Deutsche Welle, 09.04.2010
Só descolonização da subjetividade trará mudança à América Latina, diz Walter
Mignolo
Para o pesquisador argentino, a criação de Estados nacionais após os movimentos de
independência apenas abalou a ordem mundial moderna/colonial, mas só a
descolonização do ser e do saber levará a uma mudança.
Deutsche Welle: Os movimentos de independência na América Latina completam 200
anos. Mas até que ponto é historicamente correto falar em independência? Seria
possível unificar os movimentos de independência na América Latina em uma única
corrente ou foram eles causados por fen??menos históricos distintos?
Walter Mignolo: Seria equivocado limitar a análise dos "movimentos de
independência" apenas à América Latina. Pois a "América Latina" não existia no
momento em que ocorreu a assim chamada independência. O que houve foi o
desmembramento dos vice-reinados espanhóis nas Índias Ocidentais sob o ponto de
vista dos espanhóis e da população crioula que buscava a independência da Espanha.
Acho que é hora de deixar para trás o imaginário nacional e ver o que aconteceu
como o primeiro abalo da ordem mundial moderna/colonial, quando anglo-crioulos
formaram os Estados Unidos na América do Norte, afro-crioulos fundaram a República
do Haiti e crioulos hispânicos fundaram diversas repúblicas de Argentina e Chile a
Estados Unidos do México.
Como você avalia o caso do Brasil, único dos países latino-americanos a permanecer
uma monarquia após a independência?
O Brasil não é necessariamente uma anomalia, mas uma consequência de conflitos
imperiais, de diferenças internas entre impérios europeus. No final do século 18,
Inglaterra, Alemanha e França assumiram a liderança global, enquanto Portugal e
Espanha perderam poder. Portugal transferiu a administração monárquica para o
Brasil a fim de escapar dos avanços da França imperial no sul da Europa, antes de
colonizar a norte da África.
O Brasil é uma anomalia apenas se os Estados Unidos da América do Norte, o Haiti e
as formações republicanas da América espanhola forem tomadas como modelo. Mas não
se observarmos a totalidade da formação atlântica desde o século 16, incluindo
tanto a formação das col??nias quanto os conflitos entre as nações imperiais –
Espanha, Portugal, Inglaterra e França.
Alemanha e Itália não são países atlânticos e sua expansão colonial é mínima em
relação a eles. Curiosamente, Alemanha e Itália – países sem forte dominação
colonial – e Espanha – país imperial que perdeu seu último domínio em 1898 – foram
os três países que engendraram Hitler, Mussolini e Franco.
Historicamente, é correto dizer que os movimentos de independência na América
Latina foram consequência da Revolução Francesa, da Revolução Gloriosa e da
independência dos Estados Unidos?
Pode ser. Mas não acho isso relevante, a menos que ainda estejamos presos na
análise moderna, que procura quem influenciou quem, em vez de observar as
turbulências do sistema mundial moderno/colonial. Tais revoluções devem ser vistas
como parte de um abalo que alterou a formação do mundo atlântico.
A Revolução Inglesa de 1647-1649 e a Revolução Gloriosa nem poderiam ter acontecido
sem os alcances extraordinários que a Inglaterra obteve do tráfico negreiro e das
plantações no Caribe. Daí se deu a formação de uma burguesia comercial e financeira
em Londres, Liverpool e Manchester.
Agora, é preciso fazer uma distinção fundamental entre as revoluções modernas na
Europa e as revoluções modernas/coloniais nas col??nias. Antes de uma questão de
influência, precisamos entender o campo sistêmico de forças. A diferença básica é
que a revolução britânica e a francesa colocaram a burguesia no poder em
substituição à monarquia.
Nas Américas, as revoluções não engendraram uma burguesia, mas uma elite colonial
que assumiu o controle da economia, da autoridade, do conhecimento, do sexo e da
sexualidade, dando continuidade à política imperial com relação aos
afro-descendentes e à população indígena.
