Estado de São Paulo de 22 de fevereiro de 2009
Pelo direito das vítimas
Para jurista argentino que presidiu comissão da OEA, Brasil não pode usar a Lei da Anistia de 1979 para proteger torturadores
Juan Méndez*
- A ação apresentada no ano passado por uma procuradora federal contra antigos funcionários do DOI-Codi, sobre quem pesam acusações gravíssimas de tortura, execuções e desaparecimentos forçados, sofreu recentemente um revés. Isso porque uma decisão da Justiça considerou que os crimes em questão - um dos pedidos de investigação era sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 1975 - estavam prescritos, por causa do prazo transcorrido desde que foram cometidos. Essa é uma má notícia para o Brasil e para a causa dos direitos humanos.
A possibilidade - corajosamente aberta pelos procuradores paulistas - de o Brasil reabrir o doloroso capítulo dos crimes praticados pelas ditaduras militares, mostra que, por mais que se tente obstar a Justiça, não existe uma estratégia legal ou política que permita deixar impunes as graves violações dos direitos humanos mediante o uso de anistias ou indultos, ou alegando a prescrição dos crimes. Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil obrigam o País a encarar esse passado de maneira resoluta, a definir as responsabilidades e rever a maneira como foi aplicada a Lei da Anistia, de 1979.
O Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ)acompanha de perto o debate interno iniciado com a iniciativa dos procuradores Marlon Weichert e Eugênia Fávero. Eles questionam a maneira como se aplicou a lei de anistia no Brasil, beneficiando funcionários públicos acusados de graves violações dos direitos humanos. O debate nacional deveria ter como resultado a adoção de medidas efetivas para se obter a verdade, a justiça e o reconhecimento para as vítimas, e ser um caminho claro para a reconciliação e a prevenção de práticas monstruosas como a tortura, a execução extrajudicial ou os desaparecimentos forçados.
Além do compromisso com a justiça, a verdade e a proteção dos direitos humanos, inerentes ao Estado de Direito, o Brasil precisa também considerar as razões jurídicas que o obrigam, como membro da comunidade internacional e Estado parte das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos (OEA), a reabrir esse capítulo da sua história, por mais doloroso, polêmico ou criticado que seja o processo.
Alega-se que é impossível reabrir investigações sobre os crimes cometidos na ditadura por causa do transcurso do tempo e das anistias existentes. O direito internacional estabelece outra coisa. Foi isso que o ICTJ fez saber aos procuradores brasileiros num parecer em que explica as razões jurídicas que permitem a reabertura desses processos.
Em resumo, como se trata de crimes de lesa-humanidade, à luz dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, esses fatos não podem prescrever com o tempo e não podem ser amparados por anistias.
Os atos cometidos durante a ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, foram crimes de lesa-humanidade. A definição desses crimes pode ser encontrada nos Princípios de Nuremberg (1950) consagrados como normas de caráter imperativo (ius cogens), o que implica sua proibição absoluta.
Da mesma maneira, a definição de crime de lesa-humanidade foi reiterada em diferentes conceitos, princípios e convenções estabelecidas após Nuremberg e consideradas normas que devem ser cumpridas pelos Estados, do mesmo modo que as normas incluídas nos estatutos dos tribunais penais ad hoc encarregados da solução de casos de violações de direitos humanos na ex-Iugoslávia e em Ruanda, como também no Estatuto da Corte Penal Internacional.
E esses princípios também foram afirmados de modo reiterado por órgãos internacionais de controle, como a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, e se refletem na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
De acordo com essas regras, um único ato desumano (assassinato, tortura, desaparecimento forçado, violação, deportação, perseguição ou outro) cometido no cenário ou contexto de um ataque sistemático ou generalizado, configura crime de lesa-humanidade. Com base nos fatos ocorridos no período da ditadura militar, é claro que nos "anos de chumbo" no Brasil houve um ataque sistemático e generalizado contra a população civil, estruturado como uma política de Estado nos fatídicos Atos Institucionais, e a criação de um aparelho repressivo violento.
Os atos de sequestro, homicídio, falsidade ideológica, ocultação de cadáver, cometidos por agentes do Estado brasileiro durante o período da ditadura militar são atos desumanos que configuram crimes de lesa-humanidade, no âmbito de uma política de Estado e dirigidos contra setores da população civil. Seu caráter criminoso se baseia em normas do direito internacional que já vigoravam nos anos em que esses atos foram cometidos. É essa argumentação que permite assegurar que, embora tenham transcorrido mais de 20 anos, o Brasil tem que examinar os arquivos da ditadura e abrir processos judiciais para esclarecer as violações cometidas. Isso porque essas violações continuam vigentes, conforme a resolução 2338 da Assembleia-Geral das Nações Unidas e a convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa-humanidade.
De acordo com a Comissão de Direitos Humanos e a Corte Interamericana, as leis de anistia para violações graves de direitos humanos e crimes de lesa-humanidade impedem a investigação dos fatos e perpetuam a impunidade. Há uma posição unificada do sistema universal e do sistema interamericano de direitos humanos que considera que essas leis são contrárias a princípios de caráter universal e violam os tratados internacionais de direitos humanos, entre eles o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Igualmente, tribunais nacionais de instâncias superiores em países como Argentina, Chile, Peru e Colômbia decidiram que anistias, indultos e absolvições não podem impedir o cumprimento do dever do Estado de investigar e punir os crimes de lesa-humanidade cometidos em seu território por seus agentes. O cumprimento da sua obrigação internacional de persegui-los e puni-los, abstendo-se de usar a prescrição ou a existência de leis de anistia como justificativa para não fazê-lo, é a única posição adequada. De outra maneira, a afirmação por antinomia seria a de que o Estado viola deliberadamente seus compromissos internacionais.
As opções são claras: ou o Brasil decide comportar-se como um autêntico Estado de Direito, que respeita as obrigações internacionais consagradas na sua Carta Constitucional ou, pelo contrário, prefere enviar um perigoso sinal de impunidade a todos os que, em posições de poder, são capazes de abusar dos seus concidadãos.
*Ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e diretor do Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ). Este artigo contou com a colaboração do escritório do ICTJ em Bogotá
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