Folha de São Paulo, segunda-feira, 31 de agosto de 2009
ENTREVISTA DA 2ª - MASSIMO PAVARINI
Punir mais só piora crime e agrava a insegurança
Castigo mais duro, herança dos EUA de Reagan, transforma criminoso leve em profissional, diz professor de Bolonha
"É UM PECADO , uma ideia louca" a noção de que penas maiores de prisão aumentem a segurança. "Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança", diz o italiano Massimo Pavarini, 62, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da Europa. Ele dá um exemplo: "Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime".
Eduardo Knapp/Folha Imagem
O pesquisador Massimo Pavarini, em São Paulo
Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80, e difundiu-se pelo mundo "como uma doença". A eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou, acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a seguinte entrevista:
FOLHA - O sr. diz que o direito penal está em crise porque o discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não funciona. O que fazer?
MASSIMO PAVARINI - O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo.
FOLHA - O que fazer, então?
PAVARINI - As prisões já não produzem suficientemente medo para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos econômicos diferentes.
FOLHA - Numa conferência, o sr. disse que o Estado neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de recuperar o preso?
PAVARINI - Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada "Nothing Works" [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald] Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final escreveram "nothing works". A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes.
FOLHA - Ele cumpre esse papel?
PAVARINI - Pode cumprir. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos. Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes.
FOLHA - Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se converteram em um sistema de controle social.
PAVARINI - Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito. Prendiam menos do que a Inglaterra.
FOLHA - O senso comum diz que os presos crescem exponencialmente porque aumentou a violência.
PAVARINI - Isso é muito complicado. Se a pergunta é "existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da população presa?", qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não. Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.
FOLHA - Por que prendem tanto?
PAVARINI - Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.
FOLHA - Eliminar é o papel principal das prisões, então?
PAVARINI - É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais duro, as sentenças são mais longas, "life sentence" [prisão perpétua] é mais frequente, aplica-se a pena de morte.
FOLHA - Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita exclusão?
PAVARINI - Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais, grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França, que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.
FOLHA - É por essa razão que cresce o número de presos no mundo?
PAVARINI - Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.
FOLHA - O que há de errado com esse tipo de negócio?
PAVARINI - Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro, e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro contra o crime, eles perdem votos.
FOLHA - No Brasil, os políticos e a população defendem o aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?
PAVARINI - Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz "vamos buscar trabalho para esse garoto", ele não ganha nada.
FOLHA - No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam 55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado rico tem presídios tão ruins?
PAVARINI - Há uma regra econômica que diz que a prisão, em qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O presídio ruim tem função simbólica.
FOLHA - Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de 6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?
PAVARINI - Mais cárceres significam mais presos. Se você tem mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias, decidem não construir mais presídios.
FOLHA - Políticos dizem que mais presídios melhoram a segurança.
PAVARINI - A única coisa que você pode dizer é que mais presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para qualquer criminoso
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
domingo, 30 de agosto de 2009
Eduardo Gleano : "Bases dos EUA na Colômbia ofendem dignidade e inteligência"
"Bases dos EUA na Colômbia ofendem dignidade e inteligência"
Fonte: Carta Maior
Em entrevista concedida no Equador, Eduardo Galeano fala sobre o significado do projeto de instalação de bases militares norte-americanas na Colômbia e sobre o atual momento da América Latina. Ao mesmo tempo em que região vive um tempo aberto de esperança, diz o escritor uruguaio, a independência ainda é um projeto inacabado. "Há uma espécie de renascimento que é digno de celebração em países que não chegaram ainda a ser independentes, apenas começaram um pouquinho a sê-lo. A independência é uma tarefa pendente para quase toda a América Latina", afirma.
Fernando Arellano Ortiz - Cronicón
“A presença norteamericana em bases militares da Colômbia não só ofende a dignidade da América Latina, mas também a inteligência”. A afirmação é do escritor uruguaio Eduardo Galeano, em entrevista concedida em Quito a Fernando Arellano Ortiz, de Cronicón (Observatório Latinoamericano). Para Galeano, América Latina vive um tempo aberto de esperança, mas adverte que a independência da região ainda é uma tarefa inacabada.
Depois de 200 anos da emancipação da América Latina, pode-se falar de uma reconfiguração do sujeito político nesta região, levando em conta os avanços políticos que se traduzem em governos progressistas e de esquerda em vários países latinoamericanos?
Galeano: Sim, há um tempo aberto de esperança, uma espécie de renascimento que é digno de celebração em países que não chegaram ainda a ser independentes, apenas começaram um pouquinho a sê-lo. A independência é uma tarefa pendente para quase toda a América Latina
Com toda a irrupção social que se vem dando ao longo do hemisfério, se pode dizer que há uma acentuação da identidade cultural da América Latina?
Galeano: Sim, eu acho que sim e isto passa certamente pelas reformas constitucionais. Ofendeu a minha inteligência, além de outras coisas que senti, o horror deste golpe de Estado em Honduras que invocou como causa o pecado cometido por um Presidente que quis consultar o povo sobre a possibilidade de reformar a Constituição, porque o que queria Zelaya era consultar sobre a consulta, nem sequer era uma reforma direta. Supondo que fosse uma reforma da Constituição, que seja bem vinda, porque as constituições não são eternas e para que os países possam realizar-se plenamente têm que reformá-las.
Eu me pergunto: o que seria dos EUA se seus habitantes continuassem obedecendo à sua primeira Constituição? A primeira Constituição dos EUA estabelecia que um negro equivalia às três quintas parte de uma pessoa. Obama não poderia ser Presidente porque nenhum país pode ter como mandatário as três quintas partes de uma pessoa.
Você reivindica a figura do presidente Barack Obama por sua condição racial, mas o fato de manter ou ampliar a presença norteamericana mediante bases militares na América Latina, como está acontecendo agora na Colômbia com a instalação de sete plataformas de controle e espionagem, não desdiz das verdadeiras intenções desse mandatário do Partido Democrata, e simplesmente segue ao pé da letra os planos expansionistas e de ameaça de uma potência hegemônica como os EUA?
Galeano: O que acontece é que Obama não definiu muito bem o que quer fazer nem em relação à America Latina, as relações nossas, tradicionalmente duvidosas, nem tampouco em outros temas. Em alguns espaços há uma vontade de mudança expressa, por exemplo, no que tem a ver com o sistema de saúde que é escandaloso nos EUA, se você quebra a perna, tem que pagar até o fim dos teus dias a dívida com esse acidente.
Mas em outros espaços não, ele continua falando de “nossa liderança”, “nosso estilo de vida” em uma linguagem excessivamente parecida com as dos anteriores. Me parece muito positivo que um país tão racista como esse e com episódios de um racismo colossal, descomunal, escandaloso, ocorridos há quinze minutos em termos históricos tenha um presidente seminegro. Em 1942 ou seja médio século, nada, o Pentágono proibiu as transfusões de sangue negro e aí o diretor da Cruz Vermelha renunciou ou foi renunciado porque se negou a aceitar a ordem dizendo que todo sangue é vermelho e que era um disparate falar de sangue negro, e ele, Charles Drew, era negro e um grande cientista, o que fez possível a aplicação do plasma em escala universal. Então um país que fizesse um disparate como proibir o sangue negro ter agora Obama como presidente é um grande avanço. Mas por outro lado, até agora eu não vejo uma mudança substancial. Aí está, por exemplo, o modo como seu governo enfrentou a crise financeira. Pobrezinho, eu não gostaria de estar na sua pele, mas a verdade é que acabaram recompensando os especuladores, os piratas de Wall Street que são muitíssimo mais perigosos que os da Somália porque estes assaltam apenas aos naviozinhos na costa, mas os da Bolsa de Nova York assaltam todo o mundo. Eles foram finalmente recompensados; eu gostaria de começar uma campanha em princípio comovido pela crise dos banqueiros com o lema: “adote um banqueiro”, mas desisti porque vi que o Estado assumiu essa responsabilidade. E da mesma forma com a América Latina, que parece não ter muito claro o que fazer.
Os EUA estiveram mais de um século dedicados à fabricação de ditaduras militares na America Latina. Então, na hora de defender uma democracia como no caso de Honduras, diante de um claríssimo golpe de Estado, vacilam, tem respostas ambíguas, não sabem o que fazer, porque não tem prática, lhes falta experiência, há mais de um século trabalham no sentido oposto, então compreendo que a tarefa não é fácil. No caso das bases militares na Colômbia, não só ofende a dignidade coletiva da América Latina, mas também a inteligência de cada um de nós, porque que se diga que sua função vai ser combater as drogas, por favor, até quando! Quase toda a heroína que se consome no mundo provem do Afeganistão, quase toda, dados oficiais das Nações Unidas que todo mundo pode ver na internet. E o Afeganistão é um país ocupado pelos EUA e como se sabe os países ocupantes tem a responsabilidade do que acontece nos países ocupados, portanto tem algo que ver com este narcotráfico em escala universal e são dignos herdeiros da rainha Vitória que era narcotraficante.
Não se pode ser tão hipócrita
A rainha britânica que introduziu por todos os meios no século XIX o ópio na China através de comerciantes da Inglaterra e dos EUA
Galeano: Si, a celebérrima rainha Vitória da Inglaterra impôs na China ao longo de duas guerras de trinta anos, matando uma quantidade imensa de chineses, porque o império chinês se negava a aceitar essa substância dentro de suas fronteiras que estava proibida. E o ópio é o pai da heroína e da morfina, justamente. Então aos chineses lhes custou muito, porque a China era uma grande potência que podia ter competido com a Inglaterra no começo da revolução industrial, era a oficina do mundo, e a guerra do ópio os arrasou, os converteu em uma piltrafa, aí entraram os japoneses como anel ao dedo, em quinze minutos. Vitória era uma rainha traficante e os EUA, que tanto usam a droga como pretexto para justificar suas invasões militares, porque disso se trata, são dignos herdeiros desta feia tradição. Me parece que já é hora que acordemos um pouquinho, porque não se pode ser tão hipócrita. Se vão ser hipócritas que o sejam com mais cautela. Na América Latina temos bons professores de hipocrisia, se querem podemos em um convênio de ajuda tecnológica mútua emprestar-lhes alguns hipócritas nossos.
Há exatamente nove anos, você disse em uma entrevista concedida em Bogotá a mim a seguinte frase: “Deus livre a Colômbia do Plano Colômbia”. Qual é agora sua reflexão em relação a esse país andino que enfrenta um governo autoritário entregue aos interesses dos EUA, com uma alarmante situação de violação de direitos humanos e com um conflito interno que segue sangrando-o?
Galeano: Além disso, com problemas gravíssimos que se foram agudizando com a passagem do tempo. Eu não sei, te digo, quem sou eu para dar conselhos à Colômbia nem aos colombianos, além disso sempre estive contra esse costume ruim de algumas pessoas que se sentem em condições de dizer o que cada país tem que fazer. Eu nunca cometi esse pecado imperdoável e não vou cometê-lo agora com a Colômbia, só posso dizer que tomara que os colombianos encontrem seu caminho, tomara que o encontrem, ninguém pode impor-lhes de fora, nem pela esquerda, nem pela direita, nem pelo centro, nem por nada, serão os colombianos que devem encontrá-lo. O que eu posso dizer é que eu testemunho as coisas.
Se há um tribunal mundial que alguma vez chegue a julgar a Colômbia pelo que se diz da Colômbia: país violento, narcotraficante, condenado à violência perpétua, eu vou dar testemunho de que não, de que esse é um país carinhoso, alegre e que merece um destino melhor.
Reivindicando a memória de Raúl Sendic
Há muitos anos, talvez umas quatro décadas, havia um personagem em Montevidéu que se reunia com um jovem desenhista chamado Eduardo Hughes Galeano com o propósito de lhe dar idéias para a elaboração de suas caricaturas, chamado Raúl Sendic, o inspirador da Frente Ampla do Uruguai.
Galeano: E o dirigente guerrilheiro dos Tupamaros, mesmo se naquele momento ainda não o era. É verdade, quando eu era criança, quase catorze anos, e comecei a desenhar caricaturas, ele se sentava a olhar e me dava idéias, era um homem bastante mais velho que eu, com certa experiência, e ainda não era o que foi depois: o fundador, organizador e dirigente dos Tupamaros. Me lembro o que disse a Emilio Frugoni que naquela época era dirigente do Partido Socialista e diretor do semanário em que eu publicava umas caricaturas precoces, assinalando para mim: “Este vai ser ou presidente ou grande delinqüente”. Foi uma boa profecia e terminei sendo grande delinqüente.
O fato de que hoje a Frente Ampla está governando o Uruguai e que um ex-guerrilheiro como Pepe Mujica tenha possibilidade de ganhar as eleições constitui uma reivinidicação à memória de Sendic?
Galeano: Sim e de todos os que participaram em uma luta longa para romper o monopólio de dois, exercido pelo Partido Colorado e pelo Partido Nacional durante quase toda a vida independente do país. A Frente Ampla surge há pouco tempo no cenário político nacional e me parece muito positivo que esteja governando agora, aparte de que eu não coincida com tudo o que se faz e além disso creio que não se faz tudo o que se deveria fazer. Mas isso não tem nada que ver porque finalmente a vitória da Frente Ampla foi também uma vitória da diversidade política que eu creio que é a base da democracia. Na Frente coexistem muitos partidos e movimentos diferentes, unidos claro em uma causa comum, mas com suas diversidades e diferenças, e eu as reivndico, para mim isso é fundamental.
O que representa para você como uruguaio o fato de que um dirigente emblemático da esquerda como Pepe Mujica, ex-guerrilheiro tupamaro, tenha amplas possibilidades de chegar à Presidência da República?
Galeano: Com alguma sorte, não vai ser fácil, vamos ver o que acontece, mas eu acho que é um processo de recuperação, as pessoas se reconhecem justamente no Pepe Mujica porque ele é radicalmente diferente dos nossos políticos tradicionais, na sua linguagem, até no seu aspecto e tudo o mais, por mais que ele tratou de se vestir como cavalheiro fino, não cai bem nele, e expressa muito bem uma necessidade e uma vontade popular de mudança. Acho que seria bom que ele chegasse à Preisdência, vamos ver se isso acontece ou não. De qualquer maneira, o drama do Uruguai como o do Equador, certamente, país em que estamos conversando neste momento, é a hemorragia de sua população jovem. Ou seja, a nossa é uma pátria peregrina; no seu discurso de posse o presidente Rafael Correa falou dos exilados da pobreza e a verdade é que há uma enorme quantidade de uruguaios muito mais do que se diz, porque não são oficiais as cifras, mas não menos de 700 ou 800 mil uruguaios em uma população pequeniníssima, porque nós no Uruguai somos 3 milhões e meio, essa é uma quantidade imensa de gente fora, todos ou quase todos jovens, então ficaram os velhos ou as pessoas que já cumpriram essa etapa da vida em que a gente quer que tudo mude para se resignar a que não mude nada ou que mude muito pouco.
Tijolos coloridos para armar mosaicos
Depois de seus reputados livros “As veias abertas da América Latina”, publicado em 1970, e “Espelhos”, editado em 2008, que relatam histórias da infâmia, o primeiro sobre nosso continente e o outro de boa parte do mundo, há espaço para continuar acreditando na utopia?
Galeano: O que faz “Espelhos” é recuperar a história universal em todas suas dimensões, em seus horrores, mas também em suas festas, é muito diferente de “As veias abertas da América Latina”, que foi o começo de um caminho. “As veias abertas” é quase um ensaio de economia político, escrito em uma linguagem não muito tradicional no gênero, por isso perdeu o concurso da Casa das Américas, porque o jurado não o considerou um livro sério. Era uma época em que a esquerda só acreditava que o sério era o chato, e como o livro não era chato, não era sério, mas é um livro muito concentrado na história política econômica e nas barbaridades que essa história implicou para nós, como nos deformou e nos estrangulou. Em compensação, “Espelhos” tenta abordar o mundo inteiro recolhendo tudo, as noites e os dias, as luzes e as sombras, são todas histórias muito curtinhas, e há também uma diferença de estilo. “As veias abertas” tem uma estrutura tradicional, e a partir daí eu tentei encontrar uma linguagem própria minha, que é a do relato curto, tijolos coloridos para armar os grandes mosaicos, um estilo como o dos muralistas, e cada relato é um pequeno tijolo que incorpora uma cor, e um dos últimos relatos de “Espelhos” evoca uma recordação da minha infância que é verdadeiro; é que quando eu era pequenininho acreditava que tudo o que se perdia na Terra ia parar na Lua, estava convencido disso e me suprendeu quando chegaram os astronautas à Lua porque não encontraram nem promessas traídas, nem ilusões perdidas, nem esperanças rompidas, e então eu me perguntei: se não estão na Lua, onde estão? Será que não estão aqui na terra, esperando-nos?
Tradução: Emir Sader
Fonte: Carta Maior
Em entrevista concedida no Equador, Eduardo Galeano fala sobre o significado do projeto de instalação de bases militares norte-americanas na Colômbia e sobre o atual momento da América Latina. Ao mesmo tempo em que região vive um tempo aberto de esperança, diz o escritor uruguaio, a independência ainda é um projeto inacabado. "Há uma espécie de renascimento que é digno de celebração em países que não chegaram ainda a ser independentes, apenas começaram um pouquinho a sê-lo. A independência é uma tarefa pendente para quase toda a América Latina", afirma.
Fernando Arellano Ortiz - Cronicón
“A presença norteamericana em bases militares da Colômbia não só ofende a dignidade da América Latina, mas também a inteligência”. A afirmação é do escritor uruguaio Eduardo Galeano, em entrevista concedida em Quito a Fernando Arellano Ortiz, de Cronicón (Observatório Latinoamericano). Para Galeano, América Latina vive um tempo aberto de esperança, mas adverte que a independência da região ainda é uma tarefa inacabada.
Depois de 200 anos da emancipação da América Latina, pode-se falar de uma reconfiguração do sujeito político nesta região, levando em conta os avanços políticos que se traduzem em governos progressistas e de esquerda em vários países latinoamericanos?
Galeano: Sim, há um tempo aberto de esperança, uma espécie de renascimento que é digno de celebração em países que não chegaram ainda a ser independentes, apenas começaram um pouquinho a sê-lo. A independência é uma tarefa pendente para quase toda a América Latina
Com toda a irrupção social que se vem dando ao longo do hemisfério, se pode dizer que há uma acentuação da identidade cultural da América Latina?
Galeano: Sim, eu acho que sim e isto passa certamente pelas reformas constitucionais. Ofendeu a minha inteligência, além de outras coisas que senti, o horror deste golpe de Estado em Honduras que invocou como causa o pecado cometido por um Presidente que quis consultar o povo sobre a possibilidade de reformar a Constituição, porque o que queria Zelaya era consultar sobre a consulta, nem sequer era uma reforma direta. Supondo que fosse uma reforma da Constituição, que seja bem vinda, porque as constituições não são eternas e para que os países possam realizar-se plenamente têm que reformá-las.
Eu me pergunto: o que seria dos EUA se seus habitantes continuassem obedecendo à sua primeira Constituição? A primeira Constituição dos EUA estabelecia que um negro equivalia às três quintas parte de uma pessoa. Obama não poderia ser Presidente porque nenhum país pode ter como mandatário as três quintas partes de uma pessoa.
Você reivindica a figura do presidente Barack Obama por sua condição racial, mas o fato de manter ou ampliar a presença norteamericana mediante bases militares na América Latina, como está acontecendo agora na Colômbia com a instalação de sete plataformas de controle e espionagem, não desdiz das verdadeiras intenções desse mandatário do Partido Democrata, e simplesmente segue ao pé da letra os planos expansionistas e de ameaça de uma potência hegemônica como os EUA?
Galeano: O que acontece é que Obama não definiu muito bem o que quer fazer nem em relação à America Latina, as relações nossas, tradicionalmente duvidosas, nem tampouco em outros temas. Em alguns espaços há uma vontade de mudança expressa, por exemplo, no que tem a ver com o sistema de saúde que é escandaloso nos EUA, se você quebra a perna, tem que pagar até o fim dos teus dias a dívida com esse acidente.
