Entrevista inicialmente publicada no site da UNISINOS
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=14906
Uma contribuição sobre Foucault. Entrevista com Antonio Negri
“A revolução, para Foucault, não é – ou em todos os casos não apenas – uma perspectiva de libertação, mas uma prática de liberdade. É produzir-se a si mesmo e com os outros nas lutas, é inovar, inventar linguagens e redes, é produzir, é reapropriar-se do valor do trabalho vivo. É caçar o capitalismo a partir de dentro”, diz Antonio Negri, refletindo sobre a contribuição de Foucault para compreender a atual fase do capitalismo e das possíveis resistências a ele.
“A nova ordem mundial corresponde à exigência de uma nova ordem no mundo do trabalho. A resposta do capitalismo toma forma em diferentes níveis, mas o da organização tecnológica dos processos de trabalho é fundamental”, afirma Negri. E emenda: “Trata-se, com efeito, da automatização da indústria e da informatização da sociedade: a economia política do capital e a organização da exploração começam a se desenvolver cada vez mais através do trabalho imaterial, a acumulação concerne as dimensões intelectuais e cognitivas do trabalho, sua mobilidade espacial e sua flexibilidade temporal. Toda a sociedade e a vida dos homens tornam-se assim objeto de um interesse novo por parte do poder”.
“A resistência ao biopoder e à construção de novos estilos de vida não está, portanto, afastada do militantismo comunista, se aceitamos pensar que o militantismo é uma prática comum de liberdade, e que o comunismo é a produção do comum”, arremata.
Segue a íntegra da entrevista com o filósofo italiano e co-autor com Michael Hardt de Império e Multidão (ambos publicados pela Record), Antonio Negri. A entrevista, em francês, encontra-se no sítio http://seminaire.samizdat.net 23-09-2007. A tradução é do Cepat.
As análises de Foucault são atuais para compreender o movimento das sociedades? Em que campos elas deveriam ser renovadas, reajustadas e continuadas?
A obra de Foucault é uma máquina estranha, na realidade ela só permite pensar a história como história presente. Provavelmente, boa parte daquilo que Foucault escreveu (Deleuze o destacou com muita justiça) deveria hoje ser reescrito. O que é surpreendente – e interessante – é que ele não pára de buscar, ele faz aproximações, desconstrói, formula hipóteses, imagina, faz analogias e conta fábulas, lança conceitos, corta-os ou modifica-os... É um pensamento de uma formidável inventividade. Mas isso não é o essencial: eu creio que o fundamental é seu método, porque ele permite estudar e descrever ao mesmo tempo o movimento do passado ao presente e do presente ao futuro. É um método de transição em que o presente representa o centro. Foucault está aí, entre os dois, nem no passado, do qual ele faz a arqueologia, nem no futuro, do qual ele esboça às vezes – “como ao horizonte do mar uma fisionomia na areia” – a imagem. É a partir do presente que é possível distinguir os outros tempos. Muitas vezes se reprovou em Foucault a legitimidade científica das suas periodizações: compreendemos os historiadores, mas ao mesmo tempo, eu teria vontade de dizer que isso não é um verdadeiro problema: Foucault está aí onde se instala o questionamento, ele é sempre a partir de seu próprio tempo.
Com Foucault, a análise histórica torna-se uma ação, o conhecimento do passado uma genealogia, a perspectiva futura um dispositivo. Para aqueles que vêm do marxismo militante dos anos 60 (e não das tradições dogmáticas caricaturais da 2ª e da 3ª Internacionais), o ponto de vista de Foucault é naturalmente percebido como absolutamente legítimo, corresponde à percepção do acontecimento, das lutas e da satisfação em correr riscos fora de qualquer necessidade e de qualquer teleologia pré-estabelecida. No pensamento de Foucault o marxismo é totalmente desmantelado, quer seja do ponto de vista da análise das relações de poder ou da teleologia histórica, da recusa do historicicismo ou de um certo positivismo; mas ao mesmo tempo, o marxismo é igualmente reinventado e remodelado do ponto de vista dos movimentos e das lutas, isto é, da realidade dos sujeitos desses movimentos e das lutas: porque conhecer é produzir subjetividade.
