terça-feira, 1 de julho de 2008

Habermas e o temor do povo

Leiam o texto abaixo de autoria de Habermas publicado no Caderno Mais do jornal A Folha de São Paulo de 29 de junho de 2008 no qual o pensador alemão mostra as dificuldades para ratificar o Tratado de Lisboa, negociado após o fracasso do projeto da Constituição européia.



Europa com medo do povo
O FILÓSOFO JÜRGEN HABERMAS DIZ QUE A ÚNICA SOLUÇÃO PARA O CONTINENTE É O
RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS NACIONAIS
JÜRGEN HABERMAS
Os agricultores se irritam com os preços em queda no mercado mundial e com as regras
impostas por Bruxelas [onde fica a sede da União Européia].Os que estão "por baixo"
se irritam com a distância crescente entre ricos e pobres num país onde vizinhos
viviam em pé de igualdade. Os cidadãos desprezam seus próprios políticos, que
prometem muito, mas perderam toda perspectiva e capacidade de ação.Para completar,
um referendo sobre um tratado que, de tão complicado, não há quem o entenda. A
entrada da Irlanda na UE foi proveitosa para o país.Sendo assim, por que mudar as
regras? Afinal de contas, a transferência de poderes para as instituições européias
não tiraria força do voto democrático, que só se faz ouvir no âmbito dos Estados
nacionais?Os cidadãos farejam o paternalismo que se insinua e que quer apenas que
ratifiquem decisões em que não tiveram voz.Agora o governo decidiu só repetir o
referendo quando tiver certeza da aclamação. Os irlandeses -esse pequeno povo de
resistentes- foram os únicos em toda a vasta Europa que puderam dar sua opinião.De
um golpe, conseguiram deter a marcha da locomotiva inteira -e todas as rodas
pararam. Não querem ser conduzidos às urnas como gado eleitoral. Com exceção de três
parlamentares contrários ao tratado, toda a classe política se opunha ao "não".Assim
fazendo, de certo modo puseram todo o sistema político em jogo. Donde a enorme
tentação de passar um memorando a toda política assim concebida e praticada.Sobre os
motivos do "não" irlandês só é possível especular.As reações "oficiais" foram
unívocas. Os governos, acuados, não querem parecer desnorteados com o resultado,
tentam se comportar "profissionalmente" para procurar uma solução "técnica" -no
frigir dos ovos, uma repetição do plebiscito irlandês, isto é, uma demonstração de
cinismo por trás do respeito puramente verbal à decisão dos votantes, com o que se
levaria água para o moinho de quem já se pergunta se as formas semi-autoritárias das
democracias de fachada não seriam mais convenientes.O Tratado de Lisboa deveria dar
seqüência às reformas que a "cúpula" de Nice -anterior à expansão da UE de 15 para
27 membros- esboçara sem conseguir realizar. Nesse meio tempo, a expansão para o
leste, com a conseqüente melhoria dos indicadores mais crassos de bem-estar e a
intensificação dos conflitos de interesse, tornou necessário um novo esforço de
integração.Os fóruns europeus não têm como lidar à moda antiga com os novos
conflitos e tensões.Diante do fracasso da Constituição Européia, o Tratado de Lisboa
não foi mais do que uma solução de emergência, burocraticamente concebida, a ser
imposta sem mais aquela às populações européias.Com esse ato de força, os governos
queriam mostrar, sem o menor constrangimento, que são eles a decidir pelo destino da
Europa -exceção feita ao referendo previsto na Constituição irlandesa.O próprio
Tratado de Lisboa fora, no melhor dos casos, uma resposta lenta ao choque anterior,
quando o processo de ratificação da Constituição emperrara na França e nos Países
Baixos, antes mesmo de chegar a seu fracasso anunciado no Reino Unido.Desta vez, o
constrangimento é ainda maior. Terá chegado a hora de indagar se a unificação
européia, caso queira seguir adiante, terá que optar por caminhos políticos mais
próximos dos cidadãos? Até Nice, esse processo foi conduzido como projeto de uma
elite liberal.Desde então, os sucessos econômicos foram percebidos mais e mais como
parte de um jogo de soma zero, à medida que surgiam massas de desfavorecidos em
todas as sociedades européias.Temores sociais bem fundamentados e reflexos de medo
irrefletido podem explicar a instabilidade da opinião pública. Mas não há como não
levar a sério os problemas em aberto, sobre os quais os partidos políticos podem
agir, contanto que se esforcem por oferecer perspectivas convincentes.Os referendos
fracassados são sinal de que, graças a seus próprios êxitos, a unificação européia
chegou a limites que só serão transpostos quando as elites pró-européias deixarem de
contornar o princípio representativo e perderem seu temor ao povo.Chegou a um nível
crítico o divórcio entre as instâncias de decisão política estabelecidas por
Bruxelas e Estrasburgo, de um lado, e os canais de participação democrática
remanescentes nos Estados nacionais, de outro.Isso é ainda mais grave na medida em
que as competências do Estado europeu e dos Estados nacionais foram muito
desigualmente divididas.Os efeitos sociopolíticos e culturais das instituições de
mercado instauradas em toda a Europa explodem no âmbito dos Estados nacionais, aos