Mas em outros espaços não, ele continua falando de “nossa liderança”, “nosso estilo de vida” em uma linguagem excessivamente parecida com as dos anteriores. Me parece muito positivo que um país tão racista como esse e com episódios de um racismo colossal, descomunal, escandaloso, ocorridos há quinze minutos em termos históricos tenha um presidente seminegro. Em 1942 ou seja médio século, nada, o Pentágono proibiu as transfusões de sangue negro e aí o diretor da Cruz Vermelha renunciou ou foi renunciado porque se negou a aceitar a ordem dizendo que todo sangue é vermelho e que era um disparate falar de sangue negro, e ele, Charles Drew, era negro e um grande cientista, o que fez possível a aplicação do plasma em escala universal. Então um país que fizesse um disparate como proibir o sangue negro ter agora Obama como presidente é um grande avanço. Mas por outro lado, até agora eu não vejo uma mudança substancial. Aí está, por exemplo, o modo como seu governo enfrentou a crise financeira. Pobrezinho, eu não gostaria de estar na sua pele, mas a verdade é que acabaram recompensando os especuladores, os piratas de Wall Street que são muitíssimo mais perigosos que os da Somália porque estes assaltam apenas aos naviozinhos na costa, mas os da Bolsa de Nova York assaltam todo o mundo. Eles foram finalmente recompensados; eu gostaria de começar uma campanha em princípio comovido pela crise dos banqueiros com o lema: “adote um banqueiro”, mas desisti porque vi que o Estado assumiu essa responsabilidade. E da mesma forma com a América Latina, que parece não ter muito claro o que fazer.
Os EUA estiveram mais de um século dedicados à fabricação de ditaduras militares na America Latina. Então, na hora de defender uma democracia como no caso de Honduras, diante de um claríssimo golpe de Estado, vacilam, tem respostas ambíguas, não sabem o que fazer, porque não tem prática, lhes falta experiência, há mais de um século trabalham no sentido oposto, então compreendo que a tarefa não é fácil. No caso das bases militares na Colômbia, não só ofende a dignidade coletiva da América Latina, mas também a inteligência de cada um de nós, porque que se diga que sua função vai ser combater as drogas, por favor, até quando! Quase toda a heroína que se consome no mundo provem do Afeganistão, quase toda, dados oficiais das Nações Unidas que todo mundo pode ver na internet. E o Afeganistão é um país ocupado pelos EUA e como se sabe os países ocupantes tem a responsabilidade do que acontece nos países ocupados, portanto tem algo que ver com este narcotráfico em escala universal e são dignos herdeiros da rainha Vitória que era narcotraficante.
Não se pode ser tão hipócrita
A rainha britânica que introduziu por todos os meios no século XIX o ópio na China através de comerciantes da Inglaterra e dos EUA
Galeano: Si, a celebérrima rainha Vitória da Inglaterra impôs na China ao longo de duas guerras de trinta anos, matando uma quantidade imensa de chineses, porque o império chinês se negava a aceitar essa substância dentro de suas fronteiras que estava proibida. E o ópio é o pai da heroína e da morfina, justamente. Então aos chineses lhes custou muito, porque a China era uma grande potência que podia ter competido com a Inglaterra no começo da revolução industrial, era a oficina do mundo, e a guerra do ópio os arrasou, os converteu em uma piltrafa, aí entraram os japoneses como anel ao dedo, em quinze minutos. Vitória era uma rainha traficante e os EUA, que tanto usam a droga como pretexto para justificar suas invasões militares, porque disso se trata, são dignos herdeiros desta feia tradição. Me parece que já é hora que acordemos um pouquinho, porque não se pode ser tão hipócrita. Se vão ser hipócritas que o sejam com mais cautela. Na América Latina temos bons professores de hipocrisia, se querem podemos em um convênio de ajuda tecnológica mútua emprestar-lhes alguns hipócritas nossos.
Há exatamente nove anos, você disse em uma entrevista concedida em Bogotá a mim a seguinte frase: “Deus livre a Colômbia do Plano Colômbia”. Qual é agora sua reflexão em relação a esse país andino que enfrenta um governo autoritário entregue aos interesses dos EUA, com uma alarmante situação de violação de direitos humanos e com um conflito interno que segue sangrando-o?
Galeano: Além disso, com problemas gravíssimos que se foram agudizando com a passagem do tempo. Eu não sei, te digo, quem sou eu para dar conselhos à Colômbia nem aos colombianos, além disso sempre estive contra esse costume ruim de algumas pessoas que se sentem em condições de dizer o que cada país tem que fazer. Eu nunca cometi esse pecado imperdoável e não vou cometê-lo agora com a Colômbia, só posso dizer que tomara que os colombianos encontrem seu caminho, tomara que o encontrem, ninguém pode impor-lhes de fora, nem pela esquerda, nem pela direita, nem pelo centro, nem por nada, serão os colombianos que devem encontrá-lo. O que eu posso dizer é que eu testemunho as coisas.
Se há um tribunal mundial que alguma vez chegue a julgar a Colômbia pelo que se diz da Colômbia: país violento, narcotraficante, condenado à violência perpétua, eu vou dar testemunho de que não, de que esse é um país carinhoso, alegre e que merece um destino melhor.
Reivindicando a memória de Raúl Sendic
Há muitos anos, talvez umas quatro décadas, havia um personagem em Montevidéu que se reunia com um jovem desenhista chamado Eduardo Hughes Galeano com o propósito de lhe dar idéias para a elaboração de suas caricaturas, chamado Raúl Sendic, o inspirador da Frente Ampla do Uruguai.
Galeano: E o dirigente guerrilheiro dos Tupamaros, mesmo se naquele momento ainda não o era. É verdade, quando eu era criança, quase catorze anos, e comecei a desenhar caricaturas, ele se sentava a olhar e me dava idéias, era um homem bastante mais velho que eu, com certa experiência, e ainda não era o que foi depois: o fundador, organizador e dirigente dos Tupamaros. Me lembro o que disse a Emilio Frugoni que naquela época era dirigente do Partido Socialista e diretor do semanário em que eu publicava umas caricaturas precoces, assinalando para mim: “Este vai ser ou presidente ou grande delinqüente”. Foi uma boa profecia e terminei sendo grande delinqüente.
O fato de que hoje a Frente Ampla está governando o Uruguai e que um ex-guerrilheiro como Pepe Mujica tenha possibilidade de ganhar as eleições constitui uma reivinidicação à memória de Sendic?
Galeano: Sim e de todos os que participaram em uma luta longa para romper o monopólio de dois, exercido pelo Partido Colorado e pelo Partido Nacional durante quase toda a vida independente do país. A Frente Ampla surge há pouco tempo no cenário político nacional e me parece muito positivo que esteja governando agora, aparte de que eu não coincida com tudo o que se faz e além disso creio que não se faz tudo o que se deveria fazer. Mas isso não tem nada que ver porque finalmente a vitória da Frente Ampla foi também uma vitória da diversidade política que eu creio que é a base da democracia. Na Frente coexistem muitos partidos e movimentos diferentes, unidos claro em uma causa comum, mas com suas diversidades e diferenças, e eu as reivndico, para mim isso é fundamental.
O que representa para você como uruguaio o fato de que um dirigente emblemático da esquerda como Pepe Mujica, ex-guerrilheiro tupamaro, tenha amplas possibilidades de chegar à Presidência da República?
Galeano: Com alguma sorte, não vai ser fácil, vamos ver o que acontece, mas eu acho que é um processo de recuperação, as pessoas se reconhecem justamente no Pepe Mujica porque ele é radicalmente diferente dos nossos políticos tradicionais, na sua linguagem, até no seu aspecto e tudo o mais, por mais que ele tratou de se vestir como cavalheiro fino, não cai bem nele, e expressa muito bem uma necessidade e uma vontade popular de mudança. Acho que seria bom que ele chegasse à Preisdência, vamos ver se isso acontece ou não. De qualquer maneira, o drama do Uruguai como o do Equador, certamente, país em que estamos conversando neste momento, é a hemorragia de sua população jovem. Ou seja, a nossa é uma pátria peregrina; no seu discurso de posse o presidente Rafael Correa falou dos exilados da pobreza e a verdade é que há uma enorme quantidade de uruguaios muito mais do que se diz, porque não são oficiais as cifras, mas não menos de 700 ou 800 mil uruguaios em uma população pequeniníssima, porque nós no Uruguai somos 3 milhões e meio, essa é uma quantidade imensa de gente fora, todos ou quase todos jovens, então ficaram os velhos ou as pessoas que já cumpriram essa etapa da vida em que a gente quer que tudo mude para se resignar a que não mude nada ou que mude muito pouco.
Tijolos coloridos para armar mosaicos
Depois de seus reputados livros “As veias abertas da América Latina”, publicado em 1970, e “Espelhos”, editado em 2008, que relatam histórias da infâmia, o primeiro sobre nosso continente e o outro de boa parte do mundo, há espaço para continuar acreditando na utopia?
Galeano: O que faz “Espelhos” é recuperar a história universal em todas suas dimensões, em seus horrores, mas também em suas festas, é muito diferente de “As veias abertas da América Latina”, que foi o começo de um caminho. “As veias abertas” é quase um ensaio de economia político, escrito em uma linguagem não muito tradicional no gênero, por isso perdeu o concurso da Casa das Américas, porque o jurado não o considerou um livro sério. Era uma época em que a esquerda só acreditava que o sério era o chato, e como o livro não era chato, não era sério, mas é um livro muito concentrado na história política econômica e nas barbaridades que essa história implicou para nós, como nos deformou e nos estrangulou. Em compensação, “Espelhos” tenta abordar o mundo inteiro recolhendo tudo, as noites e os dias, as luzes e as sombras, são todas histórias muito curtinhas, e há também uma diferença de estilo. “As veias abertas” tem uma estrutura tradicional, e a partir daí eu tentei encontrar uma linguagem própria minha, que é a do relato curto, tijolos coloridos para armar os grandes mosaicos, um estilo como o dos muralistas, e cada relato é um pequeno tijolo que incorpora uma cor, e um dos últimos relatos de “Espelhos” evoca uma recordação da minha infância que é verdadeiro; é que quando eu era pequenininho acreditava que tudo o que se perdia na Terra ia parar na Lua, estava convencido disso e me suprendeu quando chegaram os astronautas à Lua porque não encontraram nem promessas traídas, nem ilusões perdidas, nem esperanças rompidas, e então eu me perguntei: se não estão na Lua, onde estão? Será que não estão aqui na terra, esperando-nos?
Tradução: Emir Sader
sábado, 29 de agosto de 2009
Fundamentos da Ciência - ceticismo
Valor Econômico Caderno EU & Fim de semana
Filosofia: O ceticismo tem muita coisa a dizer sobre a onda de desesperança gerada pelos escândalos políticos no Brasil, diz Oswaldo Porchat.Antes de tudo, um o Valor, de São Paulo
28/08/2009
Porchat: "A filosofia é artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, pensando-a a serviço dos seres humanos"
Um dos filósofos brasileiros mais interessantes e mais discretos raramente sai à rua do bairro de Santa Cecília, onde mora, em São Paulo. Em seu apartamento, Oswaldo Porchat Pereira exercita muito mais a mente do que as pernas apoiadas pela bengala lhe permitem. Aos 76 anos, o ex-professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - um advogado do ceticismo grego em pleno século XXI - inspira alunos, orienta pesquisas e teses e atrai cada vez mais a atenção dos estudiosos. Mas é com grande desconforto que assiste à crise de valores e à onda de ceticismo difuso gerada pela atual sequência de escândalos de corrupção política no país.
"O homem é naturalmente um amante da verdade, diz o filósofo cético Sexto Empírico. As pessoas comuns têm uma necessidade natural de crer e de acreditar", afirma Porchat. "Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada. É claro que o ceticismo filosófico faz uma crítica dessa propensão à crença e procura explicá-la. Mas nem por isso o cético deixará de reconhecer o papel histórico e social que as crenças representam."
Em tempo de desesperança, é bom lembrar duas coisas: primeiro, os momentos de crise moral na sociedade fazem parte da história da civilização; segundo, o ceticismo possui uma experiência milenar de crítica ao dogmatismo e à certeza dos detentores transitórios da "Verdade". "Quando lemos textos gregos antigos e romanos sobre os eventos políticos daquela época, é com enorme frequência que encontramos referências precisas à terrível corrupção no meio político das cidades, na Grécia, em Roma e em suas colônias", ressalta. "Sabemos que isso aconteceu em variados países e em variadas épocas. Mesmo quando não havia imprensa as populações acabavam mais ou menos cientes do que se passava, o que gerou protestos e revoltas populares."
Ailton Cruz / Gazeta de Alagoas / Folha Imagem
Lula cumprimenta Collor: "Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada", afirma Porchat
No sentido vulgar do termo, a imprensa brasileira tem contribuído - e muito - para fomentar o "ceticismo" da população, acredita Porchat. Essa contribuição é salutar na medida em que enseja uma necessária demanda por mudança no estado de coisas. "Graças à imprensa, a classe média que tem acesso a ela pode inteirar-se do que está acontecendo. Infelizmente, as classes populares não têm acesso. A consciência estimula uma reação sadia. Temo, entretanto, que algumas vezes, ao menos, essa denúncia legítima de fatos de corrupção se exerça de maneira parcial, privilegiando certos grupos que não se censuram e focalizando mais outros em que porventura se tem interesse maior, no momento, em denunciar."
Especialista em Aristóteles, sobre quem defendeu sua tese de doutoramento, "Ciência e Dialética em Aristóteles" (publicada pela Unesp em 2000), Porchat acabou por render-se ao ceticismo grego e tornar-se um filósofo neopirrônico, termo derivado do nome de Pirro de Élida (365-275 a.C.), o fundador do ceticismo. Sistematizada nos séculos II e III pelo médico e filósofo grego Sexto Empírico, o pirronismo influenciou vários pensadores, como Montaigne (1533-1592) e David Hume (1711-1776).
Os principais artigos de Porchat sobre o ceticismo encontram-se no livro "Rumo ao Ceticismo" (Unesp, 2004), que tem suscitado seminários e cursos em universidades brasileiras e na Argentina. "Em 40 anos publiquei dois livros. Minha escrita é muito policiada. Reescrevo muitas vezes. Isso me torna pouco produtivo", explica o autor. O zelo com as palavras já virou lenda e levou o filósofo José Arthur Giannotti a observar, no prefácio de "Ciência e Dialética em Aristóteles", que o amigo "de costume recusa-se a mudar uma vírgula do texto que lhe aparece acabado".
Para Porchat o ceticismo não teve importância pequena na história do pensamento. "Penso que teve uma importância enorme. Grandes nomes da filosofia moderna, tais como Descartes, Berkeley, Kant e Hegel, se deram como missão combater o ceticismo e declararam sempre que suas respectivas filosofias eram as únicas capazes de afastar a ameaça cética", explica. "É verdade que, com a exceção de Hume, não houve, depois do ceticismo antigo, grandes filósofos céticos. A influência do ceticismo foi mais difusa, mas nem por isso marcou menos a história do pensamento filosófico. A evolução das ciências humanas e naturais contribuiu bastante para eclosão de uma atitude que eu diria predominantemente 'cética' na filosofia contemporânea da ciência, ainda que, curiosamente, os filósofos da ciência ignorem o fato, por desconhecerem o pensamento cético."
Os céticos criaram uma escola de crítica ao dogmatismo e de valorização da vida comum. Para eles, a sabedoria não estava no conhecimento teórico especulativo, mas, sim, no conhecimento derivado da experiência e das artes inventadas pelos homens para transformar as coisas em seu benefício. Sexto Empírico e os filósofos gregos céticos do século II, entre os quais muitos eram médicos, deram uma contribuição considerável para a evolução da medicina na Grécia. Para Porchat os céticos ajudaram a introduzir o vocabulário da casualidade e a racionalidade científica no pensamento da Antiguidade, muito antes do iluminismo. Isso explica o renascimento do interesse pelo ceticismo grego, em curso na Europa e nos Estados Unidos desde os anos 70 e no Brasil desde os anos 90.
Contudo, paira sobre os céticos uma visão caricatural, alimentada pela ideia de que, por rejeitar toda e qualquer pretensão a um conhecimento absoluto ou à verdade de qualquer opinião, o ceticismo tornaria impossível para o cético viver a vida comum, já que toda ação pressupõe juízo e crenças.
"Alguns dicionários de filosofia evidenciam uma grande ignorância do ceticismo. Os céticos se atribuíram a missão de combater as crenças dogmáticas nas filosofias, nas ciências e também nas pessoas comuns. O senso comum, que é eminentemente relativo e varia de acordo com a época, a comunidade e as classes sociais, sempre esteve carregado de crenças dogmáticas. Assim, o ceticismo não o endossa e, em verdade, o critica acerbamente. O que os céticos pensam é que, não podendo optar por verdades dogmáticas, lhes resta suspender o juízo e viver a vida comum, sem crenças dogmáticas. Ao primado da razão dogmática sucede o primado da vida comum, que os céticos vivem de modo aparentemente igual a todos os homens, mas tendo, perante ela, uma atitude totalmente diferente da que eles comumente têm", diz Porchat.
A calúnia sobre o ceticismo seria outro caso de vitória da versão sobre o fato, uma deturpação destinada a neutralizar a crítica cética. Num artigo famoso, "O conflito das filosofias", Porchat mostra que "a história da filosofia brinda-nos com o desfile quase ininterrupto de grandes sistemas que, uns com os outros sempre incompatíveis, se apresentam animados, todos e cada um, da mesma pretensão de representar a verdadeira solução dos problemas do ser e do conhecer, a edição nova e definitiva da realidade". A filosofia tende a se alimentar continuamente de si mesma e da própria história e não somente das coisas e fatos do mundo exterior. Por isso, corre o risco de transformar-se em um grande jogo de palavras.
"O cético teme que a filosofia se converta num prodigioso e sublime jogo de palavras se embarca na produção de sistemas e doutrinas dogmáticas e não leva até o extremo o espírito crítico que, por outro lado, sempre explicitamente professou", explica. "O ceticismo se pretende, ao contrário, ser o legatário coerente da racionalidade crítica da filosofia ocidental". Para o cético, o objetivo da filosofia é servir a vida cotidiana e comum que todos os seres humanos vivem. "Sempre entendi que a filosofia é coisa do mundo, artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, descobrindo sua vocação eminentemente mundana, pensando-a a serviço dos seres humanos."
A atração da filosofia pelo dogmatismo não seria exceção, mas a regra. As filosofias estão todas identicamente empenhadas na elucidação da própria noção de filosofia. "Essa pretensão, que lhes é essencial, leva-as necessariamente a uma mútua e recíproca excomunhão e exclusão, na mesma medida em que pertence a cada filosofia o dever de impor-se como única e verdadeira." Não são poucos os espectadores que terminam por desencantar-se com a validade da tarefa filosófica, quando descobrem que a história da filosofia é a história do desacordo entre filósofos. "Constrange-os constatar que os filósofos, na verdade, nunca dialogam, apenas polemizam. Não se espera da discussão entre filósofos mais do que uma mútua benevolência na clarificação dos fundamentos e raízes da sua opinião irredutível."
E por que tanto desprezo pelo diálogo e o consenso? "Essa é uma questão difícil. O desacordo entre os filósofos provém da pretensão, que quase todos exibem, de oferecer-nos a única resposta correta à pergunta humana pelo 'Saber'. Parece-me que só a psicologia pode sugerir uma explicação, que teria a ver com problemas de autoafirmação, de ambição intelectual e de vaidade humana. Um desejo de ocupar, de alguma maneira, o lugar de Deus, uma necessidade de ser e aparecer como o único oráculo confiável dos deuses. Não são apenas as pessoas comuns que têm necessidade de crer", pondera o filósofo.
A soberba e a alienação de tantos intelectuais causa espécie. Cegos de não ver o mundo dos homens, surdos de não ouvir o discurso que proferem, muitos se perdem na verborragia. A propósito, Porchat lembra uma historieta antiga: "O filósofo Tales observava os astros e, olhos no céu, acabou por cair num poço, provocando o riso de uma jovem trácia, que zombou de sua preocupação pelas coisas celestes, quando o que estava a seus pés lhe escapava. Os filósofos converteram Tales em pai da filosofia e, desde Platão, fizeram desse cômico incidente o símbolo da sublime altanaria do espírito filosófico, que se ergue acima das vicissitudes da vida e cuja profundidade escapa à compreensão do vulgo. Mas cabe outra interpretação. O episódio serve como prenúncio daquela trágica alienação que levou a filosofia ao esquecimento do mundo. Por isso, a sabedoria da pequena trácia merece a minha simpatia."
