sábado, 28 de fevereiro de 2009

Justiça civil para militares argentinos

O Globo, caderno “O Mundo”, 27 de fevereiro de 2009.

Num avanço em direitos humanos, lei põe fim a tribunais das Forças Armadas e deixa de punir homossexualismo

Janaina Figueiredo


A partir de hoje, militares argentinos que cometam delitos serão julgados pela Justiça Federal e deverão submeter-se ao Código Penal, como qualquer cidadão. Esta é uma das principais mudanças previstas na Lei 26.394, aprovada pelo Congresso no ano passado e que entra em vigência hoje. Na prática, a iniciativa, que começou a ser discutida no governo Nestor Kirchner, significa o fim do Código da Justiça Militar aprovado em 1951 e a implementação de um novo Sistema de Justiça Militar. A lista de novidades é ampla e inédita: foi erradicada a pena de morte e o homossexualismo deixou de ser considerada uma falta de disciplina grave pelas Forças Armadas, entre outras.

A reforma da Justiça Militar era uma das principais metas da ministra da Defesa, Nilda Garré, ex-militante peronista de esquerda, perseguida pela última ditadura argentina (1976-1983). Para Garré e sua equipe, o processo de democratização das Forças Armadas não podia excluir a modificação do sistema de Justiça Militar.

- Não podemos conceber uma democracia sem que as Forças Armadas estejam submetidas à autoridade civil, eleita pelo voto popular, como estabelece a Carta Democrática Interamericana – declarou a ministra.

De fato, a reforma fora solicitada à Argentina pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos. A iniciativa chegou à OEA quando o capitão do Exército Rodolfo Correa Belisle entrou com uma ação contra o Estado, no caso “Carrasco”. Em 1996, o capitão ficou 90 dias preso, após denunciar o encobrimento do assassinato do soldado Omar Carrasco. Correa Belisle foi condenado pela Justiça Militar e recorreu a tribunais internacionais. Em 2006, o Estado assumiu a responsabilidade pela “violação de múltiplos direitos” de Correa Belisle e se comprometeu a reformar a justiça militar.

Dois anos depois, Garré conseguiu o que muitos pensaram ser impossível num país que até os anos 90 era cenário de revoltas militares.

- Num Estado democrático de direito, os militares são considerados, antes de qualquer coisa, cidadãos. Entendemos que, também, devem ser considerados servidores públicos especializados na defesa nacional – afirmou Garré.

A lei foi aprovada por 154 votos a favor na Câmara e apenas dois contra. No Senado, a lei foi aprovada por unanimidade.

De acordo com colaborares de Garré, o novo sistema tem três instrumentos fundamentais: o julgamento de delitos comuns de acordo com o Código Penal e a ação da Justiça Federal, a criação de um Procedimento Penal Militar em Tempos de Guerra e Outros Conflitos Armados e de um Código de Disciplina das Forças Armadas, em caso de falhas ou erros administrativos.

- Nos últimos dois casos, os militares podem recorrer à justiça civil – explicou ao Globo o diretor de Comunicação Social do Ministério da Defesa, Jorge Bernetti.

Em todos os casos, os advogados passam a estar subordinados ao ministro designado pelo Poder Executivo e não mais a uma autoridade militar. Em caso de guerra, explicou Bernetti, “as autoridades com funções jurídicas serão designadas previamente, deverão respeitar as normas processuais e a sentença deverá ser ratificada por autoridades civis quando a guerra acabar”.

Para ele, “a reforma conta com um amplo consenso dentro das Forças Armadas, porque foi compreendido que era necessária como parte do processo de modernização da instituição”.

O novo sistema representa mais um avanço em direitos humanos. Desde que o casal K chegou ao poder foram adotadas medidas emblemáticas, como a anulação das leis do perdão, aprovadas no governo Raúl Alfonsín. O fim da anistia provocou a abertura de dezenas de processos contra militares envolvidos em crimes da ditadura. Vários acusados foram condenados.


NT: No Brasil, o último avanço considerável nessa matéria foi a criação do Ministério da Defesa, durante o governo FHC, em substituição às pastas do Exército, Marinha e Aeronáutica. No governo Lula os ministros da Justiça, Tasso Genro, e dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, vêm protagonizando a defesa da responsabilização dos torturadores do Regime Militar (1964-1985), mas enfrentam resistências dentro do próprio governo, bem como a antipatia do presidente do STF, Gilmar Mendes, que considera que este é um tema “que realmente precisa ser encerrado” (Estado de S. Paulo, 12 de agosto de 2008). A abertura dos arquivos do Regime Militar (ver postagem do dia 27, neste Blog) promete esquentar ainda mais a discussão.

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