quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O STF e o Estatuto de Roma

Folha de São Paulo de 13 de agosto de 2009

STF avalia se Brasil poderia deter ditador do Sudão
Ministro Celso de Mello suscita conflito de regra internacional com Constituição

Estatuto de Roma, que criou tribunal emissor de ordem de prisão, estipula pena perpétua, o que contraria cláusula pétrea brasileira

MARCELO NINIO
DE GENEBRA

Embora o chanceler Celso Amorim tenha sido taxativo mais de uma vez ao afirmar que o país cumprirá o mandado de prisão internacional contra o ditador sudanês, Omar al Bashir, caso ele viaje para o Brasil, no STF (Supremo Tribunal Federal) o tema suscita dúvidas.
Após receber um pedido sigiloso do Itamaraty, a mais alta corte do país começou a analisar, no último dia 17, a ordem emitida pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra Bashir por crimes de guerra e contra a humanidade. O sigilo foi rejeitado, mas não a análise.
Em avaliação preliminar, o STF evoca possíveis inconsistências entre o mandado de prisão do TPI e a Constituição. Uma delas é a hipótese de Bashir ser condenado à prisão perpétua, pena proibida no Brasil.
"A matéria suscita reflexões em torno do TPI e do Estatuto de Roma, ainda mais em face das diversas objeções que têm sido expostas por eminentes doutrinadores", ponderou o ministro Celso de Mello. Num despacho de 19 páginas, Mello lembrou a controvérsia sobre a incorporação dos termos do estatuto, que criou o TPI, ao ordenamento jurídico brasileiro.
"Há uma tensão entre alguns dispositivos do Estatuto de Roma e a Constituição no campo das garantias penais", diz Oscar Vilhena, diretor da organização de direitos humanos Conectas e professor da Escola de Direito Constitucional da FGV-SP.
A discussão sobre supostas incompatibilidades entre o TPI e a Constituição não é nova e divide juristas desde a ratificação pelo Brasil do Tratado de Roma, em 2002. Mas agora ganha relevância por haver um pedido concreto ao Brasil e contra um líder em exercício.
Para muitos juristas, o Estatuto de Roma foi incorporado à ordem jurídica brasileira com a emenda 45, de 2004. Mas o próprio ministro Celso de Mello aponta ruídos que indicam "a alta relevância do tema e a necessidade de discussão, por esta Suprema Corte, de diversas questões que emanam da análise concreta deste pleito".
Um exemplo é o artigo 27 do Estatuto de Roma, que considera irrelevante se o réu é chefe de Estado. O Brasil, por tradição, reconhece a imunidade diplomática do dirigente.
Vilhena aponta que o estatuto se choca com garantias fundamentais brasileiras, "cláusulas pétreas" que não podem ser mudadas nem por reforma constitucional -como a proibição da pena perpétua.
Mas não acredita que isso impediria a prisão de Bashir caso ele visite o Brasil. "Esse problema pode ser resolvido se o TPI se comprometer a não aplicar uma pena maior do que 30 anos [máximo permitido no Brasil]. Assim, o STF não teria por que negar", diz Vilhena.
Embora o tema por enquanto se restrinja a debates nos meios especializados, ele pode se transformar em problema real no mês que vem, quando Bashir é esperado em Caracas no encontro África-América do Sul, para o qual foi convidado por Hugo Chávez, cujo país é um dos 110 signatários do TPI.

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