Filosofia: O ceticismo tem muita coisa a dizer sobre a onda de desesperança gerada pelos escândalos políticos no Brasil, diz Oswaldo Porchat.Antes de tudo, um o Valor, de São Paulo
28/08/2009
Porchat: "A filosofia é artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, pensando-a a serviço dos seres humanos"
Um dos filósofos brasileiros mais interessantes e mais discretos raramente sai à rua do bairro de Santa Cecília, onde mora, em São Paulo. Em seu apartamento, Oswaldo Porchat Pereira exercita muito mais a mente do que as pernas apoiadas pela bengala lhe permitem. Aos 76 anos, o ex-professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - um advogado do ceticismo grego em pleno século XXI - inspira alunos, orienta pesquisas e teses e atrai cada vez mais a atenção dos estudiosos. Mas é com grande desconforto que assiste à crise de valores e à onda de ceticismo difuso gerada pela atual sequência de escândalos de corrupção política no país.
"O homem é naturalmente um amante da verdade, diz o filósofo cético Sexto Empírico. As pessoas comuns têm uma necessidade natural de crer e de acreditar", afirma Porchat. "Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada. É claro que o ceticismo filosófico faz uma crítica dessa propensão à crença e procura explicá-la. Mas nem por isso o cético deixará de reconhecer o papel histórico e social que as crenças representam."
Em tempo de desesperança, é bom lembrar duas coisas: primeiro, os momentos de crise moral na sociedade fazem parte da história da civilização; segundo, o ceticismo possui uma experiência milenar de crítica ao dogmatismo e à certeza dos detentores transitórios da "Verdade". "Quando lemos textos gregos antigos e romanos sobre os eventos políticos daquela época, é com enorme frequência que encontramos referências precisas à terrível corrupção no meio político das cidades, na Grécia, em Roma e em suas colônias", ressalta. "Sabemos que isso aconteceu em variados países e em variadas épocas. Mesmo quando não havia imprensa as populações acabavam mais ou menos cientes do que se passava, o que gerou protestos e revoltas populares."
Ailton Cruz / Gazeta de Alagoas / Folha Imagem
Lula cumprimenta Collor: "Dá grande conforto ao homem pensar que tem certezas e valores absolutos. Quando esses valores são postos em xeque de maneira tão radical pelo comportamento de personagens políticos, é natural que essa necessidade de crer seja abalada", afirma Porchat
No sentido vulgar do termo, a imprensa brasileira tem contribuído - e muito - para fomentar o "ceticismo" da população, acredita Porchat. Essa contribuição é salutar na medida em que enseja uma necessária demanda por mudança no estado de coisas. "Graças à imprensa, a classe média que tem acesso a ela pode inteirar-se do que está acontecendo. Infelizmente, as classes populares não têm acesso. A consciência estimula uma reação sadia. Temo, entretanto, que algumas vezes, ao menos, essa denúncia legítima de fatos de corrupção se exerça de maneira parcial, privilegiando certos grupos que não se censuram e focalizando mais outros em que porventura se tem interesse maior, no momento, em denunciar."
Especialista em Aristóteles, sobre quem defendeu sua tese de doutoramento, "Ciência e Dialética em Aristóteles" (publicada pela Unesp em 2000), Porchat acabou por render-se ao ceticismo grego e tornar-se um filósofo neopirrônico, termo derivado do nome de Pirro de Élida (365-275 a.C.), o fundador do ceticismo. Sistematizada nos séculos II e III pelo médico e filósofo grego Sexto Empírico, o pirronismo influenciou vários pensadores, como Montaigne (1533-1592) e David Hume (1711-1776).
Os principais artigos de Porchat sobre o ceticismo encontram-se no livro "Rumo ao Ceticismo" (Unesp, 2004), que tem suscitado seminários e cursos em universidades brasileiras e na Argentina. "Em 40 anos publiquei dois livros. Minha escrita é muito policiada. Reescrevo muitas vezes. Isso me torna pouco produtivo", explica o autor. O zelo com as palavras já virou lenda e levou o filósofo José Arthur Giannotti a observar, no prefácio de "Ciência e Dialética em Aristóteles", que o amigo "de costume recusa-se a mudar uma vírgula do texto que lhe aparece acabado".
Para Porchat o ceticismo não teve importância pequena na história do pensamento. "Penso que teve uma importância enorme. Grandes nomes da filosofia moderna, tais como Descartes, Berkeley, Kant e Hegel, se deram como missão combater o ceticismo e declararam sempre que suas respectivas filosofias eram as únicas capazes de afastar a ameaça cética", explica. "É verdade que, com a exceção de Hume, não houve, depois do ceticismo antigo, grandes filósofos céticos. A influência do ceticismo foi mais difusa, mas nem por isso marcou menos a história do pensamento filosófico. A evolução das ciências humanas e naturais contribuiu bastante para eclosão de uma atitude que eu diria predominantemente 'cética' na filosofia contemporânea da ciência, ainda que, curiosamente, os filósofos da ciência ignorem o fato, por desconhecerem o pensamento cético."
Os céticos criaram uma escola de crítica ao dogmatismo e de valorização da vida comum. Para eles, a sabedoria não estava no conhecimento teórico especulativo, mas, sim, no conhecimento derivado da experiência e das artes inventadas pelos homens para transformar as coisas em seu benefício. Sexto Empírico e os filósofos gregos céticos do século II, entre os quais muitos eram médicos, deram uma contribuição considerável para a evolução da medicina na Grécia. Para Porchat os céticos ajudaram a introduzir o vocabulário da casualidade e a racionalidade científica no pensamento da Antiguidade, muito antes do iluminismo. Isso explica o renascimento do interesse pelo ceticismo grego, em curso na Europa e nos Estados Unidos desde os anos 70 e no Brasil desde os anos 90.
Contudo, paira sobre os céticos uma visão caricatural, alimentada pela ideia de que, por rejeitar toda e qualquer pretensão a um conhecimento absoluto ou à verdade de qualquer opinião, o ceticismo tornaria impossível para o cético viver a vida comum, já que toda ação pressupõe juízo e crenças.
"Alguns dicionários de filosofia evidenciam uma grande ignorância do ceticismo. Os céticos se atribuíram a missão de combater as crenças dogmáticas nas filosofias, nas ciências e também nas pessoas comuns. O senso comum, que é eminentemente relativo e varia de acordo com a época, a comunidade e as classes sociais, sempre esteve carregado de crenças dogmáticas. Assim, o ceticismo não o endossa e, em verdade, o critica acerbamente. O que os céticos pensam é que, não podendo optar por verdades dogmáticas, lhes resta suspender o juízo e viver a vida comum, sem crenças dogmáticas. Ao primado da razão dogmática sucede o primado da vida comum, que os céticos vivem de modo aparentemente igual a todos os homens, mas tendo, perante ela, uma atitude totalmente diferente da que eles comumente têm", diz Porchat.
A calúnia sobre o ceticismo seria outro caso de vitória da versão sobre o fato, uma deturpação destinada a neutralizar a crítica cética. Num artigo famoso, "O conflito das filosofias", Porchat mostra que "a história da filosofia brinda-nos com o desfile quase ininterrupto de grandes sistemas que, uns com os outros sempre incompatíveis, se apresentam animados, todos e cada um, da mesma pretensão de representar a verdadeira solução dos problemas do ser e do conhecer, a edição nova e definitiva da realidade". A filosofia tende a se alimentar continuamente de si mesma e da própria história e não somente das coisas e fatos do mundo exterior. Por isso, corre o risco de transformar-se em um grande jogo de palavras.
"O cético teme que a filosofia se converta num prodigioso e sublime jogo de palavras se embarca na produção de sistemas e doutrinas dogmáticas e não leva até o extremo o espírito crítico que, por outro lado, sempre explicitamente professou", explica. "O ceticismo se pretende, ao contrário, ser o legatário coerente da racionalidade crítica da filosofia ocidental". Para o cético, o objetivo da filosofia é servir a vida cotidiana e comum que todos os seres humanos vivem. "Sempre entendi que a filosofia é coisa do mundo, artefato produzido pelos homens, em sua busca da felicidade. O ceticismo humaniza a razão, descobrindo sua vocação eminentemente mundana, pensando-a a serviço dos seres humanos."
A atração da filosofia pelo dogmatismo não seria exceção, mas a regra. As filosofias estão todas identicamente empenhadas na elucidação da própria noção de filosofia. "Essa pretensão, que lhes é essencial, leva-as necessariamente a uma mútua e recíproca excomunhão e exclusão, na mesma medida em que pertence a cada filosofia o dever de impor-se como única e verdadeira." Não são poucos os espectadores que terminam por desencantar-se com a validade da tarefa filosófica, quando descobrem que a história da filosofia é a história do desacordo entre filósofos. "Constrange-os constatar que os filósofos, na verdade, nunca dialogam, apenas polemizam. Não se espera da discussão entre filósofos mais do que uma mútua benevolência na clarificação dos fundamentos e raízes da sua opinião irredutível."
E por que tanto desprezo pelo diálogo e o consenso? "Essa é uma questão difícil. O desacordo entre os filósofos provém da pretensão, que quase todos exibem, de oferecer-nos a única resposta correta à pergunta humana pelo 'Saber'. Parece-me que só a psicologia pode sugerir uma explicação, que teria a ver com problemas de autoafirmação, de ambição intelectual e de vaidade humana. Um desejo de ocupar, de alguma maneira, o lugar de Deus, uma necessidade de ser e aparecer como o único oráculo confiável dos deuses. Não são apenas as pessoas comuns que têm necessidade de crer", pondera o filósofo.
A soberba e a alienação de tantos intelectuais causa espécie. Cegos de não ver o mundo dos homens, surdos de não ouvir o discurso que proferem, muitos se perdem na verborragia. A propósito, Porchat lembra uma historieta antiga: "O filósofo Tales observava os astros e, olhos no céu, acabou por cair num poço, provocando o riso de uma jovem trácia, que zombou de sua preocupação pelas coisas celestes, quando o que estava a seus pés lhe escapava. Os filósofos converteram Tales em pai da filosofia e, desde Platão, fizeram desse cômico incidente o símbolo da sublime altanaria do espírito filosófico, que se ergue acima das vicissitudes da vida e cuja profundidade escapa à compreensão do vulgo. Mas cabe outra interpretação. O episódio serve como prenúncio daquela trágica alienação que levou a filosofia ao esquecimento do mundo. Por isso, a sabedoria da pequena trácia merece a minha simpatia."
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Fidel diz que acordo Colômbia-EUA facilita intervenção americana na região
Notícia da Folha de São Paulo e da Reuters
Fidel diz que acordo Colômbia-EUA facilita intervenção americana na região
Publicidade
da Reuters, em Havana (Cuba)
O ex-ditador cubano Fidel Castro disse nesta quinta-feira que uma maior presença militar dos Estados Unidos na Colômbia serviria como plataforma para futuras intervenções americanas na região. Os dois países enfrentam duras críticas dos líderes de esquerda sul-americanos contra o acordo militar que permite aos americanos utilizar até sete bases militares colombianas.
Saiba mais sobre o acordo militar entre EUA e Colômbia
Base deverá ser usada para reabastecer aviões de carga
Texto abre espaço para EUA usarem mais de sete bases
O acordo deve dominar --apesar da resistência da Colômbia-- as discussões da reunião da Unasul (União de Nações da Sul-Americanas) nesta sexta-feira na Argentina. A reunião foi convocada depois da cúpula do órgão regional em Quito, no Equador, que, sem a presença do presidente colombiano, Alvaro Uribe, preferiu adiar a polêmica.
"O único propósito dos Estados Unidos com essas bases, é colocar a América Latina ao alcance de suas tropas em questão de horas", escreveu Fidel, 83, no site oficial Cubadebate.cu.
A expansão da presença militar americana na Colômbia tem incentivado declarações duras da Venezuela e preocupado até os governos mais moderados da América do Sul. Se aprovado, o acordo permitirá aos EUA manter 1.400 pessoas, entre militares e civis, em bases na Colômbia, pelos próximos dez anos. Os dois aliados afirmam que o acordo não é novo, mas apenas uma extensão do acordo de combate ao narcotráfico e às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) chamado de Plano Colômbia.
Fidel disse nesta quinta-feira que o combate ao narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de armas e outros argumentos dos EUA para aumentar sua presença militar na Colômbia são "cínicos".
No texto publicado quinta-feira na Internet, Fidel afirma que os EUA reativaram no ano passado a 4ª Frota de suas Forças Armadas para agredir a Venezuela.
Fidel diz que acordo Colômbia-EUA facilita intervenção americana na região
Publicidade
da Reuters, em Havana (Cuba)
O ex-ditador cubano Fidel Castro disse nesta quinta-feira que uma maior presença militar dos Estados Unidos na Colômbia serviria como plataforma para futuras intervenções americanas na região. Os dois países enfrentam duras críticas dos líderes de esquerda sul-americanos contra o acordo militar que permite aos americanos utilizar até sete bases militares colombianas.
Saiba mais sobre o acordo militar entre EUA e Colômbia
Base deverá ser usada para reabastecer aviões de carga
Texto abre espaço para EUA usarem mais de sete bases
O acordo deve dominar --apesar da resistência da Colômbia-- as discussões da reunião da Unasul (União de Nações da Sul-Americanas) nesta sexta-feira na Argentina. A reunião foi convocada depois da cúpula do órgão regional em Quito, no Equador, que, sem a presença do presidente colombiano, Alvaro Uribe, preferiu adiar a polêmica.
"O único propósito dos Estados Unidos com essas bases, é colocar a América Latina ao alcance de suas tropas em questão de horas", escreveu Fidel, 83, no site oficial Cubadebate.cu.
A expansão da presença militar americana na Colômbia tem incentivado declarações duras da Venezuela e preocupado até os governos mais moderados da América do Sul. Se aprovado, o acordo permitirá aos EUA manter 1.400 pessoas, entre militares e civis, em bases na Colômbia, pelos próximos dez anos. Os dois aliados afirmam que o acordo não é novo, mas apenas uma extensão do acordo de combate ao narcotráfico e às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) chamado de Plano Colômbia.
Fidel disse nesta quinta-feira que o combate ao narcotráfico, o terrorismo, o tráfico de armas e outros argumentos dos EUA para aumentar sua presença militar na Colômbia são "cínicos".
No texto publicado quinta-feira na Internet, Fidel afirma que os EUA reativaram no ano passado a 4ª Frota de suas Forças Armadas para agredir a Venezuela.
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
A guerra sem fim no Afeganistão
Notícia da Reuters e da Folha de São Paulo
Exército dos EUA nega que faça avaliação de jornalistas no Afeganistão
Publicidade
da Reuters, em Washington
Os militares dos Estados Unidos no Afeganistão se defenderam nesta quinta-feira das acusações de que uma empresa de comunicação esteja avaliando o trabalho de jornalistas e sugerindo formas de obter uma cobertura mais positiva no noticiário.
O "Stars and Stripes" (estrelas e listras, em referência à bandeira americana), jornal voltado para as tropas dos EUA, disse ter obtido documentos preparados para os militares pela empresa Rendon Group, de Washington, que qualificava o trabalho dos jornalistas como "positivo", "neutro" ou "negativo".
O jornal, parcialmente financiado pelo Pentágono, mas editorialmente independente, disse que os perfis dos jornalistas incluíam sugestões sobre como "neutralizar" reportagens negativas e obter uma cobertura favorável.
Um gráfico publicado pelo jornal reproduz o que seria um relatório da Rendon sobre a cobertura de um repórter para um grande jornal não identificado dos EUA até meados de maio. O trabalho desse repórter era considerado 83,3% neutro e 16,67% negativo a respeito das metas dos militares.
O comando militar dos Estados Unidos no Afeganistão disse que o Rendon Group presta vários serviços sob um contrato de um ano, avaliado em US$ 1,5 milhão, e que inclui uma cobertura do noticiário, mas não abrangeria a atribuição de notas aos jornalistas.
"Estou aqui desde junho e nunca usamos nenhum produto da Rendon para qualificar jornalistas específicos ou tentar influenciar suas reportagens", disse o contra-almirante Gregory Smith, diretor de comunicações das forças dos EUA no Afeganistão.
O comando disse que o Rendon Group compilava o histórico dos jornalistas, inclusive detalhes biográficos e tópicos recentes que eles cobriram, para preparar os líderes militares para entrevistas. Isso incluía resumos sob títulos como "Histórico", "Cobertura" e "Perspectiva, Estilo e Tom".
No entanto, o comando militar disse que jamais usou tais informações para determinar se um repórter merecia a oportunidade de acompanhar uma unidade militar ou entrevistar um oficial.
A reportagem do Stars and Stripes, publicada na quarta-feira, gerou condenação de organizações que representam jornalistas nos EUA e no mundo.
"Esta realização de perfis de jornalistas compromete ainda mais a independência da mídia", disse Aidan White, secretário-geral da Federação Internacional dos Jornalistas, com sede em Bruxelas.
"Isso tira qualquer pretensão de que o Exército está interessado em ajudar os jornalistas a trabalharem livremente. Sugere que eles estão mais interessados em propaganda do que em uma reportagem honesta."
Segundo o Rendon Group, as menções a textos positivos, negativos e neutros se referiam a como o conteúdo afetava os objetivos militares. Coberturas "neutras para negativas" se referiam, por exemplo, a relatos sobre seqüestros e atentados suicidas.
"A informação e análise que geramos está desenvolvida pela quantificação desses temas e tópicos, e não pela classificação dos repórteres", disse nota divulgada no site da empresa.
Exército dos EUA nega que faça avaliação de jornalistas no Afeganistão
Publicidade
da Reuters, em Washington
Os militares dos Estados Unidos no Afeganistão se defenderam nesta quinta-feira das acusações de que uma empresa de comunicação esteja avaliando o trabalho de jornalistas e sugerindo formas de obter uma cobertura mais positiva no noticiário.
O "Stars and Stripes" (estrelas e listras, em referência à bandeira americana), jornal voltado para as tropas dos EUA, disse ter obtido documentos preparados para os militares pela empresa Rendon Group, de Washington, que qualificava o trabalho dos jornalistas como "positivo", "neutro" ou "negativo".
O jornal, parcialmente financiado pelo Pentágono, mas editorialmente independente, disse que os perfis dos jornalistas incluíam sugestões sobre como "neutralizar" reportagens negativas e obter uma cobertura favorável.
Um gráfico publicado pelo jornal reproduz o que seria um relatório da Rendon sobre a cobertura de um repórter para um grande jornal não identificado dos EUA até meados de maio. O trabalho desse repórter era considerado 83,3% neutro e 16,67% negativo a respeito das metas dos militares.
O comando militar dos Estados Unidos no Afeganistão disse que o Rendon Group presta vários serviços sob um contrato de um ano, avaliado em US$ 1,5 milhão, e que inclui uma cobertura do noticiário, mas não abrangeria a atribuição de notas aos jornalistas.
"Estou aqui desde junho e nunca usamos nenhum produto da Rendon para qualificar jornalistas específicos ou tentar influenciar suas reportagens", disse o contra-almirante Gregory Smith, diretor de comunicações das forças dos EUA no Afeganistão.
O comando disse que o Rendon Group compilava o histórico dos jornalistas, inclusive detalhes biográficos e tópicos recentes que eles cobriram, para preparar os líderes militares para entrevistas. Isso incluía resumos sob títulos como "Histórico", "Cobertura" e "Perspectiva, Estilo e Tom".
No entanto, o comando militar disse que jamais usou tais informações para determinar se um repórter merecia a oportunidade de acompanhar uma unidade militar ou entrevistar um oficial.
A reportagem do Stars and Stripes, publicada na quarta-feira, gerou condenação de organizações que representam jornalistas nos EUA e no mundo.
"Esta realização de perfis de jornalistas compromete ainda mais a independência da mídia", disse Aidan White, secretário-geral da Federação Internacional dos Jornalistas, com sede em Bruxelas.
"Isso tira qualquer pretensão de que o Exército está interessado em ajudar os jornalistas a trabalharem livremente. Sugere que eles estão mais interessados em propaganda do que em uma reportagem honesta."
Segundo o Rendon Group, as menções a textos positivos, negativos e neutros se referiam a como o conteúdo afetava os objetivos militares. Coberturas "neutras para negativas" se referiam, por exemplo, a relatos sobre seqüestros e atentados suicidas.
"A informação e análise que geramos está desenvolvida pela quantificação desses temas e tópicos, e não pela classificação dos repórteres", disse nota divulgada no site da empresa.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Chávez niega expansionismo de su revolución en la región
Chávez niega expansionismo de su revolución en la región
El presidente venezolano asegura que su plan es hacer llegar a Colombia las verdaderas ideas de su revolución, "que busca la paz".
