sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O papel dos filósofos hoje

O papel dos filósofos hoje
Por Cristina Dantas, para o Valor, de São Paulo
27/08/2010

"Escola de Atenas", afresco de Raffaello de Sanzio, no Vaticano, pintado entre 1509 e 1510: Platão e Aristóteles aparecem no centro, entre filósofos de diversas épocas
Demócrito de Abdera divisou o indivisível: pensou o átomo. Pensou também a ética enquanto andava pelas ruas de Atenas, entre o sorriso e a gargalhada. Diógenes de Sinope, esfarrapado e sujo, empunhava sua lanterna sob o sol do meio-dia em busca de um homem de virtude. Anaxágoras das vestes vermelhas se dizia um deus. Não que na Antiguidade Clássica essas atitudes exóticas fossem comuns, mas, como conta a professora Olgária Matos, "os atenienses conviviam tranquilamente com as extravagâncias de seus filósofos".

São figuras do passado, que, por suas ideias e idiossincrasias, deixaram marcas de presença importante na história da filosofia. E os filósofos de agora? De que se ocupam? O que se espera deles? O mesmo que em qualquer época, de acordo com o filósofo e poeta Antonio Cicero. "A filosofia pretende tratar racionalmente das questões fundamentais que dizem respeito ao ser, ao conhecimento, à ética. Ao fazê-lo, questiona e submete à crítica as respostas tradicionais e convencionais. É assim ainda hoje."

Antonio Cícero: "A filosofia pretende tratar racionalmente das questões fundamentais que dizem respeito ao ser, ao conhecimento, à ética. Ao fazê-lo, questiona respostas tradicionais e convencionais"
Vêm à lembrança os olhos enviesados e o cachimbo pendendo eternamente da boca de Jean-Paul Sartre, ou Michel Foucault - ambos, personagens recentes de uma tradicional linhagem de filósofos que transitaram pela academia e pelas questões públicas com igual desenvoltura. É nossa herança. A universidade pública brasileira nasceu de um modelo francês, que nos legou a figura do intelectual que toma a palavra em público e pensa as questões do nosso tempo, como lembra Olgária. Ela aponta, porém, uma diferença. A tradição francesa teria no espaço público o lugar do "debate sem segundas intenções". Para Olgária, no Brasil, quando o intelectual sai do registro daquilo que a mídia e a opinião pública dele esperam, é desqualificado. Há mais variantes nessa equação, e uma delas está na pauta proposta aos intelectuais, especialmente aos filósofos.

"Há 25 anos vivemos uma democracia e a vivemos como se fosse sinônimo de corrupção", analisa outro respeitado mestre da filosofia política no Brasil, Renato Janine Ribeiro. A queixa é sincera e tem explicação justa. Em primeiro lugar, porque os escândalos que surgem na esfera do poder ocupam espaços demasiados, que deveriam ser dispensados a pesquisas relevantes - a falta de uma ágora adequada e receptiva acaba por confiná-las ao ambiente da academia. Em segundo lugar, porque nem sempre é convidado ao debate aquele que está mais aprofundado no tema proposto. Que fique claro: a discussão deve ser franqueada a todos, mas seriam desejáveis, para Janine Ribeiro, uma sintonia mais fina e um portfólio mais vasto de intelectuais a serem ouvidos. "Em que medida a atuação de alguém da área da filosofia tem a ver com o tema a ser tratado? Às vezes você dá sua opinião de cidadão."


Olgária Matos: "O conhecimento de conceitos, do registro em que a filosofia opera, exige iniciação, mas um outro plano, o da fruição, está disponível a todo o público", como nos cursos livres
Alguns anos atrás, Janine fez um levantamento entre os pesquisadores do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A intenção era aferir, entre os bolsistas de primeiro nível, quantas citações haviam tido na grande imprensa, durante cerca de seis meses, os pesquisadores de filosofia, ciências políticas, sociologia e antropologia. E sempre para assuntos não específicos dessas áreas. Ao final, uma constatação surpreendente: os bolsistas de filosofia exibiam o mesmo número de citações das três ciências sociais somadas.

