domingo, 17 de janeiro de 2010

Breve solidariedade

Texto do Caderno mais da Folha de São Paulo de 17/01/2010

Breve solidariedade

Comoção mundial provocada pelo terremoto no Haiti, na terça, não irá se transformar em programa político para tirar o país da miséria

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Há comportamentos humanos que nos lavam a alma. Um dos mais belos é a solidariedade. Ficamos comovidos quando as pessoas se mobilizam para ajudar o próximo, ou melhor, fazer do outro um próximo, alguém com o qual compartilhamos nosso destino.
Quanto maior a tragédia, quase sempre maior é a reação solidária. O terremoto que destruiu o Haiti desde logo mobilizou todo mundo e ficamos orgulhosos de nossas tropas lá estacionadas. Esquecemo-nos de que a missão tem um cunho político e nos demoramos nos elogios de sua bravura.
O retrato de cada perda foi desenhado, cada soldado morto foi enaltecido e a grandeza dos trabalhos da Pastoral da Criança foi divulgada aos quatro ventos. Todos nos irmanamos num mesmo sentimento. Alguns escritores mais politizados lembraram as mazelas de uma nação que nasceu de uma revolta de escravos, mas que, talvez por isso mesmo, tenha sido neutralizada, coibida no seu desenvolvimento, para que não servisse de exemplo para a América Latina.
No Brasil escravocrata, muitos temeram que uma maioria de escravos pudesse, num golpe violento, se liberar de seus ferros. Mas no momento da grande catástrofe natural tudo isso se olvida. Vale a reafirmação de nossa humanidade, de nossa espiritualidade.
Não somos como as placas tectônicas que se chocam sem levar em conta os estragos na vida daqueles que vivem sobre elas. Não somos como os outros seres vivos que se entredevoram, com as raras exceções daquelas espécies que entram em simbiose ou daqueles animais que, pelo menos, caçam conjuntamente.
Abrimo-nos para estarmos juntos e nos abrimos para irmos além de nós mesmos, para a transcendência.

Vingança da natureza
A presença da morte nos une por laços que vão além daqueles já institucionalizados. Nem sempre essa presença nos articula, em geral tratamos de esquecê-la, como se não passasse de um acidente inesperado. Se o homem é aquele ser que fala e sabe que morre, também aprendeu a dizer sem falar e a morrer sem saber. A morte no hospital quase sempre não se transforma num incidente de uma biografia que haveria de durar para sempre?
Quando a natureza interrompe essas fronteiras pacificadoras -o terremoto, o tsunami, a erupção vulcânica e outros horrores-, é como se ela se vingasse. É como se o lado negro do espírito acuasse seu lado luminoso.
Nas guerras das estrelas, esse conflito não comparece como se desdobrasse duas forças, de tal modo transformadas pela técnica que se resolvem numa luta entre o espírito do mal contra o espírito do bem?
A noção de espírito anda meio desmoralizada entre os filósofos profissionais. É quase impossível depurá-la de seu ranço romântico, da exaltação a que foi submetida pelos idealistas alemães, como Hegel e Schelling. Este, no início do século 19, teve enorme sucesso pregando que a natureza, no fundo, seguia os caminhos traçados pelo espírito. Hegel o define como a ideia efetiva que se sabe para si mesma. Um saber que junta o teórico e o prático e que, por isso mesmo, pratica a verdade da natureza, mostra que essa natureza é apenas a passagem de uma verdade superior.

Crise ambiental
O terremoto de Lisboa, de 1755, foi sempre uma pedra no sapato desses otimistas. Igualmente, a crise ambiental em nosso século mostra os limites físicos muito palpáveis de um capital que se apresentou como espírito puro. Seja como for, há momentos na história em que as pessoas se tomam como cidadãos de um mundo do espírito, tecendo entre si fortes laços de solidariedade.
Essa trama admirável, porém, dura pouco, a não ser que se institucionalize como "Pastoral da Criança", "Comunidade Solidária" e tantos outros institutos. No entanto cabe perguntar: como uma instituição pode se manter solidária quando só pode subsistir enfrentando a rotina e os percalços da burocratização?
Às vezes se costuma afirmar que no maior perigo se encontra a salvação. Que não se faça desse enunciado uma fórmula, mas me parece que existe uma atividade humana que entremeia o maior perigo com a semente da salvação. Não é ela a política? Muito diferente, por certo, da atividade cotidiana do político, chata e repetitiva, que, particularmente no Brasil, dificilmente escapa da corrupção. Mas aquelas ações refundadoras do Estado, instauradoras do novo e que, por isso mesmo, escapam de qualquer análise científica.
Nunca me canso de citar o pensamento de Maquiavel afirmando que o estadista pode perder sua alma para salvar o Estado. Há momentos em que alguns homens abrem o espaço onde se tecem novas formas de sociabilidade.
O marquês de Pombal reconstruindo Lisboa. Robespierre levando o terror ao limite e, assim, criando um paradigma da destruição da própria política. Abraham Lincoln conferindo nova unidade aos EUA. Até que ponto o nosso Getúlio Vargas não criou igualmente um novo Estado brasileiro a despeito dos desastres do Estado Novo?
A política, no seu limite, é uma guerra das estrelas desdobrando-se nas fronteiras da Terra. O desastre do Haiti nos mostra a possibilidade de uma solidariedade capaz de capturar toda a população da América Latina.

Rotina de pobreza
Mas não vejo nela muitas forças capazes de transformar essa solidariedade numa política. Da mesma forma que estamos passando por uma grande crise sem aproveitar as chances de cortar certas raízes da desordem capitalista, tudo indica que, depois da tempestade, o Haiti voltará à sua rotina de miséria, como tantos outros povos do globo.
E os políticos muito seguros voltarão a se ocupar de suas almas -ou melhor, da alma de suas finanças. Tristes tempos.

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