Fonte: http://elespectador.com/noticias/politica/articulo158103-chavez-niega-expansionismo-de-su-revolucion-region
El presidente venezolano, Hugo Chávez, negó est emiércoles que desarrolle un proyecto "expansionista", como le acusó Colombia, y reiteró su intención de promover "bases de paz" en los dos países para "neutralizar cualquier pretensión" de llevarlos a una guerra.
"Es el colmo del cinismo, ellos (Colombia) que van a instalar allí siete bases yanquis, prestando el territorio sagrado de Colombia para el expansionismo imperial, ahora me acusan a mí, nos acusan a nosotros de expansionismo", declaró Chávez.
El Gobierno del mandatario colombiano, Álvaro Uribe, presentó este miércoles ante la Organización de Estados Americanos (OEA) la "más enérgica protesta" por lo que catalogó como el "proyecto intervencionista" de Chávez en los asuntos internos de su país.
Esa fue la respuesta de Bogotá a declaraciones del gobernante venezolano este domingo, en las que pidió a su ministra de Información, Blanca Eckout, que "haga todo lo necesario" para que sus mensajes y sus planteamientos sean conocidos por el pueblo colombiano.
Chávez insistió este miércoles en sus planes de hacer llegar al "pueblo colombiano" las "verdaderas ideas" de su "revolución", que busca la "paz y el desarrollo del ser humano", y que es víctima de una campaña de "mentiras" por parte de la "oligarquía colombiana" y sus "medios de comunicación".
"Eso no es ningún expansionismo, es decir la verdad ... el pueblo colombiano tiene derecho a saber la verdad" , declaró y volvió a negar que su Gobierno apoye a la guerrilla colombiana o le facilite armas.
Venezuela y Colombia viven una nueva crisis bilateral derivada del acuerdo militar entre Bogotá y Washington, que el Gobierno de Caracas considera una "amenaza" para la "revolución" bolivariana.
Ese convenio prevé, según Bogotá y Washington, el uso de siete bases militares colombianas por parte de militares estadounidenses, sin que ello perjudique a los vecinos, lo que Chávez califica de "mentira" e insiste en que se trata de la "instalación" permanente de fuerzas "yanquis" para "amenazar a Venezuela y toda la región.
El jefe de Estado venezolano dijo que con la denuncia sobre el presunto expansionismo de su Gobierno, Bogotá está tratando de desviar la atención y de desprestigiar su " maravillosa idea" de instalar " bases de paz" en ambos países
"Sabemos que no va a rectificar el Gobierno de Colombia (...) han dicho que ya el acuerdo (con Estados Unidos) es un hecho, y las bases de paz serán los instrumentos para impedir que (ese convenio) se concrete en acciones de guerra", indicó Chávez.
"Las bases de paz servirán de escenario cultural para que los pueblos venezolano y colombiano puedan levantar una ola de paz, de espiritualidad y con ello neutralizar cualquier pretensión de llevar a Venezuela y a Colombia a un conflicto armado", dijo.
El mandatario hizo esas afirmaciones en una reunión en el palacio de Gobierno, en Caracas, transmitida por la televisión estatal, durante la cual hizo un pase vía satélite hasta la Guajira venezolana para inaugurar allí una llamada base de paz.
Sobre el convenio de Colombia y EE.UU., insistió en que revelará detalles del mismo que estarían contenidos en supuestos documentos militares estadounidenses que posee y que presentará en la reunión extraordinaria que el próximo viernes sostendrá la Unasur en Argentina.
Esos informes darían cuenta de los verdaderos objetivos de las unidades que se estacionarían en Colombia y de sus misiones presuntamente intervencionistas en toda Suramérica, según Chávez.
"Mañana nosotros salimos hacia Bariloche", localidad argentina, a la cumbre de la Unión de Naciones Suramericanas (Unasur) convocada para analizar la naturaleza del acuerdo militar y las posibles consecuencias para sus miembros.
"Esperemos que el presidente de Colombia asista, ha dicho que va a asistir, ojalá", repitió el gobernante de Venezuela.
domingo, 23 de agosto de 2009
Democracia e internet
ASSINE BATE-PAPO BUSCA E-MAIL SAC SHOPPING UOL
Folha de São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009
Comunidades falsificadas
Filósofo espanhol diz que a utopia de democracia direta e igualdade total na internet é mentirosa e ameaça minar as práticas de representação e participação políticas reais
Com a emergência de gigantescas redes sociais virtuais, como o Facebook, a internet configura a sua utopia máxima: todos somos iguais. E, se somos todos iguais, não precisamos mais de eleições, pois não precisamos ser representados. Todos nos representamos no espaço democrático da internet.
O raciocínio é tentador, mas, para o filósofo espanhol Jesús Martín-Barbero, é mentiroso -e temerário. "Nunca fomos nem seremos iguais", ele diz, e na vida cotidiana continuaremos dependendo de mediações para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação de partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet como um dos fatores de desestabilização do mundo hoje, que não pode ser pensado por disciplinas estanques. Mundo, aliás, tomado pela incerteza e pelo medo, que nos faz sonhar com a relação não mediada das comunidades pré-modernas. O filósofo conversou com a Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.
FOLHA - Desde 1987, quando o sr. lançou sua obra de maior repercussão ["Dos Meios às Mediações", ed. UFRJ], até hoje, o que mudou na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO - Estamos em um momento de pensar o conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza intelectual dos modernos se vê hoje atravessada por outra sensação: o medo. A sociedade vive uma espécie de volta ao medo dos pré-modernos, que era o medo da natureza, da insegurança, de uma tormenta, um terremoto. Agora vivemos em uma espécie de mundo que nos atemoriza e desconcerta.
O medo vem, por exemplo, da ecologia: o que vai acontecer com o planeta, o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema hoje, como aos pré-modernos. Depois vem o tema da violência urbana, a insegurança urbana. Por toda cidade que passo, de 20 mil a 20 milhões de habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança, que nos afeta cada vez mais, aparece a vida laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande instituição moderna que deu segurança às pessoas, vamos para um mundo em que o sistema necessita cada vez menos de mão de obra. O mundo do trabalho se desconfigurou como mundo de produção do sentido da vida.
FOLHA - Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de comunidade? Como ela aparece em redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO - Acho que ainda não temos palavras para nomear esse fenômeno. Falamos em rede social, mas o que significa social aí? Apenas uma rede de muita gente. Não necessariamente em sociedade. Há diferenças entre o que foi a comunidade pré-moderna e o que foi o conceito de sociedade moderna.
A comunidade era orgânica, havia muitas ligações entre os seus membros, religiosas, laborais. Renato Ortiz [sociólogo e professor na Universidade Estadual de Campinas] faz uma crítica muito bem feita a um livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é como uma comunidade imaginada ["Comunidades Imaginadas", ed. Companhia das Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais para a criação da ideia de nação. Mas Renato Ortiz diz que há muito de verdade e muito de mentira nisso. O que acontece é que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a comunidade. Era uma comunidade imaginada no sentido de querer ter algo de comunidade, e não só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se romperam todos os laços da comunidade pré-moderna. Eu diria que há aí um ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial. Essa é um pouco a utopia da internet.
FOLHA - Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO - A utopia da internet é que já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos iguais. E portanto a democracia de todos é mentira. Seguimos necessitando de mediações de representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.
FOLHA - As comunidades virtuais da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO - Quando começamos a falar de comunidades de leitores, de espectadores de novela, estamos falando de algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que gosta do mesmo em um mesmo momento. Se a energia elétrica acaba, toda essa gente cai.
É uma comunidade invisível, mas é real, tão real que é sondável, podemos pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade. Nesse sentido é muito difícil proibir o uso da expressão "comunidade" para o Facebook. Mas o que me ocorre ao usarmos o termo "comunidade" para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que eram uma forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do outro. Outra chave: o parentesco. A família extensa sumiu. Hoje, uma família é um casal. O que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos numa situação em que o velho morreu e o novo não tem figura ainda, que é a ideia de crise de [Antonio] Gramsci.
FOLHA - A proposta de sites como o Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO - Creio que há pessoas no Facebook que, pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade. É uma questão importante, mas não podemos esquecer da maneira como nos relacionamos com o Facebook.
Um inglês que passa boa parte de sua vida só, em um pub, com sua grande cerveja, desfruta muito desse modo de vida. Nós, latinos, desfrutamos mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real, mas a maneira como nos relacionamos, como o usamos, é muito distinta. O Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, mas nada mais.
FOLHA - De que maneira essas questões devem transformar os meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO - Não sei para onde vamos, mas em muito poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos hoje. A televisão por programação horária é herdeira do rádio, que foi o primeiro meio que começou a nos organizar a vida cotidiana. Na Idade Média, o campanário era que dizia qual era a hora de levantar, de comer, de trabalhar, de dormir. A rádio foi isso.
A rádio nos foi pautando a vida cotidiana. O noticiário, a radionovela, os espaços de publicidade... Essa relação que os meios tiveram com a vida cotidiana, organizada em função do tempo, a manhã, a tarde, a noite, o fim de semana, as férias, isso vai acabar. Teremos uma oferta de conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da rádio, a rádio imitadora da imprensa escrita... Creio que vamos para uma mudança muito profunda, porque o que entra em crise é o papel de organização da temporalidade.
FOLHA - A ascensão da internet e da oferta de informação por conteúdos suscita outra questão, ligada à formação do cidadão. Não corremos o risco de que um fã de séries de TV, por exemplo, só busque notícias sobre o tema, alienando-se do que acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO - Antigamente, todos líamos, escutávamos e víamos o mesmo. Isso para mim era muito importante. De certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres -sempre defendi isso como um aspecto de formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me que isso era uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um entorno comunicativo, as mudanças não são pontuais como antes. A questão não é se eu abro ou não abro o correio. Não quero ser catastrofista, mas o tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto que sou visto. Em quanto mais páginas entro, mais gente me vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas e tantas línguas que já não sabemos o que queremos. Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o que fará o sistema educacional para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras desse entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado. Há muitas coisas a repensar radicalmente.
Folha de São Paulo, domingo, 23 de agosto de 2009
Comunidades falsificadas
Filósofo espanhol diz que a utopia de democracia direta e igualdade total na internet é mentirosa e ameaça minar as práticas de representação e participação políticas reais
Com a emergência de gigantescas redes sociais virtuais, como o Facebook, a internet configura a sua utopia máxima: todos somos iguais. E, se somos todos iguais, não precisamos mais de eleições, pois não precisamos ser representados. Todos nos representamos no espaço democrático da internet.
O raciocínio é tentador, mas, para o filósofo espanhol Jesús Martín-Barbero, é mentiroso -e temerário. "Nunca fomos nem seremos iguais", ele diz, e na vida cotidiana continuaremos dependendo de mediações para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação de partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet como um dos fatores de desestabilização do mundo hoje, que não pode ser pensado por disciplinas estanques. Mundo, aliás, tomado pela incerteza e pelo medo, que nos faz sonhar com a relação não mediada das comunidades pré-modernas. O filósofo conversou com a Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.
FOLHA - Desde 1987, quando o sr. lançou sua obra de maior repercussão ["Dos Meios às Mediações", ed. UFRJ], até hoje, o que mudou na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO - Estamos em um momento de pensar o conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza intelectual dos modernos se vê hoje atravessada por outra sensação: o medo. A sociedade vive uma espécie de volta ao medo dos pré-modernos, que era o medo da natureza, da insegurança, de uma tormenta, um terremoto. Agora vivemos em uma espécie de mundo que nos atemoriza e desconcerta.
O medo vem, por exemplo, da ecologia: o que vai acontecer com o planeta, o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema hoje, como aos pré-modernos. Depois vem o tema da violência urbana, a insegurança urbana. Por toda cidade que passo, de 20 mil a 20 milhões de habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança, que nos afeta cada vez mais, aparece a vida laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande instituição moderna que deu segurança às pessoas, vamos para um mundo em que o sistema necessita cada vez menos de mão de obra. O mundo do trabalho se desconfigurou como mundo de produção do sentido da vida.
FOLHA - Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de comunidade? Como ela aparece em redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO - Acho que ainda não temos palavras para nomear esse fenômeno. Falamos em rede social, mas o que significa social aí? Apenas uma rede de muita gente. Não necessariamente em sociedade. Há diferenças entre o que foi a comunidade pré-moderna e o que foi o conceito de sociedade moderna.
A comunidade era orgânica, havia muitas ligações entre os seus membros, religiosas, laborais. Renato Ortiz [sociólogo e professor na Universidade Estadual de Campinas] faz uma crítica muito bem feita a um livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é como uma comunidade imaginada ["Comunidades Imaginadas", ed. Companhia das Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais para a criação da ideia de nação. Mas Renato Ortiz diz que há muito de verdade e muito de mentira nisso. O que acontece é que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a comunidade. Era uma comunidade imaginada no sentido de querer ter algo de comunidade, e não só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se romperam todos os laços da comunidade pré-moderna. Eu diria que há aí um ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial. Essa é um pouco a utopia da internet.
FOLHA - Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO - A utopia da internet é que já não necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos iguais. E portanto a democracia de todos é mentira. Seguimos necessitando de mediações de representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.
FOLHA - As comunidades virtuais da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO - Quando começamos a falar de comunidades de leitores, de espectadores de novela, estamos falando de algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que gosta do mesmo em um mesmo momento. Se a energia elétrica acaba, toda essa gente cai.
É uma comunidade invisível, mas é real, tão real que é sondável, podemos pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade. Nesse sentido é muito difícil proibir o uso da expressão "comunidade" para o Facebook. Mas o que me ocorre ao usarmos o termo "comunidade" para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que eram uma forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do outro. Outra chave: o parentesco. A família extensa sumiu. Hoje, uma família é um casal. O que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos numa situação em que o velho morreu e o novo não tem figura ainda, que é a ideia de crise de [Antonio] Gramsci.
FOLHA - A proposta de sites como o Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO - Creio que há pessoas no Facebook que, pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade. É uma questão importante, mas não podemos esquecer da maneira como nos relacionamos com o Facebook.
Um inglês que passa boa parte de sua vida só, em um pub, com sua grande cerveja, desfruta muito desse modo de vida. Nós, latinos, desfrutamos mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real, mas a maneira como nos relacionamos, como o usamos, é muito distinta. O Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, mas nada mais.
FOLHA - De que maneira essas questões devem transformar os meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO - Não sei para onde vamos, mas em muito poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos hoje. A televisão por programação horária é herdeira do rádio, que foi o primeiro meio que começou a nos organizar a vida cotidiana. Na Idade Média, o campanário era que dizia qual era a hora de levantar, de comer, de trabalhar, de dormir. A rádio foi isso.
A rádio nos foi pautando a vida cotidiana. O noticiário, a radionovela, os espaços de publicidade... Essa relação que os meios tiveram com a vida cotidiana, organizada em função do tempo, a manhã, a tarde, a noite, o fim de semana, as férias, isso vai acabar. Teremos uma oferta de conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da rádio, a rádio imitadora da imprensa escrita... Creio que vamos para uma mudança muito profunda, porque o que entra em crise é o papel de organização da temporalidade.
FOLHA - A ascensão da internet e da oferta de informação por conteúdos suscita outra questão, ligada à formação do cidadão. Não corremos o risco de que um fã de séries de TV, por exemplo, só busque notícias sobre o tema, alienando-se do que acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO - Antigamente, todos líamos, escutávamos e víamos o mesmo. Isso para mim era muito importante. De certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os pobres -sempre defendi isso como um aspecto de formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me que isso era uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um entorno comunicativo, as mudanças não são pontuais como antes. A questão não é se eu abro ou não abro o correio. Não quero ser catastrofista, mas o tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto que sou visto. Em quanto mais páginas entro, mais gente me vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas e tantas línguas que já não sabemos o que queremos. Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o que fará o sistema educacional para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras desse entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado. Há muitas coisas a repensar radicalmente.
Interpretando Kant
Entrevista: Filósofo e ex-ministro da Educação da França guia a leitura de quem queira mergulhar na obra do pensador que pautou o debate de ideias dos últimos 200 anosKant pelas mãos de Ferry
Por Diego Viana, para o Valor, de Paris
21/08/2009
Luc Ferry: "A filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida"
O pensamento de Immanuel Kant, o "mestre de Königsberg", está no centro da filosofia moderna. Suas três maiores obras, "Crítica da Razão Pura", "Crítica da Razão Prática" e "Crítica do Julgamento", publicadas entre 1781 e 1790, marcaram uma ruptura definitiva com a metafísica clássica, herdada dos gregos, e inauguraram a era do humanismo secular. Em pleno Século das Luzes, os escritos éticos, políticos e estéticos de Kant pautaram em grande medida o debate de ideias dos últimos 200 anos.
A leitura do filósofo alemão não é fácil, mas Luc Ferry, um dos principais disseminadores da filosofia para o público geral na França, assumiu a tarefa de explicar suas principais ideias no livro "Kant: uma Leitura das Três Críticas" (Difel). Embora escreva para leigos, Ferry faz questão de não simplificar nem banalizar o pensamento que interpreta. Ao contrário, seu objetivo é guiar a leitura de quem queira mergulhar por inteiro na obra de Kant. Já na introdução, ele adverte: "É impossível entrar na filosofia sem tomar o tempo de entender em profundidade ao menos um grande filósofo".
Conhecido por suas críticas ao pós-modernismo, às correntes mais ingênuas do pensamento ecológico e à globalização sem controle, Luc Ferry é atuante em política como membro da UMP, partido do governo francês. Ele foi ministro da Educação entre 2002 e 2004. Nesta entrevista, Ferry comenta a política da globalização, os paradoxos da modernidade e a promiscuidade entre a arte contemporânea e o mercado.
Valor: Ainda se pode conceber uma filosofia que produza um sistema como o de Kant? O que pode a filosofia hoje?
Reuters
Protesto contra a caça de animais na Europa: para Ferry, ecologistas põem o dedo numa ferida maior que a questão ambiental, algo que chama de "privação democrática"
Luc Ferry: A forma do "grande sistema" é prisioneira de uma ideia herdada da teologia, segundo a qual a filosofia deve totalizar todos os saberes sob a égide de um princípio único. Ninguém pode mais pensar assim. Isso dito, a filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida. Em outras palavras: o que é o conhecimento; como definir o bem e o mal, o justo e o injusto; e como pensar o sentido de nossa vida. Como, em particular, atingir uma serenidade que passa sempre, ontem como hoje, por uma vitória sobre os medos, principalmente o medo da morte, que nos impede de levar uma boa vida. Nesse sentido, o ideal da "grande filosofia" ainda é atual, mesmo se não assume mais a forma metafísica e ilusória do "sistema".
Valor: Kant transpõe a revolução copernicana para a filosofia. De lá para cá, tivemos outras revoluções científicas, como a mecânica quântica e a cibernética. Como elas afetam o kantismo?
Ferry: Articular a filosofia de Kant com a ciência moderna é perfeitamente natural. O mesmo acontece com Newton, que constitui uma parte da física moderna. É preciso compreender as revoluções newtoniana e kantiana por meio do terremoto intelectual e moral que representa a passagem da cosmologia grega para a física moderna, a ruptura abissal que separa o "mundo fechado" dos antigos e o "universo infinito" de Galileu e Newton. Toda a filosofia de Kant tem um único objetivo: construir o novo edifício do humanismo moderno por cima das ruínas de uma ordem cósmica esgotada. Com a ideia de cosmos, os gregos consideravam o universo como um ser ordenado e animado, cujos órgãos foram concebidos em harmonia com o conjunto. Era isso que a física dos antigos conclamava os humanos a reconhecer e sua ética lhes recomendava imitar. Depois da revolução científica, o universo é um caos infinito e desencantado, sem outro valor senão o que lhe atribuímos. É um campo de forças que se organizam, claro, mas em choque, sem harmonia nem significado. É daí que parte Kant: se o mundo é um caos, um tecido conflituoso de forças, passa a ser "do exterior", pela força do espírito, que o sábio reintroduz a ordem e o sentido na realidade. Essa será a tarefa da ciência moderna. Ela não reside mais na contemplação, que os gregos chamavam de "teoria", mas numa elaboração ativa de leis que deem coerência a um universo desencantado.
Valor: O último capítulo trata da ideia de racionalização política no idealismo alemão em face da Revolução Francesa. Hoje, a era das revoluções está superada, mas no lugar do realismo o que se vê é desilusão com a política. Por quê?