Enquanto, na Europa, a burguesia subiu ao poder, nas col??nias, a elite colonial era
basicamente uma elite de proprietários de terras e minas dependente dos efeitos
crescentes da Revolução Industrial. Trata-se de uma elite ao serviço da burguesia
européia, que fornecia recursos naturais para a Revolução Industrial.
O que definiu o desenvolvimento completamente diferente tomado pelos Estados
Unidos após sua independência do destino dos países latino-americanos?
Os EUA, ao contrário dos vice-reinados hispano-americanos e da monarquia brasileira
que ocupa quase todo o século 19, eram col??nias da Inglaterra, país que estava
assumindo a liderança imperial. Nas col??nias inglesas que comporão os EUA, surgiu
não só uma forte elite comercial mas também política, o que não foi o caso nas
col??nias inglesas no Caribe insular, por exemplo.
Os EUA se formaram sobre a base da elite política dos dissidentes crioulos,
preconizados pelos founding fathers. Em contrapartida, as demais col??nias inglesas
eram controladas por plantation owners com interesses estritamente econ??micos, e não
políticos.
Já as independências nas col??nias ibéricas (mais cedo na América hispânica
continental e mais tardias no Brasil e na América hispânica caribenha, como em
Cuba, Porto Rico e República Dominicana) são independências de países imperiais
que, ao final do século 18, haviam perdido a segunda era moderna.
Como se vê, não se trata de influências de causas e efeitos, mas da complexidade
dos vínculos histórico-estruturais na formação do sistema-mundo moderno-colonial
em seus primeiros 300 anos de existência. Lembre-se que, enquanto isso ocorria na
Europa e na América, a Holanda e a Inglaterra começavam já suas incursões na Índia
e logo a França o faria no Sudeste Asiático e na África.
Além disso, nas col??nias inglesas no chamado Novo Mundo, conquistadores chegaram ao
sul e ao Caribe, e peregrinos ao norte. Estes últimos não buscavam conquistas, mas
liberdade, eram dissidentes da monarquia inglesa que, até a metade do século 17,
não se diferenciava muito da castelhana.
Os peregrinos trouxeram consigo a energia política que os levara a deixar a
Inglaterra e os fará construir politicamente o Novo Mundo. Dessa linha provém a
formação dos EUA. Na América Ibérica, nada disso aconteceu. Nenhum contingente da
coroa castelhana emigrou da península e se refugiou na América.
Até que ponto a América Latina é realmente "latina"? O nome "América Latina" está
condenado a desaparecer?
Se observar bem, cada vez menos se usa América Latina, dando preferência a América
do Sul. Como expliquei em meu livro La idea de América Latina, a latinidade diz
respeito apenas à população "branca" de ascendência europeia. Não vejo por que a
população de ascendência africana teria que aceitar sua latinidade, em vez de sua
africanidade. Da mesma forma, poderíamos falar em América Africana em vez de
Latina. E de América Indígena, em vez de Africana ou Latina.
A latinidade foi um projeto imperial francês, quando o país, a partir do século 19,
tentou recuperar a liderança dos países latinos do sul da Europa (Itália,
Portugal, Espanha), a fim de enfrentar a liga anglo-sax??nica da Inglaterra e da
Alemanha. Esta divisão da Europa entre a Europa do Norte e do Sul, a anglo-sax??nica
e a latina, a protestante e a católica, se reproduz nas Américas: a América de
Jefferson e a de Bolívar.
Pois esta história está chegando ao fim, o termo América Latina "incomoda" muita
gente. Não só aqueles cujas memórias não são greco-romanas, e sim africanas ou
indígenas, mas também os de ascendência europeia que consideram um atropelo impor a
"latinidade" como um marco subcontinental. Tudo está mudando hoje, principalmente
no Caribe insular (francês, inglês, holandês e espanhol) e continental. Aí a
latinidade se reduz a um mínimo sustentável.
