que a cobria dos pés à cabeça. Quando a República começa a voltar sua atenção a fenômenos tão periféricos, é provável que já estejamos numa etapa posterior da formatação.
É possível passar horas no bulevar de Belleville e nunca ver uma burca. O Ministério do Interior estimou o número de francesas que trajam burcas em exatamente 367.
Cerca de um quarto delas são mulheres que se converteram ao islã; foi o caso da mulher proibida de frequentar a piscina por usar o "burquini", que é ainda mais raro.
O que ocorre agora é que a República está traçando as fronteiras do islã francês. Os muçulmanos podem continuar a ser muçulmanos se quiserem, mas também devem ser transformados em "pequenos franceses", como aquelas criancinhas de Belleville de mãos dadas com seus coleguinhas brancos e franceses de origem chinesa.
É o mesmo caminho trilhado pelos italianos, judeus e poloneses que vieram para o país em diferentes momentos nos últimos 150 anos. Todos foram considerados estrangeiros em algum momento. De lá para cá, todos foram assimilados.
Essa perspectiva agrada a muitos muçulmanos franceses. Como disse o escritor Abdellah Taïa em seu apartamento em Belleville: "Se sinto angústia à noite, não é por ser árabe ou muçulmano".
A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.
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