Ferry: A ideia revolucionária morreu, desqualificada para sempre pelo fracasso da URSS e demais regimes totalitários. Isso dito, é verdade que a globalização liberal suscita grunhidos de ódio, agrupados em torno da ideia multiforme do altermundialismo. Nos anos 30, na Europa, o mundo liberal provocava dois tipos de crítica: as que evocavam a restauração de um passado perdido e as que imaginavam um "futuro radiante". Umas desembocaram no fascismo; as outras, no sovietismo. Esses modelos de referência foram desacreditados pela história. Porém, não sobrou muito mais que o gesto da crítica, depois que os modelos positivos, que podiam lhe conferir um sentido "construtivo", desapareceram. Teremos de aprender a fazer uma "crítica interna" ao mundo democrático-liberal. Por exemplo, exigir que esse modelo cumpra as promessas de liberdade e igualdade, bastante negligenciadas. Daqui por diante, a crítica interna será a única realmente subversiva.
Valor: O pós-modernismo, que o sr. critica em "O Pensamento 68", está morto? O que sobra depois que tudo foi relativizado?
Ferry: Sim, está morto e enterrado, não inspira mais nada, nem mesmo a crítica. Aliás, toda a história das vanguardas e da "boemia", sobre a qual estou escrevendo um novo livro, repousa sobre um paradoxo. Na fachada, eram "rebeldes" e "antiburgueses". Na verdade, encorajaram a emergência da sociedade de consumo. De fato, era preciso que os valores tradicionais fossem desconstruídos por jovens rebeldes para que os velhos burgueses pudessem enriquecer. Por quê? Isso ficou claro hoje: se minhas filhas tivessem os valores de minha bisavó, elas não comprariam três celulares por ano! Era preciso derrubar as tradições para que o consumo vencesse. Não é por acaso que, hoje, as corporações são os maiores promotores da arte contemporânea!
Valor: O que a estética de Kant diria sobre a arte contemporânea?
Ferry: A arte se afastou explicitamente da ideia de beleza que Kant tentava pensar. Kandinsky e Schoenberg, em 1910, repetem sem cessar que é uma noção "ultrapassada" e derrisória. A estética de Kant é dominada pela questão, na minha opinião apaixonante, de definir os critérios do belo. Kant e Hume se perguntam, por exemplo, como podemos dizer que "o gosto é subjetivo", se há um consenso tão vasto sobre as "grandes obras", mais até do que na ciência. Não se ouve muito que "Mozart é uma porcaria" ou "Vermeer é muito feio". Já a arte contemporânea se tornou uma arte "de mercado". É comprada pelos grandes burgueses, fascinados com a lógica da inovação pela inovação, que pertencia aos artistas "boêmios", mas virou o pão de cada dia desses capitães da indústria. O executivo que vende celulares sabe que, se não inovar constantemente, como Duchamp ou Picasso, está fora do mercado. A arte contemporânea não se interessa pela ideia de beleza. Os empresários tampouco. A originalidade a qualquer preço é mais importante. Nisso estão de acordo com nossa época de globalização liberal.
Valor: As últimas eleições europeias consagraram os partidos ecologistas. A ecologia pode ser um programa verdadeiramente político?
Ferry: Não. Mas ela põe o dedo numa ferida maior, não tanto a questão ambiental, mas aquilo que chamo de "privação democrática". No universo globalizado, as políticas nacionais são privadas, pouco a pouco, de todos os meios eficazes de ação e reforma. Os altermundialistas se enganam ao acreditar que, atrás dos mercados financeiros, há "peixes grandes", "os poderosos", que, como marionetistas, manipulam às escondidas. Se fosse verdade, seria ótimo: pelo menos, haveria um culpado! Mas isso não passa de uma visão ingênua. O mundo, dominado pelos mercados financeiros, nos escapa e a questão da "governança mundial" é mais importante que nunca. Como retomar as rédeas? Eis a questão central da política moderna e mesmo a única que importa.
Por Diego Viana, para o Valor, de Paris
21/08/2009
Luc Ferry: "A filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida"
O pensamento de Immanuel Kant, o "mestre de Königsberg", está no centro da filosofia moderna. Suas três maiores obras, "Crítica da Razão Pura", "Crítica da Razão Prática" e "Crítica do Julgamento", publicadas entre 1781 e 1790, marcaram uma ruptura definitiva com a metafísica clássica, herdada dos gregos, e inauguraram a era do humanismo secular. Em pleno Século das Luzes, os escritos éticos, políticos e estéticos de Kant pautaram em grande medida o debate de ideias dos últimos 200 anos.
A leitura do filósofo alemão não é fácil, mas Luc Ferry, um dos principais disseminadores da filosofia para o público geral na França, assumiu a tarefa de explicar suas principais ideias no livro "Kant: uma Leitura das Três Críticas" (Difel). Embora escreva para leigos, Ferry faz questão de não simplificar nem banalizar o pensamento que interpreta. Ao contrário, seu objetivo é guiar a leitura de quem queira mergulhar por inteiro na obra de Kant. Já na introdução, ele adverte: "É impossível entrar na filosofia sem tomar o tempo de entender em profundidade ao menos um grande filósofo".
Conhecido por suas críticas ao pós-modernismo, às correntes mais ingênuas do pensamento ecológico e à globalização sem controle, Luc Ferry é atuante em política como membro da UMP, partido do governo francês. Ele foi ministro da Educação entre 2002 e 2004. Nesta entrevista, Ferry comenta a política da globalização, os paradoxos da modernidade e a promiscuidade entre a arte contemporânea e o mercado.
Valor: Ainda se pode conceber uma filosofia que produza um sistema como o de Kant? O que pode a filosofia hoje?
Reuters
Protesto contra a caça de animais na Europa: para Ferry, ecologistas põem o dedo numa ferida maior que a questão ambiental, algo que chama de "privação democrática"
Luc Ferry: A forma do "grande sistema" é prisioneira de uma ideia herdada da teologia, segundo a qual a filosofia deve totalizar todos os saberes sob a égide de um princípio único. Ninguém pode mais pensar assim. Isso dito, a filosofia ainda tem o dever de responder às três questões fundamentais da teoria, da ética e da sabedoria, isto é, do sentido da vida. Em outras palavras: o que é o conhecimento; como definir o bem e o mal, o justo e o injusto; e como pensar o sentido de nossa vida. Como, em particular, atingir uma serenidade que passa sempre, ontem como hoje, por uma vitória sobre os medos, principalmente o medo da morte, que nos impede de levar uma boa vida. Nesse sentido, o ideal da "grande filosofia" ainda é atual, mesmo se não assume mais a forma metafísica e ilusória do "sistema".
Valor: Kant transpõe a revolução copernicana para a filosofia. De lá para cá, tivemos outras revoluções científicas, como a mecânica quântica e a cibernética. Como elas afetam o kantismo?
Ferry: Articular a filosofia de Kant com a ciência moderna é perfeitamente natural. O mesmo acontece com Newton, que constitui uma parte da física moderna. É preciso compreender as revoluções newtoniana e kantiana por meio do terremoto intelectual e moral que representa a passagem da cosmologia grega para a física moderna, a ruptura abissal que separa o "mundo fechado" dos antigos e o "universo infinito" de Galileu e Newton. Toda a filosofia de Kant tem um único objetivo: construir o novo edifício do humanismo moderno por cima das ruínas de uma ordem cósmica esgotada. Com a ideia de cosmos, os gregos consideravam o universo como um ser ordenado e animado, cujos órgãos foram concebidos em harmonia com o conjunto. Era isso que a física dos antigos conclamava os humanos a reconhecer e sua ética lhes recomendava imitar. Depois da revolução científica, o universo é um caos infinito e desencantado, sem outro valor senão o que lhe atribuímos. É um campo de forças que se organizam, claro, mas em choque, sem harmonia nem significado. É daí que parte Kant: se o mundo é um caos, um tecido conflituoso de forças, passa a ser "do exterior", pela força do espírito, que o sábio reintroduz a ordem e o sentido na realidade. Essa será a tarefa da ciência moderna. Ela não reside mais na contemplação, que os gregos chamavam de "teoria", mas numa elaboração ativa de leis que deem coerência a um universo desencantado.
Valor: O último capítulo trata da ideia de racionalização política no idealismo alemão em face da Revolução Francesa. Hoje, a era das revoluções está superada, mas no lugar do realismo o que se vê é desilusão com a política. Por quê?
Ferry: A ideia revolucionária morreu, desqualificada para sempre pelo fracasso da URSS e demais regimes totalitários. Isso dito, é verdade que a globalização liberal suscita grunhidos de ódio, agrupados em torno da ideia multiforme do altermundialismo. Nos anos 30, na Europa, o mundo liberal provocava dois tipos de crítica: as que evocavam a restauração de um passado perdido e as que imaginavam um "futuro radiante". Umas desembocaram no fascismo; as outras, no sovietismo. Esses modelos de referência foram desacreditados pela história. Porém, não sobrou muito mais que o gesto da crítica, depois que os modelos positivos, que podiam lhe conferir um sentido "construtivo", desapareceram. Teremos de aprender a fazer uma "crítica interna" ao mundo democrático-liberal. Por exemplo, exigir que esse modelo cumpra as promessas de liberdade e igualdade, bastante negligenciadas. Daqui por diante, a crítica interna será a única realmente subversiva.
Valor: O pós-modernismo, que o sr. critica em "O Pensamento 68", está morto? O que sobra depois que tudo foi relativizado?
Ferry: Sim, está morto e enterrado, não inspira mais nada, nem mesmo a crítica. Aliás, toda a história das vanguardas e da "boemia", sobre a qual estou escrevendo um novo livro, repousa sobre um paradoxo. Na fachada, eram "rebeldes" e "antiburgueses". Na verdade, encorajaram a emergência da sociedade de consumo. De fato, era preciso que os valores tradicionais fossem desconstruídos por jovens rebeldes para que os velhos burgueses pudessem enriquecer. Por quê? Isso ficou claro hoje: se minhas filhas tivessem os valores de minha bisavó, elas não comprariam três celulares por ano! Era preciso derrubar as tradições para que o consumo vencesse. Não é por acaso que, hoje, as corporações são os maiores promotores da arte contemporânea!
Valor: O que a estética de Kant diria sobre a arte contemporânea?
Ferry: A arte se afastou explicitamente da ideia de beleza que Kant tentava pensar. Kandinsky e Schoenberg, em 1910, repetem sem cessar que é uma noção "ultrapassada" e derrisória. A estética de Kant é dominada pela questão, na minha opinião apaixonante, de definir os critérios do belo. Kant e Hume se perguntam, por exemplo, como podemos dizer que "o gosto é subjetivo", se há um consenso tão vasto sobre as "grandes obras", mais até do que na ciência. Não se ouve muito que "Mozart é uma porcaria" ou "Vermeer é muito feio". Já a arte contemporânea se tornou uma arte "de mercado". É comprada pelos grandes burgueses, fascinados com a lógica da inovação pela inovação, que pertencia aos artistas "boêmios", mas virou o pão de cada dia desses capitães da indústria. O executivo que vende celulares sabe que, se não inovar constantemente, como Duchamp ou Picasso, está fora do mercado. A arte contemporânea não se interessa pela ideia de beleza. Os empresários tampouco. A originalidade a qualquer preço é mais importante. Nisso estão de acordo com nossa época de globalização liberal.
Valor: As últimas eleições europeias consagraram os partidos ecologistas. A ecologia pode ser um programa verdadeiramente político?
Ferry: Não. Mas ela põe o dedo numa ferida maior, não tanto a questão ambiental, mas aquilo que chamo de "privação democrática". No universo globalizado, as políticas nacionais são privadas, pouco a pouco, de todos os meios eficazes de ação e reforma. Os altermundialistas se enganam ao acreditar que, atrás dos mercados financeiros, há "peixes grandes", "os poderosos", que, como marionetistas, manipulam às escondidas. Se fosse verdade, seria ótimo: pelo menos, haveria um culpado! Mas isso não passa de uma visão ingênua. O mundo, dominado pelos mercados financeiros, nos escapa e a questão da "governança mundial" é mais importante que nunca. Como retomar as rédeas? Eis a questão central da política moderna e mesmo a única que importa.
Gozar das leis
Da folha de são paulo excelente texto de Vladimir Safatle.
Gozar das leis
Ao repensar a obra de Sacher-Masoch, Deleuze associa o sadismo à ironia, e o masoquismo ao humor ante as regras, aceitando-as para melhor subvertê-las
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sacher-Masoch: o Frio e o Cruel", de Gilles Deleuze [1925-95], poderia parecer uma obra menor no interior de uma experiência intelectual que nos deixou livros da envergadura de "Diferença e Repetição", "Mil Platôs" e "O Anti-Édipo", além de comentários fundamentais sobre filósofos como Hume, Nietzsche, Spinoza, Bergson e Kant.
Lançado na França como uma grande introdução à tradução de "A Vênus das Peles", de Leopold von Sacher-Masoch [1836-95], o texto de Deleuze, que aparece agora ao público brasileiro, pode parecer preencher apenas duas funções.
Por um lado, trata-se de reconhecer o lugar de Sacher-Masoch como grande escritor, e não apenas como aquele que forneceu seu nome a uma perversão (o masoquismo) graças ao psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, responsável pelo mais influente tratado de desvios sexuais do final do século 19 ("Psychophatia Sexualis", de 1886).
Deleuze insiste na importância de sua obra, composta, em larga medida, de contos baseados em material folclórico de minorias que habitavam a Galícia [no Leste Europeu], como judeus, russos, húngaros, prussianos. Da mesma forma, ele não deixará de exaltar as qualidades literárias de "A Vênus das Peles" e do outro volume que compõe o ciclo "O Legado de Caim".
A ironia e o humor
Mas Deleuze também aproveitará o comentário de Sacher-Masoch para mobilizar um amplo aparato psicanalítico a fim de discutir a natureza do masoquismo e a incongruência de pensar uma relação de complementaridade com seu oposto, criando com isso a categoria do sadomasoquismo.
Não se trataria apenas de duas perversões distintas, mas de duas lógicas completamente diferentes na constituição do objeto do desejo e na relação à lei moral. Essas duas lógicas são descritas por Deleuze por meio de uma associação que se mostrará plena de consequências. Ela consiste em afirmar que, no interior do sadismo, encontramos uma lógica que o associa à ironia, isso enquanto o masoquismo seria a encarnação mais evidente do humor. A princípio, essas associações podem parecer gratuitas.
No entanto, elas consistem em dizer que uma perversão não é simplesmente a descrição de alguma forma de desvio em relação a um padrão de conduta sexual socialmente partilhado. Ela é uma maneira de distorcer uma lei moral da qual o próprio perverso reconhece a existência. Neste sentido, Deleuze poderá dizer que, dada uma lei que reconhecemos, há duas maneiras de não a seguir.
A primeira é através da ironia. Deleuze pode afirmar isso por lembrar do conceito romântico de ironia, onde este aparece como uma posição na qual o sujeito sempre está para além de seus enunciados. Enunciar uma lei de maneira irônica significa mostrar que seu enunciador não está lá onde seu dizer aponta. Esse recurso a um lugar transcendente seria uma maneira de evidenciar que sigo um princípio para além da lei que enuncio.
Todo o esforço de Deleuze no livro será mostrar como a posição de Sade [escritor francês, 1740-1814] em relação à lei moral pode ser compreendida a partir desse esquema.
A segunda seria através do humor. O humor visaria torcer a lei por meio do aprofundamento de suas consequências.
Não colocamos nenhum princípio de significação para além da lei moral. Mas os efeitos da lei são invertidos devido à possibilidade de torções nas designações: "a mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto a este que normalmente esperávamos (por exemplo, os golpes de chicote, longe de punir ou prevenir uma ereção, a provocam, a asseguram)". Isto é Deleuze falando de Sacher-Masoch, este mesmo Sacher-Masoch em quem o filósofo vê uma insolência por obsequiosidade, uma revolta por submissão.
A paródia do desejo
Essa maneira de torcer a lei fará Deleuze insistir em que só podemos compreender o masoquismo por meio de conceitos como a paródia. Afinal, que nome poderíamos dar ao ato de firmar um contrato onde abro mão, livremente, de minha autonomia para me tornar escravo de uma dominatrix, ato absolutamente necessário no interior do cenário masoquista?
Mas, para além da descrição de uma perversão, Deleuze age como quem acredita que por meio do humor, da paródia, da passividade simulada, abre-se uma possibilidade de desdobrar a relação com o desejo, com a lei talvez mais próxima de nossa situação contemporânea. Só não esperávamos nos descobrir todos contemporâneos de Sacher-Masoch.
VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.
Gozar das leis
Ao repensar a obra de Sacher-Masoch, Deleuze associa o sadismo à ironia, e o masoquismo ao humor ante as regras, aceitando-as para melhor subvertê-las
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sacher-Masoch: o Frio e o Cruel", de Gilles Deleuze [1925-95], poderia parecer uma obra menor no interior de uma experiência intelectual que nos deixou livros da envergadura de "Diferença e Repetição", "Mil Platôs" e "O Anti-Édipo", além de comentários fundamentais sobre filósofos como Hume, Nietzsche, Spinoza, Bergson e Kant.
Lançado na França como uma grande introdução à tradução de "A Vênus das Peles", de Leopold von Sacher-Masoch [1836-95], o texto de Deleuze, que aparece agora ao público brasileiro, pode parecer preencher apenas duas funções.
Por um lado, trata-se de reconhecer o lugar de Sacher-Masoch como grande escritor, e não apenas como aquele que forneceu seu nome a uma perversão (o masoquismo) graças ao psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, responsável pelo mais influente tratado de desvios sexuais do final do século 19 ("Psychophatia Sexualis", de 1886).
Deleuze insiste na importância de sua obra, composta, em larga medida, de contos baseados em material folclórico de minorias que habitavam a Galícia [no Leste Europeu], como judeus, russos, húngaros, prussianos. Da mesma forma, ele não deixará de exaltar as qualidades literárias de "A Vênus das Peles" e do outro volume que compõe o ciclo "O Legado de Caim".
A ironia e o humor
Mas Deleuze também aproveitará o comentário de Sacher-Masoch para mobilizar um amplo aparato psicanalítico a fim de discutir a natureza do masoquismo e a incongruência de pensar uma relação de complementaridade com seu oposto, criando com isso a categoria do sadomasoquismo.
Não se trataria apenas de duas perversões distintas, mas de duas lógicas completamente diferentes na constituição do objeto do desejo e na relação à lei moral. Essas duas lógicas são descritas por Deleuze por meio de uma associação que se mostrará plena de consequências. Ela consiste em afirmar que, no interior do sadismo, encontramos uma lógica que o associa à ironia, isso enquanto o masoquismo seria a encarnação mais evidente do humor. A princípio, essas associações podem parecer gratuitas.
No entanto, elas consistem em dizer que uma perversão não é simplesmente a descrição de alguma forma de desvio em relação a um padrão de conduta sexual socialmente partilhado. Ela é uma maneira de distorcer uma lei moral da qual o próprio perverso reconhece a existência. Neste sentido, Deleuze poderá dizer que, dada uma lei que reconhecemos, há duas maneiras de não a seguir.
A primeira é através da ironia. Deleuze pode afirmar isso por lembrar do conceito romântico de ironia, onde este aparece como uma posição na qual o sujeito sempre está para além de seus enunciados. Enunciar uma lei de maneira irônica significa mostrar que seu enunciador não está lá onde seu dizer aponta. Esse recurso a um lugar transcendente seria uma maneira de evidenciar que sigo um princípio para além da lei que enuncio.
Todo o esforço de Deleuze no livro será mostrar como a posição de Sade [escritor francês, 1740-1814] em relação à lei moral pode ser compreendida a partir desse esquema.
A segunda seria através do humor. O humor visaria torcer a lei por meio do aprofundamento de suas consequências.
Não colocamos nenhum princípio de significação para além da lei moral. Mas os efeitos da lei são invertidos devido à possibilidade de torções nas designações: "a mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto a este que normalmente esperávamos (por exemplo, os golpes de chicote, longe de punir ou prevenir uma ereção, a provocam, a asseguram)". Isto é Deleuze falando de Sacher-Masoch, este mesmo Sacher-Masoch em quem o filósofo vê uma insolência por obsequiosidade, uma revolta por submissão.
A paródia do desejo
Essa maneira de torcer a lei fará Deleuze insistir em que só podemos compreender o masoquismo por meio de conceitos como a paródia. Afinal, que nome poderíamos dar ao ato de firmar um contrato onde abro mão, livremente, de minha autonomia para me tornar escravo de uma dominatrix, ato absolutamente necessário no interior do cenário masoquista?
