sábado, 4 de junho de 2011

Crise Econômica

Greenspan, um proletário
Diego Viana | De São Paulo
03/06/2011
Luís Ushirobira/Valor

Segundo Stiegler, Bernard Madoff foi o único capitalista que entendeu como o sistema funcionava, porque ele já não acreditava mais em coisa nenhumaPara entender a amplitude da crise econômica de 2008, não basta examinar as entranhas do sistema financeiro. Também é preciso recorrer aos conceitos de autores como Sigmund Freud, Gilbert Simondon e Jean-François Lyotard. Essa é a proposta do filósofo francês Bernard Stiegler, que veio ao Brasil para falar sobre "A Proletarização da Sensibilidade" no seminário Revoluções, em São Paulo.

Stiegler leciona nas universidades de Compiègne e Londres. É fundador da associação Ars Industrialis, que se propõe a pensar "uma política industrial das tecnologias do espírito". Instados por Stiegler a enxergar na tecnologia um fármaco no sentido proposto por Platão - para o grego, a escrita era um fármaco, porque tanto podia servir a cristalizar a dominação como a perpetuar o conhecimento -, os membros da associação desenvolvem projetos que incluem programas de computador e iniciativas regionais. A ideia é permitir à população tomar controle da produção da vida e, assim, escapar da proletarização.

Stiegler define a proletarização como a perda dos saberes que compõem a vida. O grande exemplo de como o consumismo proletarizou a todos é o ex-presidente do Fed Alan Greenspan, que se declarou incapaz de evitar a crise por não entender como funcionava o sistema que deveria regular. Dentre as obras do filósofo, destacam-se "A Técnica e o Tempo", "Por uma Nova Crítica da Economia Política" e "O Que Faz Valer a Pena Viver a Vida". Ele também dirige o Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Pompidou, em Paris.

Valor: A era do consumismo, que o senhor define como inciada com a teoria de relações públicas de Edward Bernays, sobrinho de Freud, e o triunfo do fordismo, foi marcado por uma sucessão de crises. Por que a de 2008 foi diferente?

Bernard Stiegler: Primeiro, ela não é só financeira. É uma crise da economia libidinal. A base do consumismo é um processo de economia libidinal, que se tornou o coração do capitalismo no último século. O auge do sistema foi sua ruína, quando Ronald Reagan e Margaret Thatcher destruíram o poder público. O marketing se tornou o sistema de prescrição econômica exclusivo. Onde havia banco de investimento, passa a haver fundo especulativo. A especulação criou a insolvabilidade, daí o subprime, e um sistema de diluição da responsabilidade. O especulador zomba abertamente da responsabilidade. Seu objetivo é partir logo que não haja mais dinheiro a ganhar, ao contrário do investidor, que está ligado a seu investimento.

Valor: O pensamento econômico pode captar a distinção entre especulação e investimento?

Stiegler: Temos de refazer a crítica da economia política, reavaliar a questão do trabalho e da proletarização. Para Karl Marx, a proletarização é a perda de um saber. O saber fazer, no início, mas isso tende a se estender para todas as formas de saber. É isso que vivemos hoje. A perda de saberes engendra a perda de sabores, esse é um jogo de palavras instrutivo. Quando não temos mais os saberes, perdemos o gosto da vida. O problema do consumismo é que ele destrói saberes. A crise mostrou que até Greenspan é proletário. A estratégia que ele usou para se defender quando chamado pelo Congresso foi dizer que não entendia como o mercado financeiro funcionava. As ferramentas informáticas faziam com que não fosse possível entender nada. Exatamente o que acontecia nas fábricas do século XIX e que Marx criticou.

Valor: Ninguém entendia o funcionamento?

Stiegler: Tinha uma pessoa que entendia: Bernard Madoff. Ele manipulava tudo porque entendia. Ele encarna o triunfo da máfia no capitalismo. Chegou-se ao ponto em que o único capitalista a entender o que acontece é o mafioso, aquele que não acredita em nada. Ele entendeu que não se deve mais crer em nada, o que é extremamente grave. A especulação destrói o valor econômico, então não pode se perpetuar, é autodestrutiva.

