Valor Economico 21 de agosto de 2009
Passados 30 anos da promulgação, a Lei de Anistia, ainda ambígua e controversa, vai a julgamento no STF e na Corte InteramericanaDireitos no tribunal
Por Ernesto Soto, para o Valor, do Rio
21/08/2009
Manifestação pela anistia em São Paulo, fevereiro de 1979: a lei sancionada pelo general Figueiredo em agosto não seria tão ampla como se gostaria que fosse
O tempo passa e a Lei de Anistia, que neste mês completa 30 anos, ainda provoca controvérsias. Num primeiro momento, foi uma festa. Assinada em 28 de agosto de 1979 pelo presidente general João Figueiredo, a lei permitiu que as portas das prisões se abrissem, que milhares de exilados voltassem ao país, que muitos deixassem a clandestinidade e que centenas de importantes professores e pesquisadores fossem readmitidos em seus cargos nas principais universidades do país.
Terminada a festa, as ambiguidades da lei foram ficando mais claras. Abriu-se espaço, então, a polêmicas que passam hoje pelas críticas à extensão do benefício aos agentes do Estado que cometeram crime de tortura, a reivindicação da abertura dos arquivos em poder dos militares sobre a repressão na época da ditadura, localizacão dos militantes desaparecidos e devolução dos corpos dos guerrilheiros mortos no Araguaia. Também se questionam o valor de determinadas reparações pagas a perseguidos políticos (que alguns chamam de "bolsa ditadura") e a demora no julgamento de milhares de pedidos de anistia. (Leia artigo na página 14).
O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, diz que mais de 64 mil pedidos de reparação já foram apresentados e que é impossível prever em quanto tempo a comissão vai encerrar seu trabalho, já que o protocolo segue aberto. Ele considera que a comissão "simboliza as lutas democráticas de um período sombrio da história brasileira" e que sua missão está "eminentemente ligada ao resgate da dignidade da pessoa humana".
O ministro Carlos Minc, do Meio Ambiente, um dos exilados que, com Juca Ferreira (Cultura) e Franklin Martins (Comunicação Social), seus colegas no ministério de Lula, puderam retornar ao Brasil beneficiados pela anistia, entende que a experiência do exílio foi fundamental na reformulação do pensamento político da geração que abraçou a luta armada como forma de resistência à ditadura. Minc faz restrições a Lei de Anistia, especialmente quanto à não punição de torturadores, mas tem dúvidas se esta seria uma ocasião oportuna para trazer a questão para o centro do debate político. "Acho que, de uma forma ou de outra, isso vai ser colocado, mesmo porque a Constituição diz que a tortura é um crime imprescritível e hediondo. É importante que se abram os arquivos e se faça o ressarcimento, ainda que simbólico, de quem sofreu e que isso tudo nunca mais torne a acontecer."
Em 1979, no mês de agosto, que muitos consideram agourento, propiciador de tragédias e más notícias, teve-se um bom momento: na manhã do dia 28, o general Figueiredo, quinto presidente no regime dos militares, aquele que ameaçou prender e arrebentar quem fosse contra a democracia e que, ao entregar o poder a José Sarney, pediu que o esquecessem, assinou a 48ª Lei de Anistia na história do país. A primeira foi concedida aos nativos e portugueses que colaboraram com os 24 anos de ocupação holandesa na capitania de Pernambuco.
A lei sancionada por Figueiredo era ampla o suficiente para perdoar todos que cometeram crimes políticos - algo difícil de definir - entre setembro de 1961 e agosto de 1979, mas trazia como elemento complicador a exclusão dos que tivessem sido condenados por crime de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, e impedia a punição de torturadores.
Embora sujeita, em vários pontos, a diferentes interpretações, a lei foi suficientemente efetiva para permitir que, antes do pôr-do-sol daquela terça-feira nublada, as portas de algumas prisões começassem a se abrir, e os primeiros anistiados reencontrassem a liberdade. No entanto, muitos presos políticos ainda permaneceriam mais tempo nas suas celas, vítimas de confusões jurídicas ou, simplesmente, da má vontade de carcereiros.
Com a anistia, os militares avançavam em seu projeto de fazer a abertura política lenta e gradual. Demoraria ainda seis anos até que voltassem para os quartéis e devolvessem o poder aos civis.
