domingo, 24 de janeiro de 2010

"Davos deveria decretar sua falência intelectual", diz idealizador do Fórum Social Mundial

Empresário brasileiro Oded Grajew, um dos mentores do Fórum Social Mundial, conta como a iniciativa surgiu há dez anos e avalia a repercussão dessa rede de movimentos sociais sobre a política internacional desde então.

Deutsche Welle: Dez anos após a realização do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), em 2001, como o senhor – um dos mentores desse espaço de reflexão e reivindicação paralelo à política institucional e a estruturas governamentais – avaliaria o impacto da iniciativa desde então? Haveria conquistas que o senhor atribuiria inequivocamente à influência do FSM?

Oded Grajew: Em 2000, a ideologia neoliberal estava no auge, a ponto de muitos cientistas sociais considerarem que havíamos chegado ao fim da história. O mercado, liberado de qualquer controle social, iria levar a humanidade à prosperidade e à justiça social. Carlos Menem (o presidente argentino que levou seu país à bancarrota) era recebido com honras em Davos e sua política considerada como modelo para países emergentes.

O Fórum Social Mundial surgiu para denunciar os riscos do modelo liberal e abrir um espaço onde pessoas, lideranças e organizações da sociedade civil, de forma auto-organizada, pudessem se encontrar e, seguindo os parâmetros de nossa carta de princípios, se articular para visibilizar experiências e propostas, se articular e se juntar para ações conjuntas.

A partir da realização do primeiro Fórum Social Mundial em 2001, em Porto Alegre, centenas de fóruns locais, nacionais, continentais e temáticos se espalharam pelo mundo. O lema do FSM – "Um outro mundo é possível" – ganhou corações e mentes. De 2001 para cá, o mapa político de vários países mudou completamente, a começar pela América Latina, onde começou o FSM. Muitos frequentadores do FSM desde o seu início são hoje presidentes dos seus países ou ocupam postos importantes de governo.

A delegação norte-americana sempre foi muito grande nos eventos do FSM e vários dos seus componentes tiveram papel decisivo na eleição de Obama. As grandes manifestações mundiais contra a guerra do Iraque foram todas articuladas em Porto Alegre e fizeram a Alemanha e a França desistir de participar daquela guerra. A unanimidade pelo modelo neoliberal ruiu completamente e os países que ainda continuaram a seguir essa ideologia foram aqueles que mais sofreram com a crise financeira de 2008.

Inúmeras redes sociais a nível nacional, continental e mundial se estabeleceram (por exemplo, a rede mundial pela água como bem público), conseguindo importantes avanços nos seus propósitos. Praticamente todas as pressões exercidas nos encontros do Banco Mundial, FMI, G8 e, mais recentemente, em Copenhague, foram articuladas a partir de lideranças e entidades ativas participantes do FSM.

Essas pressões tiveram, por exemplo, a capacidade de barrar o projeto neoliberal da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Enumerar a quantidade de ações geradas a partir do processo FSM esgotaria o espaço desta entrevista. Temos hoje uma sociedade civil global ativa e atuante em todos os assuntos relevantes e o FSM teve uma grande participação nessa construção.

Com o agravamento dos problemas climáticos e os efeitos da crise financeira mundial, algumas reivindicações do FSM se tornaram ainda mais atuais. Até que ponto as estruturas governamentais e internacionais vêm se tornando permeáveis a certas propostas do fórum nesse sentido?

Vários governantes atuais eram frequentadores de primeira hora do FSM. Foram eleitos quando a onda da mudança expressa pelo lema "Um outro mundo é possível" começou a se espalhar na sociedade e colocaram em prática várias idéias e propostas visibilizadas nos encontros do FSM. Vários destes países melhoraram a vida de sua população e não é por acaso que se saíram melhor de que outros na recente crise financeira.

A governança mundial exercida pelo G8 teve que ser ampliada para mais países. As Nações Unidas, sempre muito resistentes a se tornarem mais democráticas, perderam ao longo dos últimos anos uma boa parte de sua credibilidade. O tema ambiental, que sempre esteve muito presente no processo FSM, se tornou um assunto prioritário a nível mundial, mas infelizmente ainda muito longe de se traduzir em ações concretas.

