sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A União Européia e o Tratado de Lisboa

Folha de São Paulo primeiro de janeiro de 2010

Reformada, UE busca maior papel global
Bloco europeu aposta em novo estatuto e nomeação de presidente fixo para solucionar irrelevância política e ter mais eficiência

Primeiros sinais alimentam dúvidas sobre capacidade de mudança; Conselho, Comissão e presidência rotativa dividem Executivo

Não é pequena a missão da União Europeia (UE) para 2010. Depois de oito anos em um parto dolorido que trouxe à luz o Tratado de Lisboa -que visa "acelerar o processo decisório, ampliar a democracia e aumentar externamente a coerência do bloco"- e de um duro debate para nomear seu primeiro presidente fixo, falta achar um rumo que a reconduza ao centro do palco mundial.
Em tese, o tratado e a presidência fixa, para a qual foi escolhido o discreto ex-premiê belga Herman Van Rompuy, ajudariam o bloco a falar em uníssono e, assim, marcar melhor sua posição. Mas especialistas ainda debatem se de fato isso ocorrerá. Os primeiros indícios só reforçam as dúvidas.
No primeiro megaevento global de que a UE participou já com o estatuto em vigor e Van Rompuy no cargo -a Conferência do Clima da ONU, em Copenhague-, a proposta conjunta do bloco só veio na última hora, após um debate exaustivo e sob forma de consenso fraco.
O belga nem sequer foi à Dinamarca, reforçando as dúvidas sobre sua função e peso. Coube ao português José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, e à Suécia, na presidência rotativa da UE até ontem, representarem os países europeus.
Copenhague também deixou patente a perda de relevância da UE, com o texto final sendo costurado pelos EUA junto com os quatro grandes emergentes -China, Brasil, Índia e África do Sul- e os protestos ecoando da África e do Pacífico. Nada de Europa na história.
"Nada que aconteceu na Europa entra na minha lista de cinco grandes eventos do ano", escreveu, no último dia 24, o colunista Gideon Rachman, do "Financial Times".

Duas tendências
Duas tendências para o bloco nos próximos anos correm na contramão, e ainda é difícil saber qual prevalecerá.
Por um lado, a escolha de uma figura demasiadamente discreta como presidente, a falta de clareza sobre sua função e a sobreposição de comandos acabam por fortalecer a prevalência dos Estados nacionais e seus líderes. A estrutura de poder da UE inclui o Conselho Europeu, formado pelos chefes de Estado e de governo; a Comissão Europeia, que, com Lisboa, tenta a mudança de órgão burocrático para um real Poder Executivo; e a presidência rotativa, a partir de hoje e até junho nas mãos da Espanha.
"Os Estados-membros sempre tentam um consenso, o que dá aos integrantes maiores mais influência na UE", afirma Tanja Börzel, titular da cadeira de Integração Europeia na Universidade Livre de Berlim.
Para a professora, Lisboa muda muito pouco essa dinâmica. "Se você olhar as negociações sobre mudança climática, o modo como a UE estava representada era dividido entre britânicos, franceses, alemães e poloneses", diz. "São os grandes membros em termos de população e economia. Se eles concordam em uma posição comum, isso empurra a UE para frente. Contra a vontade deles, nada pode ser adotado."
Por outro lado, Lisboa reforça a importância do Parlamento do bloco e pede maior simbiose com seus equivalentes nacionais, a fim de incutir os temas europeus nas agendas legislativas e despertar uma consciência cidadã comum ainda virtualmente inexistente quase 18 anos anos depois do Tratado de Maastricht, a pedra fundamental do bloco.
Prevê também mais ação da Comissão Europeia, que, com o Tratado de Lisboa, promete ganhar fôlego na gestão de temas diários da população da UE.
Mas há dúvida se os 26 comissários -indicados pelos governos de seus respectivos países- conseguirão transformar o que até hoje funcionou como um modorrento órgão de tecnocratas em algo mais próximo de um gabinete ministerial.
Embora seja cedo para prever, os indícios são de que a UE dos próximos anos terá muito mais a cara de Angela Merkel, Nicolas Sarkozy, Gordon Brown e seus sucessores do que de Barroso e Van Rompuy.
Se progresso houver na consolidação da identidade política da UE, ele deve ser esperado do Parlamento -um órgão no qual os europeus ainda se mostram pouco interessados.
Se não houver, o continente que dirigiu o mundo seguirá marchando rumo à coxia como coadjuvante de segundo plano.

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