A Lei de Anistia beneficiou, teoricamente, vencidos e vencedores, torturadores e torturados. Seu texto levanta questões que até hoje provocam polêmicas - como quando se indaga se a tortura, rotulada universalmente como um ato hediondo, pode ser considerada um crime político.
Agência O Globo
O general Figueiredo lê o texto da Lei de Anistia, a de número 48 na história do país: com ou sem restrições, permitiu-se que presos políticos fossem soltos, que exilados retornassem e que intelectuais retomassem suas antigas atividades
O texto originário do Executivo foi encaminhado ao Congresso Nacional, dividido na época entre MDB e Arena, chamados por alguns de partidos do "sim" e do "sim, senhor". Antes de aprovar a lei, os governistas tiveram de resolver um problema: uma emenda do deputado Djalma Marinho, do MDB, que propunha a ampliação irrestrita da lei, era inaceitável pelos militares. Depois de muitas articulações e conchavos, a emenda foi derrotada por apenas cinco votos: 206 a 201. Exultante, o senador que presidia a Arena saiu rapidamente do plenário para comunicar a boa nova ao general Figueiredo. Era José Sarney.
A notícia da promulgação da anistia se espalhou como um rastilho de pólvora pelo mundo, emocionando e agitando a diáspora de exilados brasileiros espalhada por vários países, principalmente França, Alemanha, Portugal e Suécia. Os regimes social-democratas europeus eram a alternativa mais segura para os perseguidos políticos que fugiam aos milhares das ditaduras militares que predominavam em quase toda os países da América Latina.
Naquela época, as comunicações não eram fáceis como agora. Não existiam celulares ou correio eletrônico. Houve uma enxurrada de telefonemas, informações ansiosamente trocadas, perguntas, decisões e indecisões. Mas a maioria agiu rápido. Resolveu os problemas burocráticos (aluguel, documentação, cancelamento em cursos nas universidades, demissão de empregos) e sentimentais (namoradas, relações mais estabelecidas), fez as malas e embarcou de volta. Começou então no Brasil um tempo curioso, em que os saguões dos aeroportos se transformaram em animados salões de festas. Militantes políticos, parentes e amigos esperavam o desembarque dos que retornavam em meio a muita algazarra, alegria e música. Mais por hábito do que por qualquer outra razão, a Polícia Federal às vezes aparecia e levava alguém para um burocrático depoimento. E só.
Com ou sem problemas, a Lei de Anistia permitiu que centenas de presos fossem soltos e que muitos exilados retornassem ao Brasil, entre eles Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, Miguel Arraes, Francisco Julião, Betinho, e que intelectuais fossem readmitidos em seus antigos cargos, entre eles, Florestan Fernandes, Mata Machado, Paul Singer, Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Maria Yeda Linhares, José Leite Lopes.
Passados 30 anos, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça continua a receber pedidos de perseguidos políticos. Até o fim da semana passada tinham sido apresentadas 64.151 solicitações de perseguidos políticos em busca de reparação. Desse total, 47.762 pedidos já foram apreciados e 16.389 aguardam manifestação. Entre os julgados, 16.603 foram indeferidos, 192 arquivados por razões diversas e 30.967 receberam a declaração de anistia. Segundo Abrão, "o principal trabalho da comissão é promover a reparação histórica para com aqueles que sofreram perseguições de um Estado que os devia proteger".
Dos requerimentos de anistia julgados pela comissão, 10.878 obtiveram algum tipo de reparação econômica. Nos casos restantes houve apenas um pedido de desculpas por parte do Estado. É impossível prever em quanto tempo a comissão vai concluir seu trabalho, já que o protocolo segue aberto e continuam chegando novos processos. Visando acelerar os julgamentos, a comisssão contratou novos funcionários, nomeou novos conselheiros e ampliou o número de sessões de trabalho.
Para Abrão, o fato de a comissão continuar em atividade tantos anos depois de a anistia ter sido promulgada prova que os processos de reparação são tradicionalmente lentos. Isso ocorre em todo o mundo, especialmente na América Latina, ele comenta. Apenas no fim da década de 1990 é que Argentina e Chile começaram a punir os agentes do Estado que cometeram crimes durante o período ditatorial.