Mas, antes de prosseguir na análise, eu gostaria de voltar por um instante. É comum distinguir três Foucault: até o final dos anos 60, o estudo da emergência do discurso das ciências humanas, isto é, ao mesmo tempo aquilo que ele chama de arqueologia do saber e de sua economia nos últimos três séculos, e uma ampla leitura da modernidade ocidental através do conceito de episteme; depois, nos anos 70, as pesquisas sobre as relações entre os saberes e os poderes, sobre o aparecimento das disciplinas, do controle e dos biopoderes, da norma e da biopolítica, isto é, ao mesmo tempo uma analítica geral do poder e a tentativa de fazer a história do desenvolvimento do conceito de soberania desde a sua emergência no pensamento político até nossos dias; e, finalmente, nos anos 80, a análise dos processos de subjetivação sob a dupla perspectiva da relação estética em si e da relação política aos outros – mas, sem dúvida, trata-se da mesma pesquisa: o cruzamento da estética de si e do cuidado político é aquilo que se chama também de ética.
Na realidade, eu não sei se podemos distinguir três Foucault, nem mesmo dois, posto que antes da publicação de Ditos e Escritos e dos cursos no Collège de France, tínhamos a tendência de não considerar realmente o último Foucault. Entretanto, parece-me que os três temas sobre os quais a atenção foucaultiana está fixada são perfeitamente contínuos e coerentes – coerentes no sentido de que eles formam uma produção teórica unitária e contínua.
O que muda é provavelmente a especificidade das condições históricas e das necessidades políticas com as quais Foucault está confrontado e que determinam absolutamente os campos pelos quais se interessa. Desse ponto de vista, assumir a perspectiva foucaultiana é também – eu lhe digo isso com as minhas próprias palavras, espero que elas tenham sido também as de Foucault – colocar um estilo de pensamento (esse que se reconhece na genealogia do presente, que não parou de relançar quando fala da produção de subjetividade) em contato com uma situação histórica dada. E esta situação histórica dada é uma realidade histórica de relações de poder. Foucault o repete muitas vezes, quando fala de sua paixão pelos arquivos, e pelo fato de que a emoção de sua leitura vem daquilo que elas nos contam dos fragmentos da existência: a existência, passada ou presente, comunicada pelos papéis amarelados ou vivida no dia-a-dia é sempre um encontro com o poder – isso não é nada diferente daquilo, mas é extraordinário.
Quando Foucault se põe a trabalhar na passagem entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, isto é, a partir de Vigiar e Punir ele se encontra diante de uma dimensão específica de relações de poder, de dispositivos e de estratégias que ela implica, isto é, diante de um tipo de relações de poder inteiramente articulado com o desenvolvimento do capitalismo. Isso exige um investimento total da vida na medida em que a constituição de uma força de trabalho, por um lado, e as exigências de rentabilidade da produção, por outro, o requerem. O poder tornou-se biopoder. Ora, é verdade que se Foucault utiliza na seqüência o modelo dos biopoderes para pesquisar uma ontologia crítica do presente, você procura inutilmente nas análises consagradas ao desenvolvimento do capitalismo a determinação da passagem do Welfare-state à sua crise, da organização fordista à organização pós-fordista do trabalho, dos princípios keynesianos àqueles da teoria neoliberal da macro-economia. Mas também é verdade que nesta simples definição da passagem do regime da disciplina para o regime do controle, no começo do século XIX, já podemos compreender que o pós-moderno não representa uma retirada do Estado da dominação sobre o trabalho social, mas um aperfeiçoamento de seu controle sobre a vida.
