Folha de São Paulo, segunda-feira, 01 de fevereiro de 2010
As relações Brasil-EUA e os novos desafios no Haiti
MONICA HIRST
Historicamente, são infrequentes os momentos em que a presença militar do Brasil e dos EUA tenha coincidido num mesmo teatro de operações. Os dois precedentes que vêm à memória -Itália, em 1944, e Santo Domingo [República Dominicana], em 1965-revelam situações marcadamente diferentes da que se observa no Haiti nos dias que correm.
Em ambas ocasiões, as Forças Armadas brasileiras se somaram a ações comandadas militarmente pelos americanos, em nome de ideais que, na época, justificavam uma opção pelo alinhamento automático a Washington. Definitivamente, não é isso que se constata no caso haitiano.
De fato, o distanciamento militar brasileiro-americano teve lugar bem antes do fim da Guerra Fria, mais precisamente em 1977, quando -sob as premissas do pragmatismo responsável- o governo brasileiro denunciou o Acordo Militar de 1952. Desde então, o elo bilateral também esfriou em termos políticos e econômicos, e, se bem houve momentos de reaproximação, nunca mais foi observado um período prolongado de convergência bilateral.
Reaproximação
Contra as expectativas iniciais, as relações entre o Brasil de Lula e os EUA de George W. Bush ganharam mais substância, com implicações positivas para os dois lados. Afirmava-se em Brasília que o relacionamento com Washington passava por etapa de amadurecimento, selado com a inauguração de um diálogo estratégico.
No topo da lista de temas positivos, destacava-se a atuação brasileira em operações de paz, muito especialmente as responsabilidades assumidas com o comando militar do Haiti, a partir de 2004.
Do ponto de vista da política externa brasileira, foi sempre importante que este reconhecimento não fora confundido com uma forma de "terceirização" funcional aos EUA. Argumentou-se justamente que a presença no Haiti visava evitar experiências de ocupação já sofridas por este país reiteradamente no passado.
No empenho por esta diferenciação, procurou-se reforçar na Minustah [a força de paz da ONU] uma coordenação com outros países latino-americanos -especialmente a Argentina e o Chile- e somar à presença militar um programa de cooperação para o desenvolvimento com ênfase em áreas como agricultura, saneamento e serviços básicos.
Os riscos da duplicidade
As imediatas consequências internacionais do terremoto que assolou Porto Príncipe e outras cidades haitianas fazem com que, inevitavelmente, esse cenário, relativamente harmonioso, seja coisa do passado.
A unilateralidade dos EUA, colocando a sua capacidade de resposta militar à frente de sua vontade de coordenação política com a comunidade internacional, num contexto de total desamparo haitiano, foi um contundente sinal.
Para o Brasil, país que comandava militarmente a missão da ONU, isso passou a representar um desafio adicional a uma tarefa que, no intervalo de um minuto, adquiriu proporções desconhecidas.
Conhecer as razões estratégicas que explicam a reação americana -nas quais se somam a concepção do Caribe como seu "mare nostrum", o temor de um êxodo migratório haitiano e o princípio da responsabilidade de proteger em contextos de desastres humanitários- não alivia o desafio em questão.
A convivência no Haiti de duas dinâmicas de ocupação corresponde a um convite à anarquia e/ou a sistemáticas sobreposições de autoridade: uma que obedece a uma única cadeia de comando e outra que depende de um amálgama multinacional. O governo haitiano encontra-se duramente golpeado pelas perdas humanas e materiais sofridas por seu país. A total dependência da ajuda externa num contexto de dualidade poderá enfraquecê-lo ainda mais.
A solução adotada foi a de divisão de tarefas; os militares americanos responsáveis pela logística da ajuda humanitária e as forças da Minustah -sob o comando brasileiro- pela segurança. Esta saída administra, mas não resolve uma realidade em que o que está em jogo é a demarcação política da gestão a cargo da reconstrução haitiana. Por mais que o Brasil dobre o seu contingente no Haiti, não se superará a lógica imposta pela assimetria de forças. O território a ser valorizado, portanto, só poderá ser o da política.
Um desafio entre tantos
A estreita coordenação brasileira com a ONU, a articulação com grandes doadores como França, Espanha e Canadá e União Europeia, e o trabalho em equipe com outros países latino-americanos e organismos regionais -especialmente a OEA, Unasul, Grupo do Rio e Caricom- constituem o tecido desse território.
O primeiro mas não definitivo teste foi a reunião de Montréal [no Canadá, no último dia 25]. Com virtude e fortuna, a voz deste coletivo deverá domar Washington, para que aceite somar-se ao mutirão em formação para a reconstrução do Haiti. Mas, como se sabe, a disciplina interpares constitui para os EUA uma opção raramente valorizada.
Parece quase supérfluo concluir que o tema Haiti merecerá daqui para frente outro tipo de atenção e preocupação nas relações Brasil-EUA.
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MONICA HIRST é professora de política internacional na Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires, na Argentina.
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