Por que essa abertura tão ampla aos filósofos? "É porque sabemos fazer resenha de livro", ironiza Vladimir Safatle. "Você vira uma espécie de comentador de rodapé da notícia do dia." Para exemplificar a tese, cita a ideia desenvolvida por Foucault: "O filósofo está se transformando em um jornalista transcendental", teria acusado o fundador de conceitos fundamentais da filosofia do século XX. Por trás da ironia, uma explicação plausível: a própria formação do filósofo, que transita por uma vasta gama de campos, da política à estética - e isso, apenas na graduação. Com seu repertório sólido e abrangente, é natural que o filósofo possa escrever, para o grande público, textos, como diz Safatle, "minimamente coerentes".


Janine Ribeiro: "Em que medida a atuação de alguém da área da filosofia tem a ver com o tema a ser tratado? Às vezes você dá sua opinião de cidadão"
Aceitando-se que sejam tantos os assuntos de interesse do filósofo, pode-se incorrer no equívoco de acreditar que a universidade não tem pauta própria. E "a imprensa, como é normal em qualquer sistema organizado da vida social, também tem sua pauta de interesses. A gente acaba se adaptando", diz Safatle, que aos 37 anos exibe no currículo dez livros editados - quatro como autor, seis como organizador.

Seu arsenal de críticas se volta em algumas ocasiões para a própria universidade. É o caso de episódio recente da vida política brasileira. A decisão do Superior Tribunal Federal de não rever a Lei de Anistia, com o fim de julgar agentes do Estado por crimes cometidos no país entre 1961 e 1979, transcorreu sob "uma ausência quase aterradora de debate na universidade", e deixou Safatle inconformado. "Do ponto de vista filosófico, a questão toca vários problemas: a memória social, o peso da história, qual o significado de elaborar o passado, como se relacionar com ele", analisa, listando alguns importantes filósofos que se ocuparam do tema, entre Theodor Adorno, Hannah Arendt e Walter Benjamin.

O episódio tem agravantes. "A universidade foi a que mais sofreu com a ditadura militar. Ela teria um interesse orgânico no assunto", diz Safatle. Com Edson Teles, ele organizou o livro "O que Resta da Ditadura", para trazer à tona o que ficou soterrado nos escombros de uma era vil da historia do país. As críticas, de maneira mais ampla, estendem-se aos colegas de sua geração. É possível que parte deles acredite que um pesquisador rigoroso deva viver integralmente dentro de sua especialidade, resvalando, se tanto, para suas adjacências. Essa prática, que foi importante na formação dos intelectuais brasileiros, pode hoje afastá-los da esfera pública. "Cabe a nós não perder aquilo que outras gerações construíram", alerta Safatle.

É um risco que se corre. E o reverso disso também. Se é grave a classe intelectual silenciar, ainda que eventualmente, ter filósofos frequentando o debate público - ou qualquer debate que se apresente - fez nascer um novo personagem, e justamente em nosso berço universitário, a França. Desde os anos 1970, a imprensa é um palco em que se exibe o grupo batizado de "nouveaux philosophes", tendo à frente Bernard-Henri Lévy, misto de filósofo, jornalista e diretor de teatro. Para Safatle, antiintelectuais que tomam textos sérios por rebuscados, enquanto produzem suas "platitudes".

As notícias não são boas: "Essa é uma tendência do mundo contemporâneo, a desvalorização de todos os valores, em que tudo se equivale", informa Olgária. "Não se tem mais a ordem das urgências. As pessoas não sabem mais diferenciar o que é significativo do que é insignificante."

Enquanto o planeta gira em velocidade de cruzeiro, cada vez mais pessoas procuram o estudo da filosofia, que pede pagamento em moeda rara: tempo. "Há um aspecto da filosofia que exige iniciação, o conhecimento de seus conceitos, do registro em que ela opera. Mas um outro plano, de fruição, está disponível a todo o público", diz Olgária, que vê com muito bons olhos o crescimento dos cursos livres, e nisso não está sozinha.