Na realidade, encontramos em Foucault esta intuição desenvolvida em todas as partes, como se a análise da passagem da era pós-industrial constituísse o elemento central de seu pensamento, mesmo que não fale disso nunca diretamente. O projeto de uma genealogia do presente, que estrutura inteiramente sua relação com o passado desde o começo dos anos 70, e a idéia de uma produção de subjetividade que permite, de dentro do poder, de modificar e não cumprir o seu funcionamento tanto quanto criar subjetividades novas, são impensáveis fora da determinação material desse presente e da transição que encarnou. É na passagem da definição da política moderna à da biopolítica pós-moderna que Foucault teve, penso, a extraordinária intuição.
Em Foucault o conceito de política – e o da ação num contexto biopolítico – difere radicalmente, aliás, das conclusões de Max Weber e de seus epígonos do século XIX, assim como das concepções modernas de poder (Kelsen, Schmitt, etc.). Provavelmente, Foucault foi sensível às suas teses – mas eu tenho a impressão de que a partir de 68 o quadro muda radicalmente e Foucault não tem como não ter isso presente. Para nós, que continuamos a utilizar Foucault apesar disso, para além disso, e é uma dádiva que ele nos fez, fruto de uma extraordinária generosidade: Foucault teve o pensamento generoso, é muito raro para que se insista nisso –, e em suas teorizações não há nada a renovar nem corrigir: basta prolongar suas intuições sobre a produção de subjetividade e sobre suas implicações.
Quando Foucault, Guattari e Deleuze apóiam, por exemplo, as lutas sobre a questão carcerária nos anos 70, eles constroem uma nova relação entre o saber e o poder: essa relação não diz respeito somente à situação nas prisões, mas ao conjunto das situações em que podem se desenvolver sobre o mesmo modelo dos espaços de liberdade pequenas estratégias de mudança do poder de dentro do poder, a reconquista de sua própria subjetividade individual e coletiva, a invenção de novas formas de comunidade de vida e de luta, em síntese, o que nós chamamos de subversão. Foucault não é apenas grande pela notável analítica do poder que ele realizou, por suas fulgurâncias metodológicas, ou pela maneira inédita de como cruzou a filosofia, a história e as inquietações do presente. Ele nos deixa intuições cuja validade não cessamos de constatar; em particular, ele redefiniu o espaço das lutas políticas e sociais e a figura dos sujeitos revolucionários em relação ao marxismo “clássico”: a revolução, para Foucault, não é – ou em todos os casos não apenas – uma perspectiva de libertação, mas uma prática de liberdade. É produzir-se a si mesmo e com os outros nas lutas, é inovar, inventar linguagens e redes, é produzir, é reapropriar-se do valor do trabalho vivo. É caçar o capitalismo a partir de dentro.
Não lhe parece que estamos assistindo a uma certa marginalização de Foucault na maioria das correntes que declaram querer reatar com a crítica social e política na França? Como está no resto da Europa (na Itália, por exemplo) e nos Estados Unidos?
Os meios acadêmicos detestam Foucault. Eu creio que foi marginalizado desde os anos 60, porque havia a promoção no Collège de France, para melhor isolá-lo – e não apenas porque a universidade não perdoa o sucesso dos intelectuais. O positivismo sociológico à la Bourdieu certamente foi muito fecundo, mas não foi capaz de apagar o pensamento foucaultiano e denunciou o subjetivismo deste. Ora, não há evidentemente subjetivismo em Foucault. Bourdieu provavelmente se deu conta disso nos últimos anos.
O que Foucault sempre refuta, em todos os recantos da sua obra, é o transcendentalismo, as filosofias da história que não aceitam colocar em jogo todas as determinações do real diante da rede e do conflito das forças subjetivas. Por transcendentalismo, em suma, entendo todas as concepções da sociedade que pretendem poder avaliá-la ou manipulá-la de um ponto de vista externo, autoritário. Não, isso não é possível. O único método que nos permite o acesso ao social é o da imanência absoluta, da invenção contínua da produção de sentido e dos dispositivos de ação. Como os outros autores importantes de sua geração, Foucault também tem de acertar contas com todas as reminiscências do estruturalismo – isto é, com a fixação transcendental das categorias epistemológicas por ele prescritas (hoje, este erro se reproduz com uma certa renovação do naturalismo que acontece na filosofia e nas ciências humanas e sociais...).