Além disso, é preciso perguntar quão "anglos" são os EUA, com 45 milhões de
"latinos". Enquanto, na América do Sul e no Caribe, a latinidade se confunde com um
termo hegem??nico, nos EUA ela se converte em um desafio para a hegemonia da
"anglicidade".
E por que os Estados Unidos reivindicam para si o nome América?
Durante o século 16 e todo o 17, a demografia das Américas era composta de
habitantes nativos, europeus principalmente ibéricos e africanos escravizados.
Durante quase todo o século 16, não se encontrava um inglês nem por casualidade.
Walter Raleigh fundou uma col??nia em Ronaoke em 1584, onde hoje é a Carolina do
Norte. Os peregrinos chegaram à costa do que seria a Nova Inglaterra no começo do
século 17.
Eles escaparam do absolutismo da coroa inglesa e, se não eram revolucionários,
atuavam em dissensão. Isso não houve nem na Espanha nem em Portugal. Na
Inglaterra, a situação política no século 17 foi acompanhada pelo crescimento
econ??mico das plantações, principalmente no Caribe. Foi aí que a linha da teoria
política de Maquiavel a Locke se afirmou na propriedade privada como critério
fundamental do indivíduo soberano.
É isso que legitima Locke com relação à Revolução Gloriosa: seu tratado de governo
reafirma os direitos da nascente burguesia, da soberania individual em relação à
propriedade privada. Nada disso existiu na Península Ibérica, nem nas col??nias
luso-hispânicas.
Quem explicou o que quero dizer com clareza e erudição foi o venezuelano Enzo del
Bufalo, num livro intitulado Americanismos y democracia (2002). Sua tese é de que
o sujeito moderno, que já anunciava Cervantes na literatura e Descartes na
filosofia, se concretizou politicamente na revolução colonial que gerou os Estados
Unidos. Del Bufalo acerta ao distinguir entre americanismo e EUA. O americanismo é
um projeto político que levou à formação do sujeito moderno e soberano,
fundamentado na propriedade privada e que surge precisamente na América.
Esse projeto culminou com a formação do primeiro Estado moderno, os Estados Unidos
da América do Norte (antes mesmo da Revolução Francesa). A historiografia europeia
contou a história relegando a revolução americana a segundo plano. O sonho
americano não são os Estados Unidos, mas o americanismo que os precede e funda. E
esse mesmo Estado pode trair o sonho americano, como aconteceu no governo do
segundo Bush. Uma das tarefas de Obama é precisamente restaurar esse americanismo.
Como disse Del Bufalo: "Os Estados Unidos da América são como a prática da América,
que não é exatamente igual à América como projeto. Por sua vez, a América como
utopia pode ser assumida por outros Estados sem nunca realmente se converter em uma
prática, como ocorreu com os Estados latino-americanos".
O fim da Guerra Fria altera o significado e a predominância ideológica e econ??mica
dos Estados Unidos na América Latina (e no mundo)?
Sim, muda muitas coisas, que eu resumiria em dois aspectos. Em primeiro lugar, a
euforia e o senso de vitória da Europa Ocidental e dos EUA criaram as condições
para os dois pilares da administração Bush: a invasão do Iraque e o colapso de Wall
Street. Ou seja, o colapso do controle da autoridade e da economia pelos EUA.
Em consequência disso e do crescimento principalmente da China, mas também de
outros países produtores de petróleo (Irã, Venezuela, Rússia), entramos em uma
ordem policêntrica interconectada por um tipo de economia, a capitalista.
Quatro trajetórias dominarão o futuro global:
A primeira delas é o fim do ciclo de 500 anos de hegemonia e dominação ocidental,
com a qual a administração Bush conseguiu acabar. A segunda é a deswesternização,
que está sendo articulada no Leste e no Sudeste Asiático e consiste em aceitar a
economia capitalista, mas disputar o controle da autoridade, do conhecimento, dos
direitos humanos, das relações internacionais etc.