Valor: Voltando às características de 2008...

Stiegler: Outro lado é o hiperconsumismo, o consumismo que se tornou viciante, produzido não pelo desejo, como na verdadeira economia libidinal, mas pela compulsão. O caso de Dominique Strauss-Kahn é um resultado perfeitamente previsível.

Valor: Por quê?

Stiegler: Para mim, ele é o símbolo do caráter pulsional do mundo contemporâneo. A agressão sexual não é caso de libido, mas de pulsão. A libido é o verdadeiro desejo, sublimado, que conhece seu objeto. A pulsão é o ato imediato, que não consegue se segurar. É a representação de algo com que nos confrontamos todos.

Valor: Qual é o segundo ponto?

Stiegler: A crise vem no momento em que outro dispositivo começa a se estabelecer. Penso, como Marx, que há infraestruturas, ou seja, meios de produção. Mas eu me interesso pelas estruturas da libido. A energia libidinal é uma produção, fruto de uma economia. É por isso que falo de economia libidinal. Ela pressupõe dispositivos de produção. No século XX, foram destruídos os aparelhos de produção da libido. O investimento amoroso é condição do investimento econômico, como diz Max Weber. Quarenta porcento das crianças americanas de um ano já veem TV e isso tem efeitos reconhecidos pela pedopsiquiatria. Déficit de atenção, hiperatividade, perturbações graves. O consumidor não é mais desejante, como dizia Gilles Deleuze, mas pulsional. É uma regressão psíquica, mas também social. Começou com Thatcher e Reagan e acabou com toda forma de autoridade. Hoje, a única força de autoridade é a policial. Estamos à beira de uma explosão social.

Valor: O que está se estabelecendo agora?

Stiegler: Nesses anos todos, apareceram modos de comportamento novos, que não se inscrevem no horizonte consumista. São comportamentos contributivos. O marketing tenta manipulá-los, claro, mas eles criam horizontes que não são consumistas. A crise é terrível, mas ao mesmo tempo é fecunda, como todas as crises. Este é um período revolucionário. Não no sentido de 1989, 1917 ou 1848. É uma revolução que não passa necessariamente pelas barricadas, mas pelas redes sociais e as práticas novas.

Valor: Essa revolução se mostra na política?

Stiegler: O que faz com que cidadãos sejam cidadãos é terem acesso ao conhecimento das coisas políticas. O espaço político é um espaço de publicação. Cada vez que muda a forma de publicação, há uma grande mudança política. Foi o caso da imprensa, que desaguou na revolução francesa. Com a internet, há uma transformação da publicação. Não haveria revolução tunisiana sem Wikileaks, que vazou telegramas de Ben Ali. O espaço público está em mutação, porque a publicação está em mutação.

Valor: O discurso político percebe isso?

Stiegler: Os representantes, que têm poder de decisão política, não entenderam nada. São fruto do velho sistema e não querem mudar. É o mundo econômico que percebe. Os clientes da Ars Industrialis são bancos, indústrias, empresas de telecomunicações, transportes, software, energia. Estão muito inquietos, veem que o sistema não funciona mais. Um executivo chegou a dizer que não pode manifestar essa inquietação para não ser eliminado pelos acionistas.

Valor: Mas o mafioso segue triunfando?

Stiegler: A burguesia liberal, no sentido clássico do termo, deveria dizer: atenção, estamos nos confrontando com máfias e o capitalismo está se tornando mafioso. Mas ainda há parte do capitalismo que crê no investimento. É preciso conseguir falar com eles, apontar para essa máfia e mostrar como é obcecada pelo curto prazo e, portanto, autodestrutiva. Ela destrói toda a esfera civil e, quando isso acontece, só o que sobra é a guerra civil

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