domingo, 18 de janeiro de 2009

Resenha sobre a última obra de Agamben

O jornal "Estado de São Paulo" 18 de janeiro de 2009 publica importante resenha da filósofa Olgária Matos sobre a última obra de Agamben publicada no Brasil.
Viver depois da derrota humana
Em O Que Resta de Auschwitz, Giorgio Agamben questiona futuro que privilegia a exceção à norma
O terremoto de Lisboa de 1755 destruiu uma das mais belas capitais culturais da Europa. Época das Luzes, ele foi o suficiente para pôr por terra o otimismo leibniziano e seu "princípio do melhor". Na teodiceia, o mundo só não é bom do ponto de vista do homem, pois, para a "justiça divina", para o Deus infinito, o Mal, fruto de nossa finitude, é apenas aparência. O que o homem denomina "o Mal" contribui para a otimização do bem de todos. Essa crise da cristandade foi superada em estupor por outra, menos explicável ainda do que o "mal da natureza", porque produzido pelo homem e sua razão. Auschwitz questionou não apenas a ciência e a política, mas todo consolo metafísico para o mundo, fundado na ideia de um agente livre, capaz de discriminar o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o bem e o mal.

O Que Resta de Auschwitz é uma reflexão sobre o fechamento do tempo. O genocídio dizimou a humanidade do homem, a demarcação entre o poder ser e o poder não ser, com o que desapareceu o sujeito consciente e livre: "Auschwitz constitui o momento da experiência traumática em que o impossível se viu introduzido à força no real. Ele é a existência do impossível, a negação mais radical da contingência - a necessidade mais absoluta... A definição de política dada por Goebbels - "a arte de tornar possível o que parecia impossível" - toma seu pleno sentido. "Ela define uma experimentação biopolítica sobre os operadores do ser. A ciência e a técnica prometiam o controle das forças naturais ameaçadoras e o aprofundamento da democracia, auxiliando a política na esperança e na garantia de sobrevivência, segurança, liberdade e paz, reduzindo o poder da contingência sobre nossa condição. A Ciência revelou-se insuficiente para os problemas que o homem se propôs. Marx, na corrente iluminista, acreditava na racionalização do campo histórico pela ação consciente dos homens na ciência e na política. Por isso, o comunismo seria "o enigma da história resolvido". Mas o século 20 organizou o extermínio por despachos de escritório, segundo o "imperativo categórico" e o abstrato "tu deves" kantiano. Razão por que Eichmann pôde declarar, quando de seu depoimento em Jerusalém, ser "culpado diante de Deus, mas não responsável diante dos homens".

Os sobreviventes nos quais Agamben se detém não o são por imposição ética ou resistência vital. São sobreviventes do acaso: "O Lager, situação absoluta, põe fim a toda possibilidade de uma temporalidade originária, de fundação temporal de uma situação singular no espaço (...) Nele, o irremissível do passado torna-se iminência absoluta. Antecipação e sucessão se destroem uma a outra em uma paródia sinistra." Distantes do trágico antigo - quando o herói enfrentava o momento da decisão e os deuses, encontrando-se com seu destino - nos campos de extermínio a fatalidade é sem deuses e sem Deus. Ausentando-se do mundo, sua imagem não mais recai sobre nós "como o faziam com Agamêmnon, Macbeth ou Athalie". Primo Levi anotou em seu testemunho que, ao presenciar o fuzilamento de recém-chegados a Auschwitz, dentre eles uma criança, um prisioneiro, teria exclamado: "Mas onde está Deus?"