Mas, para além da descrição de uma perversão, Deleuze age como quem acredita que por meio do humor, da paródia, da passividade simulada, abre-se uma possibilidade de desdobrar a relação com o desejo, com a lei talvez mais próxima de nossa situação contemporânea. Só não esperávamos nos descobrir todos contemporâneos de Sacher-Masoch.
VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.
O pluralismo político na Alemanha
Folha de São Paulo de 23 de 2009
Partido Pirata da Alemanha debuta em eleição doméstica
Sigla tenta emplacar deputado no Parlamento pregando reforma do sistema de patentes
Espelhado em caso sueco de sucesso, grupo alemão quer tecnologia para aumentar acesso à informação; pleito ocorre no fim de setembro
Marcadas para o dia 27 de setembro, as eleições para o Bundestag (o Parlamento federal alemão) terão, pela primeira vez, a participação do Piratenpartei, o Partido Pirata.
Fundada em 2006, a agremiação defende que as possibilidades trazidas pelo desenvolvimento tecnológico sejam usadas de forma a aprimorar o acesso à informação, e não para controlar a vida dos cidadãos.
Suas principais bandeiras são a defesa da privacidade, a livre circulação de cultura e conhecimento, reforma do sistema de patentes, transparência do Estado, gratuidade da educação pública e livre acesso a resultados das pesquisas patrocinadas pelo poder público.
A agenda restrita segue o receituário inaugurado pelo Piratpartiet, da Suécia, que nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em junho, elegeu dois representantes.
O partido alemão também participou da disputa, mas obteve só 0,9% dos votos, insuficiente para garantir ingresso na instituição. Hoje, tem apenas um deputado no Bundestag, Jörg Tauss, que virou pirata após 38 anos no Partido Social Democrata, pelo qual se elegeu.
Em entrevista por e-mail à Folha, o presidente do Piratenpartei, Jens Seipenbusch, disse acreditar estar ante uma tendência mundial. "Outros nove países europeus já têm partidos piratas registrados", diz.
Para ele, é possível comparar a criação dessas siglas com o surgimento dos verdes, a partir da década de 70. "No início, aquele partido também se voltou contra as estruturas dominantes. Além disso, tinha um programa que se limitava a alguns temas específicos."
Para eleger ao menos um de seus 14 candidatos em setembro, o Piratenpartei precisará de um mínimo de 5% dos votos. Para participar do pleito, o partido promoveu campanha para angariar até 2.000 assinaturas em cada Estado onde pretendia concorrer. O esforço teve êxito em 15 dos 16 Estados.
Seipenbusch considera que, à medida em que o país avançar rumo à sociedade da informação, a agenda do partido ganhará adeptos. "Os temas que abordamos são importantes para todos, sejam jovens ou velhos."
Como exemplo, cita medidas que, diz, ameaçam a liberdade e a privacidade dos alemães: o armazenamento de informações sobre e-mails e ligações, o uso de cartões de saúde com registro de histórico médico e o rastreamento de computadores.
Além de tentar atuar sobre essas questões, o partido tenta provocar mudanças nas leis de direitos autorais e de patentes.
Para os piratas, a livre reprodução de obras disponíveis digitalmente é uma realidade que deve ser reconhecida e aproveitada. "Já há conceitos comerciais que fazem da gratuidade uma vantagem para o autor."
No caso das patentes, a posição do partido é que só possam ser protegidas invenções técnicas. "Rejeitamos patentes de seres vivos e genes, porque não são invenções. O mesmo vale para ideias comerciais e softwares. Os últimos já estão protegidos por direitos autorais."
O presidente reconhece, porém, que muitos aspectos não podem ser alterados nacionalmente. Por isso, comemora o fortalecimento dos piratas em outros países, o que pode dar espaço à Europa para deixar acordos de propriedade intelectual. "Quando houver piratas suficientes no Parlamento [Europeu], convênios internacionais poderão ser alterados."
Partido Pirata da Alemanha debuta em eleição doméstica
Sigla tenta emplacar deputado no Parlamento pregando reforma do sistema de patentes
Espelhado em caso sueco de sucesso, grupo alemão quer tecnologia para aumentar acesso à informação; pleito ocorre no fim de setembro
Marcadas para o dia 27 de setembro, as eleições para o Bundestag (o Parlamento federal alemão) terão, pela primeira vez, a participação do Piratenpartei, o Partido Pirata.
Fundada em 2006, a agremiação defende que as possibilidades trazidas pelo desenvolvimento tecnológico sejam usadas de forma a aprimorar o acesso à informação, e não para controlar a vida dos cidadãos.
Suas principais bandeiras são a defesa da privacidade, a livre circulação de cultura e conhecimento, reforma do sistema de patentes, transparência do Estado, gratuidade da educação pública e livre acesso a resultados das pesquisas patrocinadas pelo poder público.
A agenda restrita segue o receituário inaugurado pelo Piratpartiet, da Suécia, que nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em junho, elegeu dois representantes.
O partido alemão também participou da disputa, mas obteve só 0,9% dos votos, insuficiente para garantir ingresso na instituição. Hoje, tem apenas um deputado no Bundestag, Jörg Tauss, que virou pirata após 38 anos no Partido Social Democrata, pelo qual se elegeu.
Em entrevista por e-mail à Folha, o presidente do Piratenpartei, Jens Seipenbusch, disse acreditar estar ante uma tendência mundial. "Outros nove países europeus já têm partidos piratas registrados", diz.
Para ele, é possível comparar a criação dessas siglas com o surgimento dos verdes, a partir da década de 70. "No início, aquele partido também se voltou contra as estruturas dominantes. Além disso, tinha um programa que se limitava a alguns temas específicos."
Para eleger ao menos um de seus 14 candidatos em setembro, o Piratenpartei precisará de um mínimo de 5% dos votos. Para participar do pleito, o partido promoveu campanha para angariar até 2.000 assinaturas em cada Estado onde pretendia concorrer. O esforço teve êxito em 15 dos 16 Estados.
Seipenbusch considera que, à medida em que o país avançar rumo à sociedade da informação, a agenda do partido ganhará adeptos. "Os temas que abordamos são importantes para todos, sejam jovens ou velhos."
Como exemplo, cita medidas que, diz, ameaçam a liberdade e a privacidade dos alemães: o armazenamento de informações sobre e-mails e ligações, o uso de cartões de saúde com registro de histórico médico e o rastreamento de computadores.
Além de tentar atuar sobre essas questões, o partido tenta provocar mudanças nas leis de direitos autorais e de patentes.
Para os piratas, a livre reprodução de obras disponíveis digitalmente é uma realidade que deve ser reconhecida e aproveitada. "Já há conceitos comerciais que fazem da gratuidade uma vantagem para o autor."
No caso das patentes, a posição do partido é que só possam ser protegidas invenções técnicas. "Rejeitamos patentes de seres vivos e genes, porque não são invenções. O mesmo vale para ideias comerciais e softwares. Os últimos já estão protegidos por direitos autorais."
O presidente reconhece, porém, que muitos aspectos não podem ser alterados nacionalmente. Por isso, comemora o fortalecimento dos piratas em outros países, o que pode dar espaço à Europa para deixar acordos de propriedade intelectual. "Quando houver piratas suficientes no Parlamento [Europeu], convênios internacionais poderão ser alterados."
O Brasil e a reforma da ONU
Folha de São Paulo 22 de agosto de 2009
Falta de consenso atrapalha pretensão brasileira na ONU
Especialistas debatem no Rio reforma da organização e destacam desafios ao objetivo de país de entrar no Conselho de Segurança
A questão importante é se Brasil poderia ter papel diferenciado no órgão, e não só credenciais do país para o ingresso, diz professora
A falta de consenso interno sobre a importância de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU é um empecilho à realização dessa meta, já bastante difícil por depender de uma reforma à qual as cinco potências atuais resistem e sobre a qual há divergências entre os demais países.
Esse foi um dos pontos ressaltados por especialistas que participaram ontem de seminário sobre o tema promovido pela Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Ministério das Relações Exteriores, e que atraiu mais de cem pessoas ao Palácio do Itamaraty (Rio).
"No Brasil há um defeito de autoconfiança que temos de remediar. Todas as vezes em que o Brasil faz concessão a algum país do Sul isso é interpretado como campanha para o CS. O país não precisa disso, já tem os votos da Assembleia Geral [da ONU]", disse Ronaldo Sardenberg, ex-embaixador do Brasil na ONU e hoje presidente da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).
Sardenberg, que atuou no governo de Fernando Henrique Cardoso como secretário de Assuntos Estratégicos e ministro de Ciência e Tecnologia, disse que o "momento de crise" na ordem mundial é propício à discussão da reforma, hoje objeto de negociações entre países e de uma análise formal lentíssima na organização.
Os objetivos das mudanças, acrescentou, seriam tornar o CS "mais legítimo" e provar "a eficiência da democracia" na Assembleia Geral, onde os votos dos 192 países-membros têm o mesmo peso, mas as decisões são simbólicas.
A maioria dos 12 especialistas foi favorável à pretensão brasileira ao CS, mas houve ênfase também nos empecilhos.
"É um processo maquiavélico. A reforma precisa ser aprovada por dois terços da Assembleia Geral e ratificada pelos cinco membros permanentes do CS", disse Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, consultor jurídico do Itamaraty e professor da PUC de Brasília.
Antônio Carlos Peixoto, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, lembrou que a configuração do CS, ao final da Segunda Guerra, não seguiu critério regional -como se pretende fazer hoje, quando mesmo sul-americanos resistem a apoiar o Brasil. "É fácil constatar que nos vizinhos não é palatável que um país de língua portuguesa tenha se tornado o mais forte nesta parte."
Oposição
A principal voz contra o eventual ingresso foi a do professor de direito da USP Fábio Konder Comparato. Ele defendeu mudança radical na atual ordem baseada nas relações de poder entre Estados e se declarou contra a ideia de membros permanentes e o "cinismo oligárquico" representado pelo CS. "[A entrada do Brasil] mudaria o sistema internacional?", questionou.
Ao comentar a intervenção de Comparato, a professora Maria Regina Soares de Lima, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio), disse que o tema está longe de ser teórico. A ONU, lembrou, é em essência a organização jurídica responsável pelo sistema de segurança coletiva e nela o "soberano", que decide que situações são passíveis de intervenção armada, é o CS.
Por isso, o importante não são apenas as credenciais do Brasil para entrar, mas como, lá dentro, o país poderia se diferenciar das atuais potências. "Não acredito que o sistema fundado pelos EUA vai se reproduzir. A incorporação [de novos membros] vai ressignificar o uso da força."
Falta de consenso atrapalha pretensão brasileira na ONU
Especialistas debatem no Rio reforma da organização e destacam desafios ao objetivo de país de entrar no Conselho de Segurança
A questão importante é se Brasil poderia ter papel diferenciado no órgão, e não só credenciais do país para o ingresso, diz professora
A falta de consenso interno sobre a importância de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança (CS) da ONU é um empecilho à realização dessa meta, já bastante difícil por depender de uma reforma à qual as cinco potências atuais resistem e sobre a qual há divergências entre os demais países.
Esse foi um dos pontos ressaltados por especialistas que participaram ontem de seminário sobre o tema promovido pela Fundação Alexandre de Gusmão, ligada ao Ministério das Relações Exteriores, e que atraiu mais de cem pessoas ao Palácio do Itamaraty (Rio).
"No Brasil há um defeito de autoconfiança que temos de remediar. Todas as vezes em que o Brasil faz concessão a algum país do Sul isso é interpretado como campanha para o CS. O país não precisa disso, já tem os votos da Assembleia Geral [da ONU]", disse Ronaldo Sardenberg, ex-embaixador do Brasil na ONU e hoje presidente da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).
Sardenberg, que atuou no governo de Fernando Henrique Cardoso como secretário de Assuntos Estratégicos e ministro de Ciência e Tecnologia, disse que o "momento de crise" na ordem mundial é propício à discussão da reforma, hoje objeto de negociações entre países e de uma análise formal lentíssima na organização.
Os objetivos das mudanças, acrescentou, seriam tornar o CS "mais legítimo" e provar "a eficiência da democracia" na Assembleia Geral, onde os votos dos 192 países-membros têm o mesmo peso, mas as decisões são simbólicas.
A maioria dos 12 especialistas foi favorável à pretensão brasileira ao CS, mas houve ênfase também nos empecilhos.
"É um processo maquiavélico. A reforma precisa ser aprovada por dois terços da Assembleia Geral e ratificada pelos cinco membros permanentes do CS", disse Antonio Paulo Cachapuz de Medeiros, consultor jurídico do Itamaraty e professor da PUC de Brasília.
Antônio Carlos Peixoto, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, lembrou que a configuração do CS, ao final da Segunda Guerra, não seguiu critério regional -como se pretende fazer hoje, quando mesmo sul-americanos resistem a apoiar o Brasil. "É fácil constatar que nos vizinhos não é palatável que um país de língua portuguesa tenha se tornado o mais forte nesta parte."
Oposição
A principal voz contra o eventual ingresso foi a do professor de direito da USP Fábio Konder Comparato. Ele defendeu mudança radical na atual ordem baseada nas relações de poder entre Estados e se declarou contra a ideia de membros permanentes e o "cinismo oligárquico" representado pelo CS. "[A entrada do Brasil] mudaria o sistema internacional?", questionou.
Ao comentar a intervenção de Comparato, a professora Maria Regina Soares de Lima, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio), disse que o tema está longe de ser teórico. A ONU, lembrou, é em essência a organização jurídica responsável pelo sistema de segurança coletiva e nela o "soberano", que decide que situações são passíveis de intervenção armada, é o CS.
Por isso, o importante não são apenas as credenciais do Brasil para entrar, mas como, lá dentro, o país poderia se diferenciar das atuais potências. "Não acredito que o sistema fundado pelos EUA vai se reproduzir. A incorporação [de novos membros] vai ressignificar o uso da força."
sábado, 22 de agosto de 2009
A Justiça e a Lei da Anistia
Acerto de contas deve chegar ao fim com a palavra da Justiça
Glenda Mezarobba, para o Valor, de São Paulo
21/08/2009
Os saguões dos aeroportos se transformavam em animados salões de festas na recepção dos exilados, como quando da volta de Herbert de Souza (à direita, ao lado de Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra)
Prestes a completar três décadas, a lei 6.683 deve ser submetida, em breve, ao mais rigoroso teste desde que entrou em vigor. Praticamente não questionada, ao longo de todos esses anos, em tribunais de primeira instância, ela agora é colocada à prova não apenas em uma, mas em duas (altas) cortes jurídicas: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Impensável durante muito tempo, tal confronto legal exprime importantes transformações observadas desde a época da aprovação da lei. Afinal, foi justamente nesse período que a humanidade viu aprimorarem-se, de forma substancial, normas, tratados, instituições e redes de direitos humanos que, junto com os Estados, passaram a constituir uma estrutura internacional voltada à temática e capaz de disseminar a influência de preceitos internacionais de direitos humanos por todo o mundo.
A chegada da anistia a esses dois tribunais também explicita a incompletude do processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura militar. Não à toa, na introdução da demanda encaminhada à corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos observa que o caso "representa uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial, e a resultante obrigação dos Estados de fazer a sociedade conhecer a verdade, e investigar, processar e sancionar as graves violações de direitos humanos". De forma sintética, para a comissão, o caso possibilita à corte "afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção, no que se refere a graves violações de direitos humanos".
O caso brasileiro é bastante peculiar. Se são inegáveis as semelhanças entre as ditaduras latino-americanas no contexto da doutrina de "Segurança Nacional", a ponto de países da região terem atuado de forma conjunta na Operação Condor, o processo nacional de acerto de contas guarda características específicas, sobretudo pelo fato de ter principiado com a entrada em vigor da lei 6.683 e, desde então, seguir se desenvolvendo tendo essa legislação como guia.
Ao contrário de democracias como a argentina e a chilena, que sempre viram a anistia como parte integrante de um legado perverso a ser superado, aqui ela não apenas foi reivindicada, mobilizando boa parte da sociedade em torno de sua aprovação, como tramitou no Legislativo, o que se mostraria decisivo para conferir à lei certa legitimidade não observada em suas congêneres e acabaria por contribuir para o aprisionamento do subsequente processo de acerto de contas à lógica imposta pela ditadura, de esquecimento e impunidade (evidenciado, por exemplo, no fato de a comissão de reparações aos perseguidos políticos ter sido designada de "Comissão de Anistia" e na obrigatoriedade de as vítimas, em plena democracia, ingressarem com pedidos de "anistia política", junto ao Estado).
É verdade que, no Brasil, o esforço em prol da anistia esteve sempre associado à luta pela retomada da democracia, pelo reconhecimento e respeito aos direitos humanos, bem como pelo fim da tortura, a libertação dos presos políticos e a elucidação dos casos de desaparecimento. Mas não foi exatamente isso que ocorreu, nem à época da elaboração da lei, nem depois, com o fim do regime militar.
Ainda que de inegável importância para a redemocratização do país e capaz de contribuir para o restabelecimento do estado de direito, como se sabe, a lei foi aprovada exclusivamente nos termos que os militares queriam, mostrando-se mais adequada aos anseios de impunidade dos integrantes do aparato de repressão do que à necessidade de justiça dos perseguidos políticos. Daí a oportunidade, propiciada pela efeméride do próximo dia 28, de se desfazerem construções equivocadas, como, por exemplo, a de que a lei sancionada pelo general Figueiredo seria "ampla, geral e irrestrita".
Ao deixar de fora determinadas manifestações de oposição ao regime, como o que foi classificado como terrorismo, a anistia não pode ser considerada "ampla"; ao excluir alguns enquadrados em atos de exceção, como aqueles que cometeram os chamados "crimes de sangue", também não foi "geral"; e ao restringir os beneficiários em potencial, contemplando apenas os não condenados, tampouco pode ser definida como "irrestrita". Prova disso é que, em 1984, quase duas dezenas de brasileiros ainda cumpriam penas, em liberdade condicional e com direitos políticos suspensos, sendo obrigados a apresentar-se periodicamente à auditoria militar da região em que viviam.
Outro sofisma que não se sustenta, embora repetido à exaustão, é de que seria impossível mexer na Lei de Anistia. Embora não seja imprescindível anulá-la ou revisá-la para que haja justiça às vítimas da ditadura, não apenas é possível modificá-la, como isso já foi feito várias vezes, atestam os artigos 2º, 4º e 5º, revogados no desenvolvimento do processo de acerto de contas, para provável espanto dos que acreditam que retomar esse debate seria revanchismo.
Característico de um discurso extemporâneo, reflexo de uma mentalidade típica da Guerra Fria, o temor da "desforra" não faz sentido quando se sabe, por exemplo, que o que ocorreu no Brasil, a partir do golpe de estado, não foi uma guerra. E que a violência não era natural, tampouco inevitável, sendo a repressão o resultado de uma opção feita pelos militares, interessados que estavam em disseminar o medo e desmobilizar a sociedade.
Assim, é preciso que se diga que, para além do simples exame dos termos da lei 6.683, neste momento a submissão da anistia às cortes representa fato de grande relevância para a história nacional. A partir das decisões dos dois tribunais, e os subsequentes desdobramentos por parte do Estado brasileiro, será possível verificar o grau de adesão do país, e de algumas de suas principais instituições, como o Judiciário e as forças de segurança, ao ideal da democracia.
Quem sabe, finalmente vamos conseguir avançar na implementação de princípios como o da "accountability" legal, em que todos, inclusive o Estado e, especialmente, seus representantes, respondem por seus atos, garantindo que a nenhum grupo de cidadãos será concedido o privilégio da impunidade. E sinalizar, de forma incontestável, que práticas hediondas, como a tortura, não podem - e não serão - mais toleradas.
Glenda Mezarobba é cientista política, pós-doutoranda no IFCH/Unicamp, pesquisadora do Cedec e Ineu e autora do livro "Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e Suas Consequências" (Humanitas/Fapesp)
Glenda Mezarobba, para o Valor, de São Paulo
21/08/2009
Os saguões dos aeroportos se transformavam em animados salões de festas na recepção dos exilados, como quando da volta de Herbert de Souza (à direita, ao lado de Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra)
Prestes a completar três décadas, a lei 6.683 deve ser submetida, em breve, ao mais rigoroso teste desde que entrou em vigor. Praticamente não questionada, ao longo de todos esses anos, em tribunais de primeira instância, ela agora é colocada à prova não apenas em uma, mas em duas (altas) cortes jurídicas: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Impensável durante muito tempo, tal confronto legal exprime importantes transformações observadas desde a época da aprovação da lei. Afinal, foi justamente nesse período que a humanidade viu aprimorarem-se, de forma substancial, normas, tratados, instituições e redes de direitos humanos que, junto com os Estados, passaram a constituir uma estrutura internacional voltada à temática e capaz de disseminar a influência de preceitos internacionais de direitos humanos por todo o mundo.