No Brasil não é diferente. A lei de 1979 previa o retorno ao emprego de milhares de pessoas, mas foi assim para apenas algumas centenas. Em 1988, com a nova Constituição, esse direito foi ampliado. Somente em 2001 a Comissão de Anistia foi criada por medida provisória, que se converteu em lei em 2002. Com a lentidão do processo legislativo, pessoas que há anos deveriam ter recebido reparação por perdas impostas pelo Estado só agora passaram a ter seus direitos observados. Abrão diz que, "se por um lado essa demora é triste e injusta, mais importante é verificarmos que estamos avançando na direção correta, para afirmação da democracia".
Abrão vê a lei como uma vitória do ponto de vista da reparação moral, mas a considera absolutamente assimétrica do ponto de vista da reparação econômica. Abrão explica seu ponto de vista lembrando que a lei trabalha com dois públicos: os perseguidos políticos no sentido clássico, ou seja, pessoas que foram presas, torturadas, viveram na clandestinidade, e aqueles que foram demitidos arbitrariamente, sobretudo por envolvimento em movimentos grevistas ou atividades sindicais. Para o primeiro grupo, a lei prevê indenização paga de uma só vez, com teto de R$ 100 mil. No segundo caso, concede-se pensão mensal vitalícia no valor correspondente à remuneração que a pessoa receberia se estivesse trabalhando, adicionada de efeitos retroativos até 1988. Com isso, alguém que perdeu um emprego remunerado de R$ 4 mil mensais, por exemplo, além da pensão mensal poderá receber quase um milhão de reais em acréscimos. "Corrigir essa distorção seria fundamental para uma justiça mais efetiva", argumenta Abrão.
São dois os propósitos da comissão, diz Abrão. O primeiro tem uma dimensão individual e diz respeito a reparar as pessoas que tiveram seus destinos alterados por atos ilegais do Estado brasileiro. Esta é uma missão eminentemente ligada ao resgate da dignidade da pessoa humana e à afirmação pública de que o estado de direito faz valer seus princípios, mesmo que tardiamente. A outra finalidade é social, é coletiva, diz respeito a não deixar a sociedade esquecer o que aconteceu no passado para não permitir que se repita no futuro.
Para o advogado Marcus Vinicius Cordeiro, diretor cultural da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, a Lei de Anistia não foi o melhor dos instrumentos para reparar os danos causados pela ditadura militar. Ele acha que a lei que regulamenta o artigo 8º do Ato de Disposições Transitórias cumpre melhor esse objetivo, mas a Lei de Anistia, mesmo como foi promulgada, teve extraordinária importância política, estimulando o movimento popular que mais adiante levou ao fim da ditadura militar. Para Cordeiro, um dos problemas da lei está na dubiedade do alcance da anistia. Ele cita o artigo 1º, que considera anistiados aqueles que "cometeram crimes políticos ou conexo com estes". Segundo Cordeiro, "os saudosos da ditadura traduziram tais crimes conexos como aqueles praticados pelos torturadores".
A OAB foi uma das entidades mais atuantes na defesa da anistia, recorda Cordeiro, ressaltando que é próprio dos advogados a inclinação pela liberdade, o que levou muitos profissionais a se engajarem na luta contra a ditadura. "As liberdades civis e seus instrumentos jurídicos - habeas-corpus, mandado de segurança - foram banidos naquele período." Cordeiro comenta que a OAB foi um dos alvos preferidos das forças de repressão. Em 1980, uma bomba explodiu no gabinete do presidente , o jurista Eduardo Seabra Fagundes, matando a secretaria Lyda Monteiro. A autoria do crime nunca foi esclarecida.
As ambiguidades da Lei de Anistia podem ser resolvidas. Na semana passada, em Brasília, o ministro Paulo Vanuchi, da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, apresentou uma nova versão do Programa Nacional de Direitos Humanos. Nessa atualização, que ainda deve ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, propõe-se um conjunto de ações visando identificar e responsabilizar agentes do Estado que durante a ditadura militar torturaram, mataram ou de alguma outra forma cometeram abusos contra opositores do regime. O documento sugere a revogação das leis que impedem e dificultam o esclarecimento desses crimes - que nos meios militares são considerados prescritos. Pretende-se também proibir que os nomes de violadores de direitos humanos sejam tomados para denominar ruas e outros lugares públicos.
Ernesto Soto, jornalista, é autor de "1968, Eles Só Queriam Mudar o Mundo" (Jorge Zahar), com Regina Zappa
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