quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A propalada teoria da marginalidade

Folha de São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2010



ENTREVISTA JANICE PERLMAN

Morador de favela ainda luta para ser reconhecido
PRECONCEITO DE CLASSE CONTINUA ALTO, DIZ ANTROPÓLOGA AMERICANA

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

Os moradores das favelas do Rio são alvos preferenciais de preconceitos de classe persistentes no Brasil, a despeito da melhoria de suas condições de vida e do seu nível de escolaridade.
A constatação é da antropóloga e cientista política americana Janice Perlman, autora de "Favela: Four Decades of Living on the Edge in Rio de Janeiro" (Favela, quatro décadas vivendo à margem no Rio), lançado neste ano pela editora da Universidade de Cambridge.
O livro é resultado da segunda fase da pesquisa ela que iniciou no final dos anos 60, quando morou em três favelas cariocas. Perlman relata que a aspiração de ser "gente", de ser visto como um "ser humano digno", é comum a seus entrevistados. Ela está de volta ao Rio para iniciar estudo sobre o impacto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) nas favelas.




FOLHA - O acesso dos moradores de favelas a serviços básicos melhorou, assim como seu nível educacional. O que falta?
JANICE PERLMAN - As favelas que eu estudei são consolidadas, e ao longo do tempo as pessoas conseguiram trazer asfalto, luz, água. Isso aconteceu tanto nas beneficiadas pelo programa Favela Bairro quanto nas demais.
Pergunto-me se talvez não houvesse mais resultado se o dinheiro investido tivesse sido usado na criação de empregos para as pessoas.
Há 40 anos, quase todos os meus entrevistados responderam que educação era a coisa mais importante para uma vida bem-sucedida.
Mas seus filhos não conseguiram empregos condizentes com um nível educacional maior. Hoje, a resposta para a mesma pergunta é: "Trabalho decente com remuneração decente".

Isso não é devido à desigualdade, porque os mais ricos têm também mais educação do que tinham antes?
Sim, mas os moradores de favela são mais atingidos. Um estudo de Valéria Pero, do Instituto de Economia da UFRJ, mostrou que a curva de aumento da renda de acordo com a escolaridade para as pessoas fora da favela é padrão, mas na favela sobe muito mais devagar.

A que a sra. atribui isso?
A três coisas. A mais pesada é o estigma de morar na favela, e as pessoas falam disso de várias maneiras. Por exemplo: quando vão a uma entrevista de emprego, vestem-se bem, falam bem, têm o nível educacional exigido. Mas a entrevista acaba quando dão o endereço.

O que causa o estigma?
Ele sempre existiu. Quando escrevi "O Mito da Marginalidade" (1976), o preconceito era igualmente forte. Havia medo de entrar nas favelas, mas dentro eram lugares sossegados.
Depois o medo diminuiu, a comunicação com a redondeza aumentou. Com a chegada do narcotráfico, porém, o morador de favela voltou a ser associado à marginalidade. De certa forma, o mito se tornou realidade, agora não só por preconceito da elite mas porque o morador ficou preso dentro de casa.

Quais são os outros dois fatores que impedem o acesso a melhores empregos?
A qualidade da educação pública acessível ao morador de favela é muito baixa. Os professores bons, que podem escolher, não se arriscam a dar aulas na Nova Brasília [no complexo do Alemão].
Houve também transformações do mercado de trabalho no Rio, com perda de empregos na indústria, nos bancos. Ficou o turismo, prejudicado pela violência.
Além disso, o emprego doméstico era o mais comum para as mulheres das favelas. Mas as jovens não querem mais. Trabalham como caixa de supermercado, às vezes por menos, mas se sentem mais dignas.

O status é maior, não?
Um tema fundamental é a importância de ser gente, a necessidade que todos têm de serem vistos como seres humanos dignos. As pessoas mais conscientes cada vez menos querem ser consideradas parte do mecanismo estrutural que faz com que uma elite possa continuar a viver de modo privilegiado.

Ainda há muito preconceito de classe no Brasil?
Muito, e valorização dos sinais de classe, como a aparência da pessoa. É uma configuração de coisas com as quais é difícil romper.

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