A chegada da anistia a esses dois tribunais também explicita a incompletude do processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura militar. Não à toa, na introdução da demanda encaminhada à corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos observa que o caso "representa uma oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial, e a resultante obrigação dos Estados de fazer a sociedade conhecer a verdade, e investigar, processar e sancionar as graves violações de direitos humanos". De forma sintética, para a comissão, o caso possibilita à corte "afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção, no que se refere a graves violações de direitos humanos".
O caso brasileiro é bastante peculiar. Se são inegáveis as semelhanças entre as ditaduras latino-americanas no contexto da doutrina de "Segurança Nacional", a ponto de países da região terem atuado de forma conjunta na Operação Condor, o processo nacional de acerto de contas guarda características específicas, sobretudo pelo fato de ter principiado com a entrada em vigor da lei 6.683 e, desde então, seguir se desenvolvendo tendo essa legislação como guia.
Ao contrário de democracias como a argentina e a chilena, que sempre viram a anistia como parte integrante de um legado perverso a ser superado, aqui ela não apenas foi reivindicada, mobilizando boa parte da sociedade em torno de sua aprovação, como tramitou no Legislativo, o que se mostraria decisivo para conferir à lei certa legitimidade não observada em suas congêneres e acabaria por contribuir para o aprisionamento do subsequente processo de acerto de contas à lógica imposta pela ditadura, de esquecimento e impunidade (evidenciado, por exemplo, no fato de a comissão de reparações aos perseguidos políticos ter sido designada de "Comissão de Anistia" e na obrigatoriedade de as vítimas, em plena democracia, ingressarem com pedidos de "anistia política", junto ao Estado).
É verdade que, no Brasil, o esforço em prol da anistia esteve sempre associado à luta pela retomada da democracia, pelo reconhecimento e respeito aos direitos humanos, bem como pelo fim da tortura, a libertação dos presos políticos e a elucidação dos casos de desaparecimento. Mas não foi exatamente isso que ocorreu, nem à época da elaboração da lei, nem depois, com o fim do regime militar.
Ainda que de inegável importância para a redemocratização do país e capaz de contribuir para o restabelecimento do estado de direito, como se sabe, a lei foi aprovada exclusivamente nos termos que os militares queriam, mostrando-se mais adequada aos anseios de impunidade dos integrantes do aparato de repressão do que à necessidade de justiça dos perseguidos políticos. Daí a oportunidade, propiciada pela efeméride do próximo dia 28, de se desfazerem construções equivocadas, como, por exemplo, a de que a lei sancionada pelo general Figueiredo seria "ampla, geral e irrestrita".
Ao deixar de fora determinadas manifestações de oposição ao regime, como o que foi classificado como terrorismo, a anistia não pode ser considerada "ampla"; ao excluir alguns enquadrados em atos de exceção, como aqueles que cometeram os chamados "crimes de sangue", também não foi "geral"; e ao restringir os beneficiários em potencial, contemplando apenas os não condenados, tampouco pode ser definida como "irrestrita". Prova disso é que, em 1984, quase duas dezenas de brasileiros ainda cumpriam penas, em liberdade condicional e com direitos políticos suspensos, sendo obrigados a apresentar-se periodicamente à auditoria militar da região em que viviam.
Outro sofisma que não se sustenta, embora repetido à exaustão, é de que seria impossível mexer na Lei de Anistia. Embora não seja imprescindível anulá-la ou revisá-la para que haja justiça às vítimas da ditadura, não apenas é possível modificá-la, como isso já foi feito várias vezes, atestam os artigos 2º, 4º e 5º, revogados no desenvolvimento do processo de acerto de contas, para provável espanto dos que acreditam que retomar esse debate seria revanchismo.
Característico de um discurso extemporâneo, reflexo de uma mentalidade típica da Guerra Fria, o temor da "desforra" não faz sentido quando se sabe, por exemplo, que o que ocorreu no Brasil, a partir do golpe de estado, não foi uma guerra. E que a violência não era natural, tampouco inevitável, sendo a repressão o resultado de uma opção feita pelos militares, interessados que estavam em disseminar o medo e desmobilizar a sociedade.
Assim, é preciso que se diga que, para além do simples exame dos termos da lei 6.683, neste momento a submissão da anistia às cortes representa fato de grande relevância para a história nacional. A partir das decisões dos dois tribunais, e os subsequentes desdobramentos por parte do Estado brasileiro, será possível verificar o grau de adesão do país, e de algumas de suas principais instituições, como o Judiciário e as forças de segurança, ao ideal da democracia.
Quem sabe, finalmente vamos conseguir avançar na implementação de princípios como o da "accountability" legal, em que todos, inclusive o Estado e, especialmente, seus representantes, respondem por seus atos, garantindo que a nenhum grupo de cidadãos será concedido o privilégio da impunidade. E sinalizar, de forma incontestável, que práticas hediondas, como a tortura, não podem - e não serão - mais toleradas.
Glenda Mezarobba é cientista política, pós-doutoranda no IFCH/Unicamp, pesquisadora do Cedec e Ineu e autora do livro "Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e Suas Consequências" (Humanitas/Fapesp)
30 anos de lei de Anistia
Valor Economico 21 de agosto de 2009
Passados 30 anos da promulgação, a Lei de Anistia, ainda ambígua e controversa, vai a julgamento no STF e na Corte InteramericanaDireitos no tribunal
Por Ernesto Soto, para o Valor, do Rio
21/08/2009
Manifestação pela anistia em São Paulo, fevereiro de 1979: a lei sancionada pelo general Figueiredo em agosto não seria tão ampla como se gostaria que fosse
O tempo passa e a Lei de Anistia, que neste mês completa 30 anos, ainda provoca controvérsias. Num primeiro momento, foi uma festa. Assinada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente general João Figueiredo, a lei permitiu que as portas das prisões se abrissem, que milhares de exilados voltassem ao país, que muitos deixassem a clandestinidade e que centenas de importantes professores e pesquisadores fossem readmitidos em seus cargos nas principais universidades do país.
Terminada a festa, as ambiguidades da lei foram ficando mais claras. Abriu-se espaço, então, a polêmicas que passam hoje pelas críticas à extensão do benefício aos agentes do Estado que cometeram crime de tortura, a reivindicação da abertura dos arquivos em poder dos militares sobre a repressão na época da ditadura, localizacão dos militantes desaparecidos e devolução dos corpos dos guerrilheiros mortos no Araguaia. Também se questionam o valor de determinadas reparações pagas a perseguidos políticos (que alguns chamam de "bolsa ditadura") e a demora no julgamento de milhares de pedidos de anistia. (Leia artigo na página 14).
O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, diz que mais de 64 mil pedidos de reparação já foram apresentados e que é impossível prever em quanto tempo a comissão vai encerrar seu trabalho, já que o protocolo segue aberto. Ele considera que a comissão "simboliza as lutas democráticas de um período sombrio da história brasileira" e que sua missão está "eminentemente ligada ao resgate da dignidade da pessoa humana".
O ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, um dos exilados que, com Juca Ferreira (Cultura) e Franklin Martins (Comunicação Social), seus colegas no ministério de Lula, puderam retornar ao Brasil beneficiados pela anistia, entende que a experiência do exílio foi fundamental na reformulação do pensamento político da geração que abraçou a luta armada como forma de resistência à ditadura. Minc faz restrições a Lei de Anistia, especialmente quanto à não punição de torturadores, mas tem dúvidas se esta seria uma ocasião oportuna para trazer a questão para o centro do debate político. "Acho que, de uma forma ou de outra, isso vai ser colocado, mesmo porque a Constituição diz que a tortura é um crime imprescritível e hediondo. É importante que se abram os arquivos e se faça o ressarcimento, ainda que simbólico, de quem sofreu e que isso tudo nunca mais torne a acontecer."
Em 1979, no mês de agosto, que muitos consideram agourento, propiciador de tragédias e más notícias, teve-se um bom momento: na manhã do dia 28, o general Figueiredo, quinto presidente no regime dos militares, aquele que ameaçou prender e arrebentar quem fosse contra a democracia e que, ao entregar o poder a José Sarney, pediu que o esquecessem, assinou a 48ª Lei de Anistia na história do país. A primeira foi concedida aos nativos e portugueses que colaboraram com os 24 anos de ocupação holandesa na capitania de Pernambuco.
A lei sancionada por Figueiredo era ampla o suficiente para perdoar todos que cometeram crimes políticos - algo difícil de definir - entre setembro de 1961 e agosto de 1979, mas trazia como elemento complicador a exclusão dos que tivessem sido condenados por crime de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, e impedia a punição de torturadores.
Embora sujeita, em vários pontos, a diferentes interpretações, a lei foi suficientemente efetiva para permitir que, antes do pôr-do-sol daquela terça-feira nublada, as portas de algumas prisões começassem a se abrir, e os primeiros anistiados reencontrassem a liberdade. No entanto, muitos presos políticos ainda permaneceriam mais tempo nas suas celas, vítimas de confusões jurídicas ou, simplesmente, da má vontade de carcereiros.
Com a anistia, os militares avançavam em seu projeto de fazer a abertura política lenta e gradual. Demoraria ainda seis anos até que voltassem para os quartéis e devolvessem o poder aos civis.
A Lei de Anistia beneficiou, teoricamente, vencidos e vencedores, torturadores e torturados. Seu texto levanta questões que até hoje provocam polêmicas - como quando se indaga se a tortura, rotulada universalmente como um ato hediondo, pode ser considerada um crime político.
Agência O Globo
O general Figueiredo lê o texto da Lei de Anistia, a de número 48 na história do país: com ou sem restrições, permitiu-se que presos políticos fossem soltos, que exilados retornassem e que intelectuais retomassem suas antigas atividades
O texto originário do Executivo foi encaminhado ao Congresso Nacional, dividido na época entre MDB e Arena, chamados por alguns de partidos do "sim" e do "sim, senhor". Antes de aprovar a lei, os governistas tiveram de resolver um problema: uma emenda do deputado Djalma Marinho, do MDB, que propunha a ampliação irrestrita da lei, era inaceitável pelos militares. Depois de muitas articulações e conchavos, a emenda foi derrotada por apenas cinco votos: 206 a 201. Exultante, o senador que presidia a Arena saiu rapidamente do plenário para comunicar a boa nova ao general Figueiredo. Era José Sarney.
A notícia da promulgação da anistia se espalhou como um rastilho de pólvora pelo mundo, emocionando e agitando a diáspora de exilados brasileiros espalhada por vários países, principalmente França, Alemanha, Portugal e Suécia. Os regimes social-democratas europeus eram a alternativa mais segura para os perseguidos políticos que fugiam aos milhares das ditaduras militares que predominavam em quase toda os países da América Latina.
Naquela época, as comunicações não eram fáceis como agora. Não existiam celulares ou correio eletrônico. Houve uma enxurrada de telefonemas, informações ansiosamente trocadas, perguntas, decisões e indecisões. Mas a maioria agiu rápido. Resolveu os problemas burocráticos (aluguel, documentação, cancelamento em cursos nas universidades, demissão de empregos) e sentimentais (namoradas, relações mais estabelecidas), fez as malas e embarcou de volta. Começou então no Brasil um tempo curioso, em que os saguões dos aeroportos se transformaram em animados salões de festas. Militantes políticos, parentes e amigos esperavam o desembarque dos que retornavam em meio a muita algazarra, alegria e música. Mais por hábito do que por qualquer outra razão, a Polícia Federal às vezes aparecia e levava alguém para um burocrático depoimento. E só.
Com ou sem problemas, a Lei de Anistia permitiu que centenas de presos fossem soltos e que muitos exilados retornassem ao Brasil, entre eles Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, Miguel Arraes, Francisco Julião, Betinho, e que intelectuais fossem readmitidos em seus antigos cargos, entre eles, Florestan Fernandes, Mata Machado, Paul Singer, Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Maria Yeda Linhares, José Leite Lopes.
Passados 30 anos, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça continua a receber pedidos de perseguidos políticos. Até o fim da semana passada tinham sido apresentadas 64.151 solicitações de perseguidos políticos em busca de reparação. Desse total, 47.762 pedidos já foram apreciados e 16.389 aguardam manifestação. Entre os julgados, 16.603 foram indeferidos, 192 arquivados por razões diversas e 30.967 receberam a declaração de anistia. Segundo Abrão, "o principal trabalho da comissão é promover a reparação histórica para com aqueles que sofreram perseguições de um Estado que os devia proteger".
Dos requerimentos de anistia julgados pela comissão, 10.878 obtiveram algum tipo de reparação econômica. Nos casos restantes houve apenas um pedido de desculpas por parte do Estado. É impossível prever em quanto tempo a comissão vai concluir seu trabalho, já que o protocolo segue aberto e continuam chegando novos processos. Visando acelerar os julgamentos, a comisssão contratou novos funcionários, nomeou novos conselheiros e ampliou o número de sessões de trabalho.
Para Abrão, o fato de a comissão continuar em atividade tantos anos depois de a anistia ter sido promulgada prova que os processos de reparação são tradicionalmente lentos. Isso ocorre em todo o mundo, especialmente na América Latina, ele comenta. Apenas no fim da década de 1990 é que Argentina e Chile começaram a punir os agentes do Estado que cometeram crimes durante o período ditatorial.
No Brasil não é diferente. A lei de 1979 previa o retorno ao emprego de milhares de pessoas, mas foi assim para apenas algumas centenas. Em 1988, com a nova Constituição, esse direito foi ampliado. Somente em 2001 a Comissão de Anistia foi criada por medida provisória, que se converteu em lei em 2002. Com a lentidão do processo legislativo, pessoas que há anos deveriam ter recebido reparação por perdas impostas pelo Estado só agora passaram a ter seus direitos observados. Abrão diz que, "se por um lado essa demora é triste e injusta, mais importante é verificarmos que estamos avançando na direção correta, para afirmação da democracia".
Abrão vê a lei como uma vitória do ponto de vista da reparação moral, mas a considera absolutamente assimétrica do ponto de vista da reparação econômica. Abrão explica seu ponto de vista lembrando que a lei trabalha com dois públicos: os perseguidos políticos no sentido clássico, ou seja, pessoas que foram presas, torturadas, viveram na clandestinidade, e aqueles que foram demitidos arbitrariamente, sobretudo por envolvimento em movimentos grevistas ou atividades sindicais. Para o primeiro grupo, a lei prevê indenização paga de uma só vez, com teto de R$ 100 mil. No segundo caso, concede-se pensão mensal vitalícia no valor correspondente à remuneração que a pessoa receberia se estivesse trabalhando, adicionada de efeitos retroativos até 1988. Com isso, alguém que perdeu um emprego remunerado de R$ 4 mil mensais, por exemplo, além da pensão mensal poderá receber quase um milhão de reais em acréscimos. "Corrigir essa distorção seria fundamental para uma justiça mais efetiva", argumenta Abrão.
São dois os propósitos da comissão, diz Abrão. O primeiro tem uma dimensão individual e diz respeito a reparar as pessoas que tiveram seus destinos alterados por atos ilegais do Estado brasileiro. Esta é uma missão eminentemente ligada ao resgate da dignidade da pessoa humana e à afirmação pública de que o estado de direito faz valer seus princípios, mesmo que tardiamente. A outra finalidade é social, é coletiva, diz respeito a não deixar a sociedade esquecer o que aconteceu no passado para não permitir que se repita no futuro.
Para o advogado Marcus Vinicius Cordeiro, diretor cultural da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, a Lei de Anistia não foi o melhor dos instrumentos para reparar os danos causados pela ditadura militar. Ele acha que a lei que regulamenta o artigo 8º do Ato de Disposições Transitórias cumpre melhor esse objetivo, mas a Lei de Anistia, mesmo como foi promulgada, teve extraordinária importância política, estimulando o movimento popular que mais adiante levou ao fim da ditadura militar. Para Cordeiro, um dos problemas da lei está na dubiedade do alcance da anistia. Ele cita o artigo 1º, que considera anistiados aqueles que "cometeram crimes políticos ou conexo com estes". Segundo Cordeiro, "os saudosos da ditadura traduziram tais crimes conexos como aqueles praticados pelos torturadores".
A OAB foi uma das entidades mais atuantes na defesa da anistia, recorda Cordeiro, ressaltando que é próprio dos advogados a inclinação pela liberdade, o que levou muitos profissionais a se engajarem na luta contra a ditadura. "As liberdades civis e seus instrumentos jurídicos - habeas-corpus, mandado de segurança - foram banidos naquele período." Cordeiro comenta que a OAB foi um dos alvos preferidos das forças de repressão. Em 1980, uma bomba explodiu no gabinete do presidente , o jurista Eduardo Seabra Fagundes, matando a secretaria Lyda Monteiro. A autoria do crime nunca foi esclarecida.
As ambiguidades da Lei de Anistia podem ser resolvidas. Na semana passada, em Brasília, o ministro Paulo Vanuchi, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, apresentou uma nova versão do Programa Nacional de Direitos Humanos. Nessa atualização, que ainda deve ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, propõe-se um conjunto de ações visando identificar e responsabilizar agentes do Estado que durante a ditadura militar torturaram, mataram ou de alguma outra forma cometeram abusos contra opositores do regime. O documento sugere a revogação das leis que impedem e dificultam o esclarecimento desses crimes - que nos meios militares são considerados prescritos. Pretende-se também proibir que os nomes de violadores de direitos humanos sejam tomados para denominar ruas e outros lugares públicos.
Ernesto Soto, jornalista, é autor de "1968, Eles Só Queriam Mudar o Mundo" (Jorge Zahar), com Regina Zappa
Passados 30 anos da promulgação, a Lei de Anistia, ainda ambígua e controversa, vai a julgamento no STF e na Corte InteramericanaDireitos no tribunal
Por Ernesto Soto, para o Valor, do Rio
21/08/2009
Manifestação pela anistia em São Paulo, fevereiro de 1979: a lei sancionada pelo general Figueiredo em agosto não seria tão ampla como se gostaria que fosse
O tempo passa e a Lei de Anistia, que neste mês completa 30 anos, ainda provoca controvérsias. Num primeiro momento, foi uma festa. Assinada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente general João Figueiredo, a lei permitiu que as portas das prisões se abrissem, que milhares de exilados voltassem ao país, que muitos deixassem a clandestinidade e que centenas de importantes professores e pesquisadores fossem readmitidos em seus cargos nas principais universidades do país.
Terminada a festa, as ambiguidades da lei foram ficando mais claras. Abriu-se espaço, então, a polêmicas que passam hoje pelas críticas à extensão do benefício aos agentes do Estado que cometeram crime de tortura, a reivindicação da abertura dos arquivos em poder dos militares sobre a repressão na época da ditadura, localizacão dos militantes desaparecidos e devolução dos corpos dos guerrilheiros mortos no Araguaia. Também se questionam o valor de determinadas reparações pagas a perseguidos políticos (que alguns chamam de "bolsa ditadura") e a demora no julgamento de milhares de pedidos de anistia. (Leia artigo na página 14).
O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, diz que mais de 64 mil pedidos de reparação já foram apresentados e que é impossível prever em quanto tempo a comissão vai encerrar seu trabalho, já que o protocolo segue aberto. Ele considera que a comissão "simboliza as lutas democráticas de um período sombrio da história brasileira" e que sua missão está "eminentemente ligada ao resgate da dignidade da pessoa humana".
O ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, um dos exilados que, com Juca Ferreira (Cultura) e Franklin Martins (Comunicação Social), seus colegas no ministério de Lula, puderam retornar ao Brasil beneficiados pela anistia, entende que a experiência do exílio foi fundamental na reformulação do pensamento político da geração que abraçou a luta armada como forma de resistência à ditadura. Minc faz restrições a Lei de Anistia, especialmente quanto à não punição de torturadores, mas tem dúvidas se esta seria uma ocasião oportuna para trazer a questão para o centro do debate político. "Acho que, de uma forma ou de outra, isso vai ser colocado, mesmo porque a Constituição diz que a tortura é um crime imprescritível e hediondo. É importante que se abram os arquivos e se faça o ressarcimento, ainda que simbólico, de quem sofreu e que isso tudo nunca mais torne a acontecer."
