ESTADÃO
Domingo, 15 de Novembro de 2009
Vannuchi e Jobim travam disputa de bastidor por Comissão da Verdade
Ministros não chegam a acordo sobre parte do Plano Nacional de Direitos
Humanos que Lula deve anunciar dia 9
Roldão Arruda
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende anunciar no dia 9 de
dezembro, véspera do aniversário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, o novo Plano Nacional de Direitos Humanos, com a definição de
políticas federais para essa área nos próximos anos. Ele quer fazer o
anúncio com o apoio de todos os ministérios. Mas, faltando pouco mais
de 20 dias para o evento, ainda existe uma pedra no meio do caminho:
dois ministros de Lula não conseguem chegar a um acordo sobre uma
importante e delicada parte do plano, que trata da instalação de uma
comissão nacional com amplos poderes para apurar crimes da ditadura
militar e responsabilizar culpados. A exemplo de outros países que já
apuraram os crimes de regimes de exceção, ela teria o nome de Comissão
da Verdade e Justiça.
De um lado da disputa está o ministro de Direitos Humanos, Paulo
Vannuchi, defensor da comissão. Do outro aparece seu colega Nelson
Jobim, da Defesa, avesso à ideia.
Vannuchi argumenta que a comissão seria uma resposta aos anseios das
famílias de pessoas torturadas e mortas nos anos da ditadura. Muitas
não conseguiram até hoje localizar os corpos dos parentes. Na visão de
Jobim, porém, ela traria o risco de animar espíritos revanchistas e
criar atritos desnecessários com as Forças Armadas.
As divergências vão além. Vannuchi acredita que uma comissão com amplos
poderes pode recuperar arquivos em poder de militares e elucidar casos
de desaparecimentos. Jobim aceita as declarações de chefes militares de
que esses arquivos não existem mais. Teriam sido todos destruídos.
Vannuchi acha que os responsáveis pelas torturas, mortes e
desaparecimento de corpos ainda podem ser punidos. Argumenta, escorado
em declarações e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário,
que crimes de violação de direitos humanos, de lesa-humanidade, não
prescrevem.
No sentido contrário, Jobim, que é jurista e já presidiu o Supremo
Tribunal Federal (STF), advoga que a Lei da Anistia envolveu não só
perseguidos políticos, mas também acusados. O objetivo da lei de mão
dupla, segundo tal interpretação, teria sido sobretudo o de reconciliar
o País.
"Não sou revisionista", já disse o ministro da Defesa. "Não temos
legitimidade para rever o acordo político de 1979."
No momento, os dois ministros acompanham os passos do STF, que se
prepara para dar uma resposta a essa polêmica sobre a interpretação da
lei, assinada pelo general João Baptista Figueiredo, nos estertores da
ditadura.
NEGOCIAÇÃO
Espera-se que os dois ministros se reúnam nos próximos dias para tentar
um acordo. Vannuchi já deu sinais de que estaria disposto a mudar o nome
da comissão, retirando a palavra justiça. Ficaria apenas Comissão da
Verdade.
A mudança iria além do nome. Na prática, os integrantes da comissão
evitariam adentrar a área judicial, concentrando-se na busca de
informações para esclarecer fatos da época.
Vannuchi diz que não se deve esperar que a comissão tenha caráter
judicial nem acreditar que possa ser dominada por algum espírito de
revanchismo. "Busca-se sobretudo o reconhecimento pleno do que ocorreu",
afirma.
A margem de negociação de Jobim é mais estreita. Sabe-se que aceitaria
no máximo a criação de uma Comissão de Reconciliação.
PRESSÕES
Diante do impasse, a decisão deve ficar para o presidente Lula. A data
prevista para o anúncio do Plano Nacional de Direitos Humanos, o
terceiro desde 1991, está cada vez mais próxima e as pressões dos grupos
interessados na questão aumentam.
Vannuchi é um petista histórico. Antes da redemocratização militou na
esquerda, participou de uma organização que defendia a resistência
armada, foi preso e torturado. Um parente dele, Alexandre Vannuchi Leme,
morreu nas mãos da polícia política. Não seria exato, porém, afirmar que
defende suas posições baseado exclusivamente em convicções pessoais. No
caso da comissão, é empurrado também pelo dever de ofício.
A decisão de incluir a comissão no Plano Nacional não partiu de
Vannuchi, mas da Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em
dezembro do ano passado. Foram seus participantes, investidos de poderes
deliberativos, que votaram pela criação da comissão. A propósito, vale
recordar que naquele encontro os dois representantes do Ministério da
Defesa votaram contra a proposta. Foram 25 votos a favor e dois contra.
Outro fator que empurra Vannuchi vem do exterior. É cada vez maior a
pressão internacional para que o Brasil conclua o processo de
restauração democrática, com o esclarecimento de fatos do período
- para evitar a repetição de ciclos de violência.
À frente da pasta de Direitos Humanos ele vem enfrentando críticas de
grupos de familiares de mortos e desaparecidos. Neste ano o motivo foi
não ter conseguido frear Jobim no caso da expedição enviada ao Pará,
em busca de corpos dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.
Os familiares queriam que a expedição ficasse sob controle civil,
vinculada à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Não achavam
correto que os militares, inimigos dos guerrilheiros no passado,
comandassem as buscas. Mas foi o que ocorreu, após Jobim vencer uma
queda de braço com Vannuchi.
Indignada, a presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro,
Cecília Coimbra, chegou a dizer que as buscas não passavam de encenação
para a mídia.O temor agora é de que se crie uma comissão sem força,
apenas para dar uma resposta às organizações internacionais de direitos
humanos.
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