A terceira é a reorientação da esquerda, que tem várias caras: a esquerda europeia
clássica, a esquerda europeia dos países do Sul, ligada ao Fórum Social Mundial, e
a esquerda colonial, como é o caso da Bolívia, por exemplo.
E, por último, vem o descolonialismo, que começou durante a Guerra Fria com os
movimentos de libertação nas col??nias inglesas e francesas na África e na Ásia, mas
que tem hoje outra cara, tanto epistêmica quanto política, na América do Sul e no
Caribe.
Evo Morales é a primeira concretização desta tendência, enquanto os zapatistas
foram o primeiro movimento social a aplicar o descolonialismo. Por mais que não
tenham usado o termo, seus dizeres e ações eram descoloniais. Estas quatro
tendências serão analisadas mais detalhadamente no meu próximo livro, The darker
side of Western Modernity.
Como o senhor avalia o surgimento de uma nova esquerda pós-Guerra Fria no
continente? Trata-se de uma ruptura ou é possível observá-la como um
desenvolvimento político contínuo desde as independências?
Depois do fim da Guerra Fria, e talvez até o ano 2000, a esquerda boliviana foi,
sem dúvida, a que mais contribuiu para a reorientação da esquerda moderno-colonial
(que os europeus chamam apenas de esquerda moderna) e que se abriu para a
compreensão histórica e as demandas indígenas propostas pelos escritos de José
Carlos Mariátegui no Peru. Ela é, ao mesmo tempo, continuidade e câmbio com a
esquerda nacionalista.
No entanto, a diferença colonial com projetos indígenas e afros persiste. A
esquerda é um projeto "branco", para quem o fen??meno de classe é fundamental,
enquanto que projetos indígenas e afros partem da raça como categoria fundamental.
Além disso, existe a questão do patriarcado, mais fácil de relacionar com a questão
racial do que com a esquerda que mantém o fen??meno das classes como fundamento.
Creio que, no futuro, os movimentos feministas, junto com projetos indígenas e
afros, ganharão terreno sobre a primazia do marxismo e a Teologia da Libertação, as
duas opções dissidentes que indígenas, afros e mulheres possuíam antes de iniciar
seus próprios projetos.
Pode-se dizer que a estrutura colonial mantida desde a vigência do Colonialismo
provoca a violação dos direitos humanos, a concentração de renda e a marginalização
política de grupos inteiros da sociedade. Será possível superar essa ordem política
e social sem uma nova revolução material?
Não se muda o mundo, mas sim as pessoas que fazem, controlam e desfazem o mundo.
Uma "revolução" material sem a descolonização do conhecimento e da subjetividade
só leva a mudanças de conteúdo, mas não dos termos na organização do mundo. Para
isso, falta uma perspectiva que não seja nem o capitalismo nem o marxismo, mas
descolonial. Ou seja, que as instituições (governo, economia, educação, saúde,
alimentação) sejam postas a serviço da vida e não a vida a serviço das
instituições.
Hoje a instituição que se procura salvar é o capitalismo. Nos dizem numa mesma
notícia, com frequência, que a economia cresce, mas o desemprego também. A conexão
que os jornais não fazem é que o que importa é a instituição, não a vida.
O projeto descolonial do qual faço parte inverte este processo: só a descolonização
do ser e do saber levará a um câmbio do horizonte econ??mico e político.
Precisamos concretizar o "sonho descolonial", segundo o qual as instituições estão
a serviço da vida, em vez de por as pessoas a serviço das instituições. Esta
fórmula é a base da retórica moderna e da lógica do colonialismo (duas caras da
mesma moeda), da qual precisamos nos desprender a fim de permitir mudanças
radicais.
Revoluções materiais guiadas pela esquerda não nos levam muito longe, pois mantêm
os termos do discurso, mudando apenas os conteúdos, com resultados desastrosos até
então.
Entrevista: Rodrigo Abdelmalack
Revisão: Roselaine Wandscheer
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