Em 1979, no mês de agosto, que muitos consideram agourento, propiciador de tragédias e más notícias, teve-se um bom momento: na manhã do dia 28, o general Figueiredo, quinto presidente no regime dos militares, aquele que ameaçou prender e arrebentar quem fosse contra a democracia e que, ao entregar o poder a José Sarney, pediu que o esquecessem, assinou a 48ª Lei de Anistia na história do país. A primeira foi concedida aos nativos e portugueses que colaboraram com os 24 anos de ocupação holandesa na capitania de Pernambuco.
A lei sancionada por Figueiredo era ampla o suficiente para perdoar todos que cometeram crimes políticos - algo difícil de definir - entre setembro de 1961 e agosto de 1979, mas trazia como elemento complicador a exclusão dos que tivessem sido condenados por crime de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, e impedia a punição de torturadores.
Embora sujeita, em vários pontos, a diferentes interpretações, a lei foi suficientemente efetiva para permitir que, antes do pôr-do-sol daquela terça-feira nublada, as portas de algumas prisões começassem a se abrir, e os primeiros anistiados reencontrassem a liberdade. No entanto, muitos presos políticos ainda permaneceriam mais tempo nas suas celas, vítimas de confusões jurídicas ou, simplesmente, da má vontade de carcereiros.
Com a anistia, os militares avançavam em seu projeto de fazer a abertura política lenta e gradual. Demoraria ainda seis anos até que voltassem para os quartéis e devolvessem o poder aos civis.
A Lei de Anistia beneficiou, teoricamente, vencidos e vencedores, torturadores e torturados. Seu texto levanta questões que até hoje provocam polêmicas - como quando se indaga se a tortura, rotulada universalmente como um ato hediondo, pode ser considerada um crime político.
Agência O Globo
O general Figueiredo lê o texto da Lei de Anistia, a de número 48 na história do país: com ou sem restrições, permitiu-se que presos políticos fossem soltos, que exilados retornassem e que intelectuais retomassem suas antigas atividades
O texto originário do Executivo foi encaminhado ao Congresso Nacional, dividido na época entre MDB e Arena, chamados por alguns de partidos do "sim" e do "sim, senhor". Antes de aprovar a lei, os governistas tiveram de resolver um problema: uma emenda do deputado Djalma Marinho, do MDB, que propunha a ampliação irrestrita da lei, era inaceitável pelos militares. Depois de muitas articulações e conchavos, a emenda foi derrotada por apenas cinco votos: 206 a 201. Exultante, o senador que presidia a Arena saiu rapidamente do plenário para comunicar a boa nova ao general Figueiredo. Era José Sarney.
A notícia da promulgação da anistia se espalhou como um rastilho de pólvora pelo mundo, emocionando e agitando a diáspora de exilados brasileiros espalhada por vários países, principalmente França, Alemanha, Portugal e Suécia. Os regimes social-democratas europeus eram a alternativa mais segura para os perseguidos políticos que fugiam aos milhares das ditaduras militares que predominavam em quase toda os países da América Latina.
Naquela época, as comunicações não eram fáceis como agora. Não existiam celulares ou correio eletrônico. Houve uma enxurrada de telefonemas, informações ansiosamente trocadas, perguntas, decisões e indecisões. Mas a maioria agiu rápido. Resolveu os problemas burocráticos (aluguel, documentação, cancelamento em cursos nas universidades, demissão de empregos) e sentimentais (namoradas, relações mais estabelecidas), fez as malas e embarcou de volta. Começou então no Brasil um tempo curioso, em que os saguões dos aeroportos se transformaram em animados salões de festas. Militantes políticos, parentes e amigos esperavam o desembarque dos que retornavam em meio a muita algazarra, alegria e música. Mais por hábito do que por qualquer outra razão, a Polícia Federal às vezes aparecia e levava alguém para um burocrático depoimento. E só.
Com ou sem problemas, a Lei de Anistia permitiu que centenas de presos fossem soltos e que muitos exilados retornassem ao Brasil, entre eles Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, Miguel Arraes, Francisco Julião, Betinho, e que intelectuais fossem readmitidos em seus antigos cargos, entre eles, Florestan Fernandes, Mata Machado, Paul Singer, Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Maria Yeda Linhares, José Leite Lopes.
Passados 30 anos, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça continua a receber pedidos de perseguidos políticos. Até o fim da semana passada tinham sido apresentadas 64.151 solicitações de perseguidos políticos em busca de reparação. Desse total, 47.762 pedidos já foram apreciados e 16.389 aguardam manifestação. Entre os julgados, 16.603 foram indeferidos, 192 arquivados por razões diversas e 30.967 receberam a declaração de anistia. Segundo Abrão, "o principal trabalho da comissão é promover a reparação histórica para com aqueles que sofreram perseguições de um Estado que os devia proteger".
Dos requerimentos de anistia julgados pela comissão, 10.878 obtiveram algum tipo de reparação econômica. Nos casos restantes houve apenas um pedido de desculpas por parte do Estado. É impossível prever em quanto tempo a comissão vai concluir seu trabalho, já que o protocolo segue aberto e continuam chegando novos processos. Visando acelerar os julgamentos, a comisssão contratou novos funcionários, nomeou novos conselheiros e ampliou o número de sessões de trabalho.
Para Abrão, o fato de a comissão continuar em atividade tantos anos depois de a anistia ter sido promulgada prova que os processos de reparação são tradicionalmente lentos. Isso ocorre em todo o mundo, especialmente na América Latina, ele comenta. Apenas no fim da década de 1990 é que Argentina e Chile começaram a punir os agentes do Estado que cometeram crimes durante o período ditatorial.
No Brasil não é diferente. A lei de 1979 previa o retorno ao emprego de milhares de pessoas, mas foi assim para apenas algumas centenas. Em 1988, com a nova Constituição, esse direito foi ampliado. Somente em 2001 a Comissão de Anistia foi criada por medida provisória, que se converteu em lei em 2002. Com a lentidão do processo legislativo, pessoas que há anos deveriam ter recebido reparação por perdas impostas pelo Estado só agora passaram a ter seus direitos observados. Abrão diz que, "se por um lado essa demora é triste e injusta, mais importante é verificarmos que estamos avançando na direção correta, para afirmação da democracia".
Abrão vê a lei como uma vitória do ponto de vista da reparação moral, mas a considera absolutamente assimétrica do ponto de vista da reparação econômica. Abrão explica seu ponto de vista lembrando que a lei trabalha com dois públicos: os perseguidos políticos no sentido clássico, ou seja, pessoas que foram presas, torturadas, viveram na clandestinidade, e aqueles que foram demitidos arbitrariamente, sobretudo por envolvimento em movimentos grevistas ou atividades sindicais. Para o primeiro grupo, a lei prevê indenização paga de uma só vez, com teto de R$ 100 mil. No segundo caso, concede-se pensão mensal vitalícia no valor correspondente à remuneração que a pessoa receberia se estivesse trabalhando, adicionada de efeitos retroativos até 1988. Com isso, alguém que perdeu um emprego remunerado de R$ 4 mil mensais, por exemplo, além da pensão mensal poderá receber quase um milhão de reais em acréscimos. "Corrigir essa distorção seria fundamental para uma justiça mais efetiva", argumenta Abrão.
São dois os propósitos da comissão, diz Abrão. O primeiro tem uma dimensão individual e diz respeito a reparar as pessoas que tiveram seus destinos alterados por atos ilegais do Estado brasileiro. Esta é uma missão eminentemente ligada ao resgate da dignidade da pessoa humana e à afirmação pública de que o estado de direito faz valer seus princípios, mesmo que tardiamente. A outra finalidade é social, é coletiva, diz respeito a não deixar a sociedade esquecer o que aconteceu no passado para não permitir que se repita no futuro.
Para o advogado Marcus Vinicius Cordeiro, diretor cultural da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, a Lei de Anistia não foi o melhor dos instrumentos para reparar os danos causados pela ditadura militar. Ele acha que a lei que regulamenta o artigo 8º do Ato de Disposições Transitórias cumpre melhor esse objetivo, mas a Lei de Anistia, mesmo como foi promulgada, teve extraordinária importância política, estimulando o movimento popular que mais adiante levou ao fim da ditadura militar. Para Cordeiro, um dos problemas da lei está na dubiedade do alcance da anistia. Ele cita o artigo 1º, que considera anistiados aqueles que "cometeram crimes políticos ou conexo com estes". Segundo Cordeiro, "os saudosos da ditadura traduziram tais crimes conexos como aqueles praticados pelos torturadores".
A OAB foi uma das entidades mais atuantes na defesa da anistia, recorda Cordeiro, ressaltando que é próprio dos advogados a inclinação pela liberdade, o que levou muitos profissionais a se engajarem na luta contra a ditadura. "As liberdades civis e seus instrumentos jurídicos - habeas-corpus, mandado de segurança - foram banidos naquele período." Cordeiro comenta que a OAB foi um dos alvos preferidos das forças de repressão. Em 1980, uma bomba explodiu no gabinete do presidente , o jurista Eduardo Seabra Fagundes, matando a secretaria Lyda Monteiro. A autoria do crime nunca foi esclarecida.
As ambiguidades da Lei de Anistia podem ser resolvidas. Na semana passada, em Brasília, o ministro Paulo Vanuchi, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, apresentou uma nova versão do Programa Nacional de Direitos Humanos. Nessa atualização, que ainda deve ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, propõe-se um conjunto de ações visando identificar e responsabilizar agentes do Estado que durante a ditadura militar torturaram, mataram ou de alguma outra forma cometeram abusos contra opositores do regime. O documento sugere a revogação das leis que impedem e dificultam o esclarecimento desses crimes - que nos meios militares são considerados prescritos. Pretende-se também proibir que os nomes de violadores de direitos humanos sejam tomados para denominar ruas e outros lugares públicos.
Ernesto Soto, jornalista, é autor de "1968, Eles Só Queriam Mudar o Mundo" (Jorge Zahar), com Regina Zappa
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
José Luis Fiori e a crítica da Utopia liberal
José Luís Fiori
Do Valor Econômico
"...a geopolítica do equilíbrio de poderes e a prática do imperialismo explícito deixaram de fazer sentido devido a uma série de novos fatos históricos [...] esta abordagem das relações internacionais não tem mais espaço no mundo em que vivemos, do pós-colonialismo, da globalização, do sistema político global, e da democracia [...] com a globalização, todos os mercados estão abertos e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado [...] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes países também não faz mais sentido [...] No Século XX, as guerras entre as grandes potências não faziam sentido porque todas as fronteiras já estavam definidas." - Luiz Carlos Bresser-Pereira, em "O mundo menos sombrio", Jornal de Resenhas, nº 1, 2009, USP, p. 7
Na segunda metade do Século XX, em particular depois de 1968, tornou-se lugar comum a crítica dos "novos filósofos" europeus, que associavam a utopia socialista ao totalitarismo. Mas não se ouviu o mesmo tipo de reflexão, depois da década de 80, quando a utopia liberal se tornou hegemônica e suas ideias tomaram conta do mundo acadêmico e político. Logo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama popularizou a utopia do "fim da história" e da vitória da "democracia, do mercado e da paz". E apesar dos acontecimentos que seguiram, suas ideias continuam influenciando intelectuais e governantes, sobretudo na periferia do sistema mundial. Basta ver a confusão causada pelo anúncio recente da decisão americana de ampliar sua presença militar na América do Sul. Com a instalação ou ampliação de sete bases militares no território colombiano, que deverão servir de "ponto de apoio para transporte de cargas e soldados no continente e fora dele" (FSP, 05/08/09).
O governo americano justificou sua decisão com objetivos "de caráter humanitário e de combate ao narcotráfico". A mesma explicação que foi dada pelo governo americano, por ocasião da reativação da sua IV Frota Naval, na zona da América do Sul, no ano de 2008 : "Uma decisão administrativa, tomada com objetivos pacíficos, humanitários e ecológicos" (FSP, 09/07/08). Uma das funções dos diplomatas é participar deste jogo retórico que às vezes soa até um pouco divertido. E cabe aos jornalistas o acompanhamento destes debates sobre distâncias, raio de ação dos aviões, ameaça das drogas etc. Todavia, os intelectuais têm a obrigação de transcender este mundo da retórica e dos números imediatos e também o mundo das fantasias utópicas, o que às vezes não acontece, e não se trata - evidentemente - de um problema de ignorância.
Pense-se, por exemplo, na utopia liberal do "fim das guerras", que já não fariam mais sentido entre os grandes países, e contraponha-se este tese com a história passada e a história dos Séculos XX e XXI. Segundo a pesquisa e os dados do historiador e sociólogo americano, Charles Tilly, "de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada 14 meses. A era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos antigos a guerras mais frequentes e mais mortíferas [aliás], desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais [enquanto] o sangrento Século XIX contou 205 guerras" (Charles Tilly, Coerção, capital e Estados europeus , Edusp, 1996, p. 123 e 131).
Mesmo na década de 1990, durante os oito anos da administração Clinton, que foi transformado na figura emblemática da vitória da democracia, do mercado e da paz, os EUA mantiveram um ativismo militar muito grande. E, ao contrário da impressão generalizada, "os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares" (Bacevich, 2002: p:143). E mais recentemente, os "fracassos" militares dos EUA, no Iraque e no Afeganistão - ao contrário do que dizem - aumentaram a presença militar dos EUA na Ásia Central e o cerco da Rússia e da China, envolvendo, portanto, preparação para a guerra entre três grandes potências. Em tudo isto, fica clara a dificuldade intelectual dos liberais conviverem de forma inteligente com o fato de que as guerras são uma dimensão essencial e co-constitutiva do sistema mundial em que vivemos, e que portanto não é sensato pensar que desaparecerão. Ao contrário do que pensam os liberais, a associação entre a "geopolítica do equilíbrio de poderes" e as guerras não se restringe ao Século XIX - já havia sido identificada na Grécia - e o sonho do "governo mundial" das grandes potências existe pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, sem que isto tenha impedido o aumento do número dos Estados e das guerras nacionais.
Neste tipo de sistema mundial, por outro lado, é muito difícil acreditar na possibilidade do "fim do imperialismo", e ainda menos neste início do Século XXI, em que as grandes potências - velhas e novas - se lançam sobre a África e sobre a América Latina disputando palmo a palmo o controle monopólico dos seus mercados e das fontes de energia e matérias-primas estratégicas. E soa quase ingênua a crença liberal nos "mercados abertos", num mundo em que todas as grandes potências impedem o acesso às tecnologias de ponta, não aceitam a venda de suas empresas estratégicas e protegem de forma cada vez mais sofisticada seus produtores industriais e seus mercados agrícolas. Neste ponto, chama atenção a facilidade com que os economistas liberais confundem os mercados de petróleo, armas e moedas, por exemplo, com os mercados de chuchu, queijos e vinhos.
Em tudo isto, o importante é que a utopia liberal também pode ter consequências nefastas, sobretudo para os países que não estão situados nos primeiros escalões da hierarquia de poder do sistema mundial. Se as utopias de esquerda levaram - em muitos casos - ao totalitarismo, a utopia liberal e sua permanente negação do papel poder e da preparação para a guerra, na história do capitalismo e das relações internacionais, leva, com frequência, os intelectuais e dirigentes destes países mais fracos à uma posição de servilismo internacional.
José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.
Do Valor Econômico
"...a geopolítica do equilíbrio de poderes e a prática do imperialismo explícito deixaram de fazer sentido devido a uma série de novos fatos históricos [...] esta abordagem das relações internacionais não tem mais espaço no mundo em que vivemos, do pós-colonialismo, da globalização, do sistema político global, e da democracia [...] com a globalização, todos os mercados estão abertos e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado [...] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes países também não faz mais sentido [...] No Século XX, as guerras entre as grandes potências não faziam sentido porque todas as fronteiras já estavam definidas." - Luiz Carlos Bresser-Pereira, em "O mundo menos sombrio", Jornal de Resenhas, nº 1, 2009, USP, p. 7
Na segunda metade do Século XX, em particular depois de 1968, tornou-se lugar comum a crítica dos "novos filósofos" europeus, que associavam a utopia socialista ao totalitarismo. Mas não se ouviu o mesmo tipo de reflexão, depois da década de 80, quando a utopia liberal se tornou hegemônica e suas ideias tomaram conta do mundo acadêmico e político. Logo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama popularizou a utopia do "fim da história" e da vitória da "democracia, do mercado e da paz". E apesar dos acontecimentos que seguiram, suas ideias continuam influenciando intelectuais e governantes, sobretudo na periferia do sistema mundial. Basta ver a confusão causada pelo anúncio recente da decisão americana de ampliar sua presença militar na América do Sul. Com a instalação ou ampliação de sete bases militares no território colombiano, que deverão servir de "ponto de apoio para transporte de cargas e soldados no continente e fora dele" (FSP, 05/08/09).
O governo americano justificou sua decisão com objetivos "de caráter humanitário e de combate ao narcotráfico". A mesma explicação que foi dada pelo governo americano, por ocasião da reativação da sua IV Frota Naval, na zona da América do Sul, no ano de 2008 : "Uma decisão administrativa, tomada com objetivos pacíficos, humanitários e ecológicos" (FSP, 09/07/08). Uma das funções dos diplomatas é participar deste jogo retórico que às vezes soa até um pouco divertido. E cabe aos jornalistas o acompanhamento destes debates sobre distâncias, raio de ação dos aviões, ameaça das drogas etc. Todavia, os intelectuais têm a obrigação de transcender este mundo da retórica e dos números imediatos e também o mundo das fantasias utópicas, o que às vezes não acontece, e não se trata - evidentemente - de um problema de ignorância.
Pense-se, por exemplo, na utopia liberal do "fim das guerras", que já não fariam mais sentido entre os grandes países, e contraponha-se este tese com a história passada e a história dos Séculos XX e XXI. Segundo a pesquisa e os dados do historiador e sociólogo americano, Charles Tilly, "de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada 14 meses. A era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos antigos a guerras mais frequentes e mais mortíferas [aliás], desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais [enquanto] o sangrento Século XIX contou 205 guerras" (Charles Tilly, Coerção, capital e Estados europeus , Edusp, 1996, p. 123 e 131).
Mesmo na década de 1990, durante os oito anos da administração Clinton, que foi transformado na figura emblemática da vitória da democracia, do mercado e da paz, os EUA mantiveram um ativismo militar muito grande. E, ao contrário da impressão generalizada, "os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares" (Bacevich, 2002: p:143). E mais recentemente, os "fracassos" militares dos EUA, no Iraque e no Afeganistão - ao contrário do que dizem - aumentaram a presença militar dos EUA na Ásia Central e o cerco da Rússia e da China, envolvendo, portanto, preparação para a guerra entre três grandes potências. Em tudo isto, fica clara a dificuldade intelectual dos liberais conviverem de forma inteligente com o fato de que as guerras são uma dimensão essencial e co-constitutiva do sistema mundial em que vivemos, e que portanto não é sensato pensar que desaparecerão. Ao contrário do que pensam os liberais, a associação entre a "geopolítica do equilíbrio de poderes" e as guerras não se restringe ao Século XIX - já havia sido identificada na Grécia - e o sonho do "governo mundial" das grandes potências existe pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, sem que isto tenha impedido o aumento do número dos Estados e das guerras nacionais.
Neste tipo de sistema mundial, por outro lado, é muito difícil acreditar na possibilidade do "fim do imperialismo", e ainda menos neste início do Século XXI, em que as grandes potências - velhas e novas - se lançam sobre a África e sobre a América Latina disputando palmo a palmo o controle monopólico dos seus mercados e das fontes de energia e matérias-primas estratégicas. E soa quase ingênua a crença liberal nos "mercados abertos", num mundo em que todas as grandes potências impedem o acesso às tecnologias de ponta, não aceitam a venda de suas empresas estratégicas e protegem de forma cada vez mais sofisticada seus produtores industriais e seus mercados agrícolas. Neste ponto, chama atenção a facilidade com que os economistas liberais confundem os mercados de petróleo, armas e moedas, por exemplo, com os mercados de chuchu, queijos e vinhos.
Em tudo isto, o importante é que a utopia liberal também pode ter consequências nefastas, sobretudo para os países que não estão situados nos primeiros escalões da hierarquia de poder do sistema mundial. Se as utopias de esquerda levaram - em muitos casos - ao totalitarismo, a utopia liberal e sua permanente negação do papel poder e da preparação para a guerra, na história do capitalismo e das relações internacionais, leva, com frequência, os intelectuais e dirigentes destes países mais fracos à uma posição de servilismo internacional.
José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro "O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações" (Editora Boitempo, 2007). Escreve mensalmente às quartas-feiras.
Assinar:
Postagens (Atom)