E no caso específico do Brasil, como o senhor descreveria a relação entre a atuação do governo Lula e as estruturas não governamentais associadas ao FMS?


O presidente Lula esteve sempre presente nos encontros do FSM, mesmo antes de ser eleito. Ele incorporou ao seu governo diversas propostas gestadas no FSM e convidou várias lideranças sociais a fazer parte do seu governo. Várias (eu diria a maioria) das iniciativas do seu governo contaram com a simpatia de organizações sociais brasileiras, outras receberam críticas e outras ainda foram julgadas insuficientes.

Mas o fato mais importante é que foram instituídos vários espaços de participação em que sugestões, propostas e críticas puderam se expressar de forma democrática. O processo FSM no Brasil (como, aliás, em todo o mundo) conserva seu caráter não governamental e apartidário, sendo uma iniciativa exclusiva da sociedade civil.

O senhor foi um dos idealizadores do FSM. Qual foi exatamente a sua contribuição pessoal para a criação do fórum na época? O que possibilitou que a ideia fosse viabilizada em 2001?

Em janeiro de 2000, eu estava com a minha mulher, Mara, em Paris. Os meios de comunicação davam um grande destaque às idéias de Davos, dizendo que finalmente encontramos no modelo neoliberal o modelo ideal e que os críticos só sabiam criticar e não tinham nenhuma proposta alternativa. Eu lembrava também de uma conversa recente que havia tido com Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, em que notei total insensibilidade com as questões sociais e ambientais. Isso tudo me incomodava enormemente.

Um dia, sentado no quarto do hotel esperando minha mulher se arrumar para sairmos e refletindo sobre o que poderia ser feito para reagir a essa situação, tive a ideia: criar um Fórum Social Mundial em contrapartida ao Fórum Econômico Mundial, a fim de denunciar o modelo neoliberal, mostrar que existem outros modelos alternativos e oferecer um espaço para a sociedade civil se encontrar, se articular e ganhar força para ações conjuntas. Percebi logo que essa ideia tinha sentido e força. Chamei minha mulher e pergunte a ela o que achava. Ela gostou. Resolvi começar a testar a idéia.

Meu amigo Chico Whitaker estava coincidentemente em Paris na mesma época com sua mulher, Estela. Liguei para ele e contei a idéia. Ele também gostou. Propus a ele irmos conversar com Bernard Cassen, do Le Monde Diplomatique, que era nosso conhecido, para continuar a checar a idéia. Fomos com nossas mulheres ao seu escritório. Bernard também gostou e começamos a especular sobre o local. Bernard deu a idéia de Porto Alegre pelo fato de essa cidade ter sido governada vários anos por governos progressistas, proporcionando assim uma chance maior de acolhimento da ideia.

Voltando ao Brasil, telefonei ao prefeito de Porto Alegre e ao governador de Rio Grande do Sul, que já eram meus conhecidos. Os dois gostaram da ideia e se propuseram a apoiá-la. Eu já tinha vários anos de militância na área social, embora minha origem fosse como empresário do setor de brinquedos.

Na época, inclusive, era presidente do Instituto Ethos, que promove a responsabilidade social empresarial. Reuni no meu escritório do Ethos sete amigos e dirigentes de organizações sociais brasileiras para compartilhar a ideia do FSM e todos gostaram. Formamos o grupo de oito organizações brasileiras encarregadas de colocar em pé o primeiro evento. Fomos a Porto Alegre para verificar a infraestrutura. Fui buscar recursos com duas fundações internacionais (tive inclusive de viajar para conseguir esses apoios), o que viabilizou a instalação de um escritório e uma secretaria executiva.

Começamos a articular com organizações sociais internacionais com as quais todos nós tínhamos relações e organizamos o lançamento internacional do FSM num encontro em Genebra, em junho de 2000. Em janeiro de 2001, com a participação de 20 mil pessoas e a realização de 800 atividades (no último FSM, na Amazônia, tivemos a presença de 150 mil pessoas e a realização de 2.500 atividades), foi realizado o primeiro encontro do FSM.