"Acho bom que seja oferecida a oportunidade de estudar textos clássicos de filosofia e de praticar o pensamento filosófico a pessoas que estudam ou estudaram matérias que nada têm a ver com filosofia", elogia Antonio Cicero.

E o que essas pessoas procuram? "Pensamento livre", diz Janine, deixando claro que, quando dá um desses cursos, costuma tratar de algum assunto específico, como a liberdade vista pelas lentes do cinema, por exemplo.

Mas é pelo primeiro aspecto da filosofia citado por Olgária, o que não prescinde de iniciação, que muitos se sentem atraídos. Às aulas ministradas por Safatle, na Universidade de São Paulo, acorrem alunos de outras disciplinas, gravitando em torno de um objetivo comum: aprender a ler. Pelas características próprias do departamento, eles consideram o estudo da filosofia, de certa forma, mais rigoroso. Enquanto os alunos de outras cadeiras chegam a ter nove ou dez disciplinas por semana, na filosofia eles têm duas ou três, o que permite aulas de quatro horas e tempo para a leitura. Além disso, os professores podem exigir maior rigor de suas alunos.

Há também o fato de que os textos clássicos que nos legaram os maiores pensadores da história estão no outro extremo das "platitudes" dos "nouveaux philosophes". São textos que oferecem resistência. Pedem que se volte a eles mais de uma vez, até que sejam finalmente desvelados. Obras em que "a escrita se transforma em elemento fundamental de definição do objeto. E nem todos os objetos se submetem ao mesmo padrão de clareza - alguns precisam de zonas de sombra, não têm a clareza de uma proposição publicitária", diz Safatle, para quem essa resistência é necessária por mostrar que existem formas de pensamento que não são as do senso comum.

Olgária situa o momento que culminou com essa procura pelo estudo da filosofia por parte de estudantes e profissionais das mais diferentes atividades. Aconteceu no início dos anos 1970, quando a filosofia desapareceu do mapa das escolas do segundo grau. Com ela, foram subtraídas também as disciplinas que davam sentido a esse ensino: o grego, o latim, o francês e as literaturas. "Com o tempo", diz, "as pessoas começaram a sentir que lhes faltavam recursos para pensar determinadas questões."

Pode parecer contraditório, no mundo que não flui, mas escoa, que haja uma corrida a um saber, afinal, sem objeto. Mas, para Olgária, esse conhecimento é procurado justamente por não ter uma finalidade prática. E aí, diz, vale um olhar aos primórdios da humanidade: nenhuma sociedade, nem mesmo no paleolítico, teria permitido que a sobrevivência material suplantasse as necessidades do espírito. "As pessoas que se ressentem dessa carência dos seus tempos de formação vão buscar a filosofia e também a literatura, a música, tudo o que a escola deveria ter dado no passado. E que, por ser privilégio de poucos, retirou-se de todos igualmente."

Vivemos, assim, uma espécie de reinado do pragmatismo. Teríamos abandonado, de acordo com Olgária, tudo o que era antes preconizado pela educação, como "o aprimoramento de si, a sensibilidade, as máximas morais, o tempo longo da formação do pensamento". Ter uma profissão e um bom salário, essas urgências pragmáticas dos nossos dias não estavam excluídas da educação humanista, que previa isso e "previa também a formação de homens melhores, mais felizes". A questão não se restringe ao Brasil. O mundo contemporâneo é marcado por uma formação antiintelectual e os espaços alternativos surgiram para preencher essa lacuna.

O problema se apresenta quando, ao pretender adquirir um saber filosófico, a pessoa acaba levando para casa nada mais do que uma bagatela de saber, menos que um aceno. Ou, na opinião de Safatle, uma "autoajuda de luxo", que ele considera detestável: "É algo do tipo 'Sêneca pode me mostrar o que é uma vida feliz', ou 'como Platão pode me ajudar se eu estiver desempregado'".

Os títulos que se exibem nas prateleiras das livrarias não diferem muito desse dizer imaginado por Safatle, não escondem seu propósito imediatista. "Tudo se passa", diz ele, "como se você pudesse expor todo e qualquer conteúdo no mesmo tipo de discurso, produzindo uma espécie de nivelamento em que o tempo da descoberta desaparece."