quais não restou nenhuma influência sobre a origem desses "custos externos".Nessas
condições, a política só pode vir a recobrar competências antigas se conduzida em
nível europeu; só assim a visão empalidecida de uma "Europa social" poderia voltar a
uma arena política decisiva -e só assim os partidos social-democratas, hoje
desfigurados, poderiam formular visões dignas de crédito.A convivência no espaço
europeu não deveria ser concebida sobre bases que excluíssem, de saída e por
princípio, qualquer alternativa ao liberalismo de mercado. Mesmo porque as questões
da harmonização cuidadosa das políticas fiscais e econômicas e da padronização
paulatina dos sistemas de seguridade social no interior da UE tocam no conflito em
torno da "expansão" ou do "aprofundamento" que há anos vem assolando a UE.O silêncio
dos governos sobre o futuro da Europa encobre o conflito de objetivos que vem
roubando perspectiva e energia à União.A Europa quer ser um ator capaz de decisão no
terreno interno e externo ou nos daremos por satisfeitos com o apelo civilizatório
que o projeto de expansão crescente exerce sobre os países ingressantes? O preço do
projeto de expansão difusa se faz notar na falta de força política diante de uma
sociedade mundial em conflito desde 2001.Basta pensar na triste imagem dos nossos
"príncipes" Brown, Sarkozy e Merkel [líderes, respectivamente, de Reino Unido,
França e Alemanha], que fazem questão de entrar sozinhos na antecâmara de Bush: é a
Europa despedindo-se do palco mundial.Os problemas da mudança climática, da
desigualdade de renda, de uma ordem econômica estável, dos direitos humanos, das
fontes não-renováveis de energia -todos esses problemas dizem respeito igualmente a
todos nós.E, no mesmo momento em que todos dependem mais estreitamente de todos,
assistimos à expansão dos arsenais atômicos e bioquímicos e à escalada dos
potenciais de violência. Uma Europa capaz de ação não deveria, em seu própria
interesse, fazer valer seu peso no esforço de pacificação humanitária e política da
comunidade internacional?Mas o fato é que a UE não tem peso político à altura de seu
peso econômico -e não o terá enquanto os governos discordarem sobre os objetivos da
unificação européia.Nesse ponto, é importante ter clareza quanto às
responsabilidades: são os governos que não sabem o que fazer que eternizam o status
quo melancólico. É natural que o conflito de objetivos ganhe virulência por obra de
diferenças profundas, com raízes históricas -o que, de resto, não constitui
fundamento para a crítica a este ou aquele país.Mas, após o alerta irlandês, temos o
direito de esperar duas coisas de nossos governos: devem reconhecer que gastaram
todo seu latim e devem parar de escamotear seu dissenso.Afinal de contas, não têm
escolha senão deixar que a própria população decida.Isso significa que os partidos
políticos terão que arregaçar as mangas para que a questão da Europa volte a ser o
tema crucial que de fato é: uma Europa cindida por disputas nacionais será capaz de
se tornar um sujeito capaz de ação política interior e exterior?Fala-se agora em
salvar o Tratado de Lisboa oferecendo-se aos irlandeses a possibilidade de uma saída
parcial da UE.A proposta ao menos leva a sério a decisão dos eleitores irlandeses,
que podem até se surpreender, uma vez que não queriam chegar a tanto.Mas a mera
ponderação dessa possibilidade já é um avanço na direção correta: um tratado de
cooperação pelo qual os países-membros pudessem colaborar em algumas instâncias, e
não em outras, talvez constituísse uma saída para o embaraço geral que se instalou.A
Europa foi longe com seu comboio em que o vagão mais lento determina o ritmo dos
outros. Mas agora é hora de mudar. A própria proposta de eleições diretas para a
presidência da UE vai bem além do hesitante Tratado de Lisboa.O Conselho Europeu
deveria saltar além da própria sombra e propor que as próximas eleições européias
fossem também um referendo formulado em termos claros. Com isso, os cidadãos
poderiam se pronunciar em todos os países da UE, no mesmo dia e sobre a mesma
pauta.O erro mais óbvio de todos os referendos até agora consistiu em conduzi-los em
âmbito meramente nacional, e não pan-europeu.Com muito empenho e alguma sorte,
poderia sair daí uma união dos dois tempos, à medida que os países em que o
referendo for vitorioso desenvolvam uma cooperação mais estreita no domínio das
políticas econômica, exterior, de segurança e de seguridade social.Postos diante de
uma encruzilhada, também os países ingressantes do sul e do leste teriam que se
perguntar a sério sobre qual o melhor caminho para seus interesses.Ao mesmo tempo,
um núcleo europeu capaz de ação e êxito provavelmente voltaria a atrair a atenção de
países membros hoje céticos. Finalmente, é possível que, por complicada que seja, a
diferenciação interna torne mais fácil a difícil tarefa da expansão da União
Européia.

JÜRGEN HABERMAS (1929) é filósofo alemão, autor de "Consciência Moral e Agir
Comunicativo" (Tempo Brasileiro). Este texto saiu originalmente no jornal
"Süddeutsche Zeitung". Tradução de Samuel Titan Jr

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