sábado, 28 de fevereiro de 2009

Noam Chomsky e a política norte-americana

Segue abaixo entrevista concedida por Noam Chomsky por email ao Globo do dia 28/02/2009

O Globo – O senhor poderia explicar por que o conceito de “Estado fracassado”, criado pelo governo dos Estados Unidos, em sua opinião se aplica aos EUA?
Noam Chomsky – Os especialistas concordam que esse conceito é vago, mas envolve três características principais: a incapacidade ou desinteresse em proteger a população; o desrespeito a leis e normas internacionais; e a existência de instituições democráticas formais, mas que funcionam apenas de forma limitada. É fácil mostrar que os EUA preenchem os três requisitos.

O Globo – O senhor enfatiza a responsabilidade dos EUA no crescimento do terrorismo islâmico, mas há quem observe que um movimento como a Al-Qaeda, por exemplo, não se opõe a políticas específicas dos EUA, mas à democracia secular como um todo. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Noam Chomsky – Há duas perguntas separadas aqui: quais são as causas do crescimento do terrorismo islâmico? E quais são os objetivos dos terroristas islâmicos? A resposta à primeira é indiscutível. O governo de Ronald Reagan, em particular, teve um papel decisivo e muito consciente na criação do terrorismo islâmico. Sua meta declarada era “matar russos”. Para atingir essa meta, o governo Reagan reuniu os maiores extremistas islâmicos que conseguiu encontrar ao redor do mundo, enviou-os ao Afeganistão e forneceu a eles crucial ajuda militar. Os objetivos da AL-Qaeda e de outros movimentos são uma questão separada, que não tem relação com a maneira como eles cresceram.

O Globo – O senhor acredita que sob a presidência de Barack Obama os EUA continuarão a ser, em sua política externa, um Estado fora-da-lei, como o senhor diz?
Chomsky – Haverá mudanças na política interna, em direção a uma posição mais de centro. O extremo radicalismo do governo Bush sem dúvida será cancelado; McCain faria mais ou menos a mesma coisa. Mas na arena internacional, não há indicação de nenhuma mudança significativa em relação ao segundo mandato do de Bush, a não ser na retórica. As políticas são mais ou menos as mesma, em alguns casos mais violentas e agressivas, como no Paquistão e no Afeganistão.

O Globo – Comentando o fervor despertado pela campanha de Obama, a escritora Joan Didion observou que de repente a ironia saiu de moda nos EUA. O cinismo deu lugar à credulidade. Qual sua opinião sobre esse entusiasmo?
Chomsky – A resposta mais definitiva a respeito da campanha foi dada pela indústria de relações públicas, que comanda as eleições. O principal órgão deles, “Advertising Age” (“Era da propaganda”), deu a Obama o prêmio de melhor campanha de marketing do ano, derrotando os computadores da Apple. Desde Reagan os candidatos são vendidos como bens de consumo, e este é o maior caso de sucesso que os publicitários já tiveram. Quanto ao entusiasmo, Bush era tão impopular que até seu partido se lançou contra ele, um fenômeno sem precedentes; 80% do país pensam estar indo na direção errada e querem mudança desesperadamente. Por isso Obama usou slogans “mudança” e “esperança”. O surpreendente é o quanto a margem da vitória foi pequena. Sob as circunstâncias, era de se esperar uma vitória de lavada do partido de oposição. Mas Obama ganhou por pouco – e entre eleitores brancos, McCain ganhou. Se o colapso financeiro tivesse demorado um pouco mais, talvez McCain ganhasse, apesar da performance desastrosa dos republicanos nos últimos 8 anos em praticamente todos os setores
O Globo – O procurador-geral dos EUA Eric Holder, disse recentemente que os Estados Unidos são uma nação de covardes no que diz respeito ao debate sobre o racismo. A eleição de Obama não prova o contrário?
Chomsky – A eleição de Obama foi, sem dúvida, um evento histórico, e é muito importante ter uma família negra na Casa Branca – embora haja um tanto de racismo na idéia que esse é um momento mágico que só poderia acontecer nos EUA. As eleições na Bolívia e no Brasil foram muito mais “mágicas” em termos de mostrar como uma dura opressão pode ser vencida dentro do sistema eleitoral. O fato de os dois principais candidatos democratas à presidência serem um negro e uma mulher mostra que os EUA se tornaram um país muito mais civilizado nas últimas décadas. É um tributo ao ativismo dos 1960, mas ainda há um longo caminho pela frente, como Holder presumivelmente quis enfatizar.
O Globo – Como o senhor, crítico feroz dos EUA, compararia os históricos de política externa e de direitos humanos do seu país com os da China, que para alguns está a caminho de se tornar a próxima potência global?
Chomsky – É muito improvável que a China substitua os EUA como a principal potência global. Ela tem enormes problemas internos, desconhecidos no Ocidente. Uma indicação disso é seu ranking na lista de Desenvolvimento Humano da ONU; em torno de 80º. A China também enfrenta crises ecológicas severas, e embora seu crescimento industrial seja impressionante, muito dele é de capital estrangeiro, em particular dos setores mais avançados. Quanto à política externa, a China hoje é o mais pacifista dos grandes poderes. É por isso que importantes analistas americanos como John Streinbrunner têm defendido que a China lidere uma coalizão de Estados pacifistas para conter o militarismo agressivo dos EUA. Já o histórico chinês de direitos humanos é claramente horrível, muito pior que o dos EUA.

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