E de resto, na França Foucault é refutado porque, do ponto de vista da crítica, ele não se inscreve nas mitologias da tradição republicana: ninguém está mais afastado do soberanismo, mesmo jacobino, do que ele; da laicidade unilateral, mesmo igualitária; do tradicionalismo na concepção de família e da demografia patriótica, mesmo integrista, etc. Então a metodologia de Foucault não se reduz a uma posição relativista, cética, isto é, à degradação de uma concepção idealista da história? Não, de novo não. O pensamento de Foucault propõe fundar a possibilidade da subversão – a palavra é mais minha que dele; Foucault falaria de “resistência” – numa libertação total em relação à tradição moderna do Estado-nação e do socialismo. Uma proposição que é tudo, menos cética ou relativista, é construída, ao contrário, sobre a exaltação da Aufklärung, da reinvenção do homem e de sua potência democrática, depois que todas as ilusões do progresso e da reconstrução comum foram traídas pela dialética totalitária do moderno. Em suma, Foucault poderia se apropriar da frase do jovem Descartes: “Larvatus prodeo”, eu caminho mascarado.
Cada um de nós, penso, deve admitir isso: o nacional-socialismo é um produto puro da dialética moderna. Libertar-se dele significa ir mais longe. Foucault nos lembra que a Aufklärung não é a exaltação utópica das luzes da razão; pelo contrário, é a des-utopia, é a luta cotidiana em torno do acontecimento, é a construção da política a partir da problematização do “aqui e agora”, dos temas da emancipação e da liberdade. A batalha de Foucault em torno da questão das prisões com o GIP no começo dos anos 1970 parece talvez relativista e cética? Ou a posição tomada para apoiar os autônomos italianos no momento mais difícil da repressão e do compromisso histórico na Itália?
Na França, Foucault foi muitas vezes vítima da leitura que dele faziam seus amigos, alunos e colaboradores. O anticomunismo exerceu aqui um papel crucial. Apresentou-se a ruptura metodológica com o materialismo e o coletivismo como uma reivindicação do individualismo neoliberal. Quando desconstruía as categorias do materialismo dialético, Foucault era preciso; mas ele reconstruía também as categorias do materialismo histórico, e isso não funcionava mais. E quando a leitura dos dispositivos e o trabalho sobre a ontologia crítica do presente fazem referências à liberdade das multidões e à construção dos bens comuns, em detrimento do neoliberalismo, esses alunos batem em retirada. Talvez Foucault tenha morrido na hora certa.
Na Itália, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Espanha, na América Latina, e agora sempre mais na Grã-Bretanha, nós não conhecemos esse jogo parisiense que levou a marginalizar Foucault na cena intelectual. Foucault não passou pelo crivo massacrante das querelas ideológicas da intelligentsia francesa: ele foi lido em função do que disse. A analogia com as tendências da renovação do pensamento marxista no final dos anos 1970 é ainda muitas vezes considerada como fundamental. Não retemos, entretanto, somente a coincidência cronológica: é antes o sentimento que o pensamento foucaultiano está a compreender no meio de toda uma série de tentativas – práticas ou teóricas – de emancipação ou de libertação, num encabrestamento das preocupações epistemológicas e de perspectivas ético-políticas que implicam uma crítica violenta dos partidos, da leitura da história e dos temas que se lhe reconheceram. Eu creio que os operaístas europeus e as feministas americanas encontraram em Foucault, por exemplo, numerosas pistas de pesquisa e, sobretudo, a incitação para transformar suas metalinguagens numa linguagem comum, talvez universal, para o mundo porvir – ou, em todo o caso, para o século vindouro.
Michael Hardt e você escrevem em Império que “o contexto biopolítico do novo paradigma é perfeitamente imprescindível à nossa análise” (ed. portuguesa, p. 45). Você poderia explicar a ligação que não é imediatamente evidente entre as novas formas de poder imperial e o “biopoder”?