Em breve, o senhor estará em Porto Alegre para o 10º FSM. Ao longo de uma década, o fórum também mudou sua estrutura, tendendo a uma maior descentralização. Dado o caráter de atuação local de grande parte dos movimentos e organizações envolvidos no fórum, como constituir um discurso por assim dizer "global"? Ou isso é dispensável?

O lema do FSM é "Um outro mundo é possível". Desde o seu início, o Fórum Social é mundial e tem a perspectiva da construção de um processo de globalização diferente, que privilegie o desenvolvimento sustentável, os direitos humanos, a justiça social e a democracia participativa. Na metodologia do FSM, dentro da Carta de Princípios, sendo um processo auto-organizado, cada organização desenvolve suas atividades, se manifesta e se articula de forma totalmente livre e independente. Ninguém é mais importante que o outro, nenhum tema exclui a relevância de outros. A valorização da diversidade é um dos pilares dos nossos princípios.

Desta maneira, há um fluxo e ligação permanentes entre assuntos e atividades locais, nacionais, continentais e globais que acabam se realimentando e se fortalecendo mutuamente. Foi por isso que, após três edições do FSM em Porto Alegre, veio a decisão de ir para a Índia e posteriormente para outros países da América Latina, Ásia e África, realizar fóruns nacionais e continentais na Europa, nos Estados Unidos. Com isso, o fórum foi se espalhando em cidades e países de todo o mundo, se articulando em ações locais e globais que não se contrapõem, mas se conectam e se fortalecem mutuamente.

O lema do Fórum Econômico Mundial neste ano é "Melhorar o estado do mundo: repensar, reformular, reconstruir". No entanto, considerando as medidas de combate à crise deliberadas pelo G20 e a falta de um consenso internacional relevante na Cúpula do Clima em Copenhague, o que deveria ser repensado em Davos?

O Fórum Econômico Mundial foi criado e é financiado pelos defensores do modelo neoliberal. Está a serviço de uma ideologia que coloca o mercado liberado de controles e restrições como o grande alavancador do "progresso", que enxerga as restrições ambientais como danosas ao desenvolvimento. Tornou-se uma atividade bastante lucrativa para o seu organizador, e diante dos sucessivos fracassos de suas ideias (em 2000, elegeu Carlos Menem, que levou a Argentina à bancarrota, como seu herói e recomendou que suas políticas fossem um modelo para todos os países da região; menosprezou todas as informações sobre o aquecimento global; nunca se manifestou contra as guerras atuais; não conseguiu prever a recente crise financeira até pouco tempo antes de ela estourar etc etc etc) deveria simplesmente decretar sua falência intelectual e moral e encerrar suas atividades.

Tenta maquiar seus reais interesses, escolhendo títulos pomposos para seus encontros e promovendo atividades filantrópicas (coletando alguns dólares entre seus participantes e achando que com aquilo vai acabar com a pobreza no mundo), para tentar passar a ideia de que se preocupa com questões sociais e ambientais.

As empresas e os governos que chegaram ao poder graças ao financiamento que obtiveram dessas empresas, frequentadores e financiadores de Davos, protagonistas do fracasso de Copenhague, deveriam investir suas energias para fazer uma profunda autocrítica sobre suas responsabilidades na enorme pobreza e desigualdade social em nosso planeta, no acirramento de conflitos e guerras, no eminente desastre ambiental que se aproxima devido às suas políticas e modelo de produção e consumo que colocam em risco a nossa vida, certamente a dos nossos filhos e netos e de toda a espécie humana.

O lema da reunião de fechamento de Davos deveria ser: "mea culpa –onde e como foi que tanto erramos?"

Oded Grajew, 65 anos, empresário e idealizador do Fórum Social Mundial, integra o Movimento Nossa São Paulo e é membro do Conselho Deliberativo e presidente emérito do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.

Entrevista: Simone Lopes

Revisão: Alexandre Schossler


Fonte: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,5136046,00.html

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