Para além do trabalho acadêmico (cada vez mais integral e mais internacionalizado), do debate intelectual e das questões levadas a público, mesmo que às vezes mais miúdas do que gostariam, os filósofos também atuam próximos das outras ciências humanas. Não tanto quanto poderiam, no entanto. Janine levanta a importância de uma pesquisa mais articulada, que não excluiria o trabalho individual. Ele cita o trabalho de repertoriamento das línguas indígenas brasileiras feito pelo CNPq, e conta o caso de um missionário americano que teria vindo para a Amazônia e descobriu uma tribo que não articula os tempos verbais. Para os habitantes dessa tribo, só há o presente. O missionário teve a vida revirada com essa descoberta: comprou uma briga com o filósofo e linguista americano Noam Chomsky, que colocou em dúvida seus métodos de pesquisa, e viu evaporar sua crença em Deus.

Para Janine, a questão extrapola os limites da antropologia e surge como um chamado irresistível à filosofia. A questão que se coloca é o sentido da vida em um caso concreto. A pesquisa deveria ser refeita e levada ao público. "Se um pequeno grupo dessa enorme humanidade pode viver assim, talvez seja uma capacidade que todos tenhamos", imagina, intrigado com essa vida que transcorre no instante. "Mas a pesquisa ainda é muito pulverizada", lamenta.

Janine pode ser considerado um dos intelectuais mais presentes no debate público, daqueles que não se abstêm de colocar o dedo na ferida. Não por acaso, já participou de vários seminários organizados pelo filósofo Adauto Novaes, que há 30 anos reúne intelectuais de vários campos para pensar nossa época. O primeiro deles, no início dos anos 1980, foi "Os Sentidos da Paixão", seguido por "O Olhar, Ética, Ensaios sobre o Medo" e outros, totalizando 30 seminários. Organizados em livros, já ultrapassaram a marca dos 200 mil exemplares vendidos, segundo os cálculos do filósofo.

Enquanto falamos, ele está a uma semana de abrir mais um ciclo de palestras, que acontecem em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Explica que "A Invenção das Crenças", ciclo que acontece entre agosto e setembro, é o quarto da série intitulada "Mutações", transformações radicais pelas quais o mundo ocidental passa hoje e que se dão em todas as áreas da atividade humana: nas artes, na política, na ética, a partir de uma revolução tecnocientífica e com uma estarrecedora predominância dos fatos em detrimento das ideias. No programa do próximo seminário, Novaes escreve, a respeito do último ciclo, "A Experiência do Pensamento", prestes a sair em livro: "Porque [a racionalidade técnica] se origina na revolução tecnocientífica e praticamente sem a ação dos pressupostos das ciências humanas, tendemos a dizer que ela é feita no vazio do pensamento".


"Temos que pensar o que está posto hoje para a filosofia", diz Novaes. Por isso, é preciso colocar de outra forma as ideias de tempo e de espaço. E de trabalho. "Pensava-se que a classe operária faria a revolução". Pois as relações de trabalho, diz, já não são as mesmas e o que vivemos hoje não é uma crise, que afinal, sempre acompanhou a modernidade. Já uma mutação acontece a cada 400 ou 500 anos.

Pode-se ter uma noção da época em que vivemos a partir de outra colocação de Novaes no programa do seminário: o Renascimento foi, em suas palavras, "outra prodigiosa mutação". Este ano, uma exposição em São Paulo marca a trajetória dos ciclos criados pelo filósofo, com apresentação do crítico literário Antonio Candido, um dos mais respeitados intelectuais do país.

Enquanto se discutem questões de tamanha magnitude, os mesmos intelectuais que hoje pensam para onde caminha a humanidade certamente continuarão a ser chamados para opinar sobre todo tipo de assunto. E, a despeito das críticas às vezes devastadoras que possam sofrer, continuarão a "colocar o dedo na ferida", como disse Janine. Antonio Cicero fecha a questão: "Longe de aceitar o papel que lhe querem atribuir, o filósofo deve meter-se onde não é chamado".

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