Sua dívida para com Michel Foucault não é isenta de algumas críticas. Você escreve que ele não chegou a apreender “a dinâmica real da produção na sociedade biopolítica”. O que você quer dizer com isso? Pode-se deduzir que as análises foucaultianas levam a uma espécie de impasse político?
Partindo dessas duas questões, eu gostaria de esclarecer o que, em Império, Michael Hardt e eu emprestamos de Foucault, mas também as críticas que fizemos. Falando do império, nós não procuramos apenas identificar uma nova forma de soberania global diferente da forma do Estado-nação: nós buscamos perceber as causas materiais, políticas e econômicas desse desenvolvimento e, ao mesmo tempo, definir o novo tecido de contradições que ele necessariamente encerra. Para nós, de um ponto de vista marxiano, o desenvolvimento do capitalismo (compreendido na forma extremamente desenvolvida do mercado mundial) se enraíza tanto nas transformações como nas contradições da exploração do trabalho. São as lutas dos trabalhadores que transformam as instituições políticas e as formas de poder do capital. O processo que levou à afirmação da hegemonia da regra imperial não é exceção: depois de 68, depois da grande revolta dos trabalhadores assalariados nos países desenvolvidos e nos povos colonizados no Terceiro Mundo, o capital não pode mais (nos terrenos econômico e monetário, militar e cultural) controlar o conteúdo dos fluxos da força de trabalho nos limites do Estado-nação. A nova ordem mundial corresponde à exigência de uma nova ordem no mundo do trabalho. A resposta do capitalismo toma forma em diferentes níveis, mas o da organização tecnológica dos processos de trabalho é fundamental.
Trata-se, com efeito, da automatização da indústria e da informatização da sociedade: a economia política do capital e a organização da exploração começam a se desenvolver cada vez mais através do trabalho imaterial, a acumulação concerne as dimensões intelectuais e cognitivas do trabalho, sua mobilidade espacial e sua flexibilidade temporal. Toda a sociedade e a vida dos homens tornam-se assim objeto de um interesse novo por parte do poder. Marx havia perfeitamente previsto (nos Grundrisse e em O Capital) esse desenvolvimento, que ele chamava de “subsunção real da sociedade ao capital”. Foucault compreendeu, creio, essa passagem histórica quando descreveu, por seu lado, a genealogia do investimento da vida pelo poder – da vida individual como da vida social. Mas a subsunção da sociedade ao capital (como a emergência dos biopoderes) é muito mais frágil do que acreditamos – e em particular do que o próprio capital acredita, ou que esse objetivismo dos epígonos marxistas (como a Escola de Frankfurt, por exemplo) reconhece.
Na realidade, a subsunção real da sociedade (isto é, do trabalho social) ao capital generaliza a contradição da exploração em todos os níveis da sociedade, assim como a extensão dos biopoderes abre a uma resposta biopolítica da sociedade: não mais os poderes sobre a vida, mas potência da vida como resposta a esses poderes; em suma, isso abre para a possibilidade da insurreição e da proliferação da liberdade, da produção de subjetividade e da invenção de novas formas de luta. Quando o capital investe a vida inteira, a vida se revela como resistência. Portanto, é sobre esse ponto que as análises foucaultianas do retorno dos biopoderes em biopolítica influenciaram os nossos sobre a gênese do império: em suma, quando as novas formas de trabalho e das lutas, produzidas pela transformação do trabalho material em trabalho imaterial, se revelam como produtores de subjetividade.
Eu não sei se Foucault estaria totalmente de acordo com as nossas análises – mas espero que sim! – porque produzir subjetividade, para Michael Hardt e para mim, é na realidade encontrar-se numa metamorfose biopolítica que introduz no comunismo. Em outras palavras, penso que a nova condição imperial na qual vivemos (e as condições sociopolíticas nas quais construímos nosso trabalho, nossas linguagens e, portanto, a nós mesmos) coloca no centro do contexto biopolítico o que chamamos de o comum: não o privado ou o público, não o individual ou o social, mas o que, em conjunto, construímos para assegurar à humanidade a possibilidade de se produzir e de se reproduzir. No comum, nada do que fazia nossas singularidades foi suspenso ou suprimido: as singularidades são somente articuladas umas às outras para obter um “agenciamento” – o termo é de Deleuze – em que cada potência se encontra dividida pela dos outros, e onde cada criação é também imediatamente a dos outros.
