quinta-feira, 10 de julho de 2008

Texto publicado na Tribuna da Imprensa

O "despreparo da PM" (1)

Luciane Soares da Silva

Não creio que a questão do "despreparo da PM" possa ser apontada como a única e mais importante causa do erro na abordagem realizada na Tijuca neste domingo. O principal mote das manchetes de muitos jornais da capital demonstra exatamente o contrário: a recorrência das ações policiais qualificadas pelo secretário de Segurança Pública como "desastrosas". Neste caso, o desastre, segundo ele, é do indivíduo, qualificado pelo governador do Estado do Rio de Janeiro como débil mental (uma categoria de todo equivocada pois apela para uma desqualificação do uso das capacidades racionais de um indivíduo, o que não é o caso).

Entre os anos de 2000 e 2003, um número expressivo de professores e alunos de pós-graduação dos cursos de ciências sociais, história, filosofia e educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, participou de um projeto que visava a formar e atualizar servidores públicos dentro de uma ordem democrática que englobasse disciplinas como "sociologia da violência e da criminalidade", "Estado e segurança pública, "direitos humanos" entre outras já dentro do modelo de integração dos órgãos policiais. O total de participantes foi de aproximadamente 28,5 mil servidores.

Este projeto possibilitou uma imersão de três anos no universo policial (inclusive com aprendizagem pelos professores e de técnicas de tiro, algemação, vistoria em veículos suspeitos, entre outras técnicas que pretendiam mostrar aos acadêmicos, o que era o '"verdadeiro trabalho policial") e portanto, foi estabelecido um diálogo intenso e tenso com os agentes de segurança pública, não só na capital, Porto Alegre, mas também em cidades do interior, como Passo Fundo, Santa Maria, São Borja, com suas culturas policiais específicas da campanha, de fronteira, de litoral.

Participei de várias edições deste curso com uma equipe de 20 professores e professoras que foram a mais de 20 cidades gaúchas discutindo conceitos sobre crime, violência e Estado democrático de direito, bem como uma discussão sobre direitos humanos que era de todo "indigesta" para os policiais. Nos cursos de atualização tínhamos em média 20 policiais, sendo 12 militares, 6 civis e 2 agentes penitenciários.

Gostaria de apresentar algumas evidências, mesmo sem esquecer que tanto as corporações são distintas entre si (em todo o Brasil) como as duas sociedades (a carioca e a gaúcha) apresentam um quadro diferente em números e modalidades de crime e quanto à cultura organizacional das instituições policiais..

Em primeiro lugar, nos cursos de formação que tinham em sala de aula uma média de 40 alunos entre homens e mulheres, era possível concluir que mais de 50% vinham de outros trabalhos (desde professores de educação física até ex-gerentes de lojas que haviam fechado). Com idades entre 20 e 35 anos, afirmavam que a escolha se justificava pela "estabilidade do serviço público". Creio que no Rio de Janeiro, uma das variações poderia ser "estabilidade em um emprego público em um Estado sem crescimento nos postos de emprego formal".

Em segundo lugar aparecia uma possibilidade de "ficar interno à instituição", ou seja, não ir para o enfrentamento. Creio que no Rio, estar nas ruas possibilita, em alguns casos, outras formas de ganho além da salarial. E quanto a isto, diante do valor pago pelo Estado no Brasil aos seus servidores públicos (o que um professor estadual recebe no Rio de Janeiro é imoral) não há como interpretar esta realidade acusando apenas o policial de corrupto.

Nos cursos de atualização, quando os policiais tinham aulas de tiro e padronização de operações, aconteciam dois fenômenos interessantes: em primeiro lugar uma catarse sobre aqueles que pensavam ser "os representantes (na época) do governo Olívio". Reclamações sobre salário, mas ainda mais forte, a expressão de um sentimento de abandono por parte do Estado. As aulas de sociologia e ofício de polícia duravam dois dias. A resistência à discussão sobre direitos humanos era total. Pois, segundo eles, a prática não poderia esperar a "teoria".

Na linha de tiro, estressados pelo cotidiano e inseguros apelavam para o uso da arma de fogo. Nos dois últimos dias de curso, praticavam a atualização deste uso e isto sim era valorizado por eles, pois a aplicação seria imediata. Ou seja, o que os policiais desejavam era mais técnica, melhores salários e uma polícia que não fosse "política", já que identificavam aquele governo como político por ter implementado uma discussão sobre direitos humanos, além de um investimento na formação destes agentes. Esta política pública de segurança foi pioneira no Brasil, já que o governo anterior de Antônio Britto, primava pela compra de viaturas, algemas, armas e tinha como secretário um "homem de dentro" que, como delegado, saía em diligências algumas vezes.

Uma brincadeira comum em sala de aula: zombavam de uma concepção de abordagem que levasse em conta os direitos humanos dizendo "cidadão, por favor, saia do carro com as mãos para cima". Achavam que este era o tempo que propiciava um revide dos "bandidos". O problema é que os policiais não acreditavam que um Estado, democrático, de direito pudesse fazer o que eles faziam: julgar e executar a sentença. Já que em sua visão a Justiça é lenta e defende o "vagabundo".

Neste caso, o "vagabundo" é geralmente pobre, preto. Quando muitos cidadãos na sociedade do Rio de Janeiro e a mídia acreditam que a ação no Morro do Alemão é um "mal necessário", como disse Lúcia Hipólito, com a concordância de toda a mesa do programa global de Jô Soares, talvez esta fosse a idéia implícita, para que fiquemos seguros, alguns morrerão. Ou, "há um tipo de gente que pode ser alvo desta política". Historicamente isto nunca mudou como paradigma da seletividade dos agentes de segurança pública. A questão é que esta política é usual. Mas está comprovado que saiu do perímetro no qual sempre atuou: a favela.

Disponível em: http://www.tribuna.inf.br/coluna.asp?coluna=opiniao

Luciane Soares da Silva é doutoranda em Sociologia pela UFRJ

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