Para além das reflexões de Horkheimer, Adorno, Lévinas, Arendt, Camus, Foucault e da literatura de testemunho, O Que Resta de Auschwitz procura interrogar o que do Lager ainda se pode dizer. Como Kant, Agamben mantém a ininteligibilidade do mal moral, mantendo o enigma de sua origem. Os "muçulmanos" eram prisioneiros judeus encarregados, nos campos nazistas, das câmaras de gás e do extermínio. Eram "cadáveres ambulantes": "o muçulmano é o não-homem que se apresenta obstinadamente como homem, e o humano que é impossível distinguir do inumano". Homens sem vontade ou resistência, o muçulmano esperava que um milagre trouxesse a salvação, a tal ponto o mal se tornara radical. Flutuando em uma zona de indeterminação, ele é um ser "cuja vida não é propriamente vida, cuja morte não poderia ser dita morte, inscrição na vida de uma zona morta, e na morte de uma zona viva". Agamben representa a catástrofe histórica em analogia com a tragédia antiga e os dramas da Idade Média, aproximando o "muçulmano" do mártir cristão. Porque o herói encontra-se mais próximo das fontes terríficas da vida que o homem comum, ele representa toda a nossa condição e por isso sua queda tem caráter exemplar. O "muçulmano" do campo, inscrito na modernidade lógica e racional, é a contrafação do herói que, na ação trágica, encontrava, a um só tempo, identidade e imortalidade. A elas sucederam despersonalização e dessubjetivação. Com a morte do sujeito desaparece o que o define, abrindo-se o âmbito da exceção, exceção que suspende o mundo em comum que, na tradição metafísica e moral, era garantido pela linguagem. O que Resta de Auschwitz é também o que resta da linguagem.

Evocando a entrevista de Hannah Arendt à TV alemã nos anos 60, quando respondia ao que restava da Alemanha pré-hitlerista, Agamben transcreve: "a língua materna". Para compreender este "resto", Agamben se vale das línguas e da tensão que as faz vivas, seus polos de inovação e transformação, de invariância e gramatização, mas referidas ao falante destituído da capacidade de falar. Ao desconsiderar a heterogeneidade do funcionamento concentracionário e as precárias formas, individuais ou de grupos, mais ou menos passivas, de resistência, Agamben desrealiza o "muçulmano", propondo-o como uma personagem retórica, a fim de pensar o campo de concentração como o nómos da modernidade. Testemunha impossível, o "muçulmano" é privado da língua: "testemunhar significa colocar-se, no interior de sua própria língua, na posição daqueles que a perderam, instalar-se em uma língua como se ela fosse morta, ou em uma língua morta como se fosse viva". Privilegiando a poesia como o gesto por excelência de um "autor" e da testemunha, a palavra poética é o que "resta" da língua, o que a preserva do mutismo e da morte: "uma língua morta é, pois, aquela em que não mais se pode opor norma e anomia, mudança e conservação. De uma tal língua diz-se, justamente, que ela não é mais falada, quer dizer, é impossível designar a posição de sujeito." Em Auschwitz o traumatismo silenciou a voz. Não por acaso, no "muçulmano" do campo projeta-se o Bartleby de Melville que, ao final, imóvel diante do muro do cárcere onde se encontra aprisionado, vai se extinguindo e morrendo. Ele é a expressão do "desespero lívido", da "descriação". O que Resta, de Auschwitz é a afasia.

Agamben confere às "línguas mortas" um sentido novo, referindo-se a Giovanni Pascoli que, no início do século 20, utiliza o latim para escrever seus versos: "eis que um indivíduo consegue assumir a posição de sujeito em uma língua morta, restaurando nela a possibilidade de opor o dizível e o não-dizível, a inovação e a conservação que, por definição, não existiam mais. Poder-se-ia dizer que um tal poeta em língua morta, na medida em que se reinstala nela como sujeito, realiza uma verdadeira ressurreição da língua." O que Resta de Auschwitz é o resto humano, as sobras da linguagem, referências de uma humanidade futura: "o resto de Auschwitz - as testemunhas - não são nem os mortos nem os salvos", anota Agamben, "nem os náufragos nem os sobreviventes, mas o que resta entre eles." O parti pris do testemunho linguístico para Auschwitz privilegia a exceção à norma, arriscando-se ao fechamento da tênue passagem entre o real e o possível, paradoxo que, para o autor, só se resolve em um tempo que não é nem o da história, nem o da eternidade, mas o do Messias.

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