Os caminhos que ligam a revisão criativa do marxismo (à qual nós aderimos) às concepções revolucionárias da biopolítica e da produção da subjetividade elaboradas por Foucault são, portanto, creio eu, bem numerosas.
As duas últimas obras de Foucault sobre os modos de subjetivação parecem ter atraído menos a sua atenção. A construção da ética e de estilos de vida estranhas ou resistentes ao biopoder é um caminho muito distanciado daquele que você propõe (a figura do militante comunista)? Ou há possibilidades de um acordo mais profundo que não temos percebido?
As últimas obras de Foucault tiveram grande influência sobre mim. Penso que aquilo que acabo de dizer a propósito de Império o mostra bem. Permita-me contar uma lembrança um pouco curiosa: na metade dos anos 1970, eu escrevi um artigo sobre Foucault na Itália – sobre aquele que chamamos hoje de “primeiro Foucault”, o Foucault da arqueologia das ciências humanas. Eu procurava apontar os limites desse tipo de pesquisa e esperava uma espécie de passo à frente, uma insistência maior sobre a produção de subjetividade. Na época, eu mesmo estava em vias de tentar sair de um marxismo que, se era profundamente inovador no terreno teórico – já que se perguntava se um “Marx para além de Marx” era possível –, apresentava, ao contrário, no terreno da prática militante o risco de erros terríveis.
O que eu quero dizer com isso é que nos anos de luta apaixonada posteriores a 1968, na situação de repressão feroz que os governos de direita exerceram contra os movimentos sociais de contestação, muitos de nós correram o perigo de uma deriva terrorista, e alguns inclusive cederam a esta tentação. Mas, por trás desse extremismo, havia sempre a convicção de que o poder era um e somente um, que o biopoder tornava a direita e a esquerda parecidas, que somente o partido podia nos salvar – e se não fosse o partido, então eram as vanguardas armadas estruturadas como pequenos partidos em versão militar, na grande tradição dos “partidários” da segunda guerra mundial. Nós compreendemos que esta deriva militar era qualquer coisa da qual os movimentos não se isentariam; e que era não somente uma escolha humanamente insustentável, mas um suicídio político. Foucault, e com ele Deleuze e Guattari, nos precaveram contra esta deriva. Eram a este respeito verdades revolucionárias: quando eles criticavam o estalinismo ou as práticas do “socialismo real”, eles não o faziam de maneira hipócrita e farisaica, como os “novos filósofos” do liberalismo; eles procuravam encontrar o meio de afirmar uma nova potência do proletariado contra o biopoder do capitalismo.
A resistência ao biopoder e à construção de novos estilos de vida não está, portanto, afastada do militantismo comunista, se aceitamos pensar que o militantismo é uma prática comum de liberdade, e que o comunismo é a produção do comum. Como em Império, a figura do militante comunista não é tomada no velho sentido. Pelo contrário, ela se apresenta como um novo tipo de subjetividade política que se constrói a partir da produção (ontológica e subjetiva) das lutas pela libertação do trabalho e por uma sociedade mais justa.
Para nós, mas eu creio que também para os movimentos sociais hodiernos, a importância das últimas obras de Foucault é, conseqüentemente, excepcional. A genealogia perde aqui todo caráter especulativo e torna-se política – uma ontologia crítica de nós mesmos –, a epistemologia é “constitutiva” e a ética assume dimensões “transformadoras”. Depois da morte de Deus, assistimos ao renascimento do homem. Mas não se trata de um novo humanismo; ou mais exatamente, trata-se de reinventar o homem no interior de uma nova ontologia: é sobre as ruínas da teleologia moderna que nós recuperamos um telos materialista.
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