Prof Farlei Martins Ucam e doutorando de direito da Puc-rio nos envia a seguinte matéria
O Estado de S. Paulo, 20/09/2009
Celebrando Bobbio no seu centenário
Celso Lafer
O próximo mês de outubro assinala o centenário de nascimento de Norberto
Bobbio, o grande pensador italiano falecido em 2004, cuja obra há muito
tempo vem sendo discutida e apreciada em seu país e em tantos quadrantes
culturais do mundo. No Brasil, que visitou em 1983 e onde deu conferências e
participou de debates na Universidade de Brasília e na Faculdade de Direito
da USP, ele se tornou uma referência, não só para um diversificado espectro
do campo político brasileiro que vai da esquerda ao centro liberal, como
também para os estudiosos das áreas do conhecimento a que se dedicou ao
longo de uma vida voltada para o ensino e a pesquisa.
O rigor e a profundidade dos conhecimentos, o espírito público, a inteireza
do caráter, a altiva independência, o empenho no diálogo, o combate ao
arbítrio e aos fanatismos, a dedicação à preservação da liberdade e a
permanente preocupação com a igualdade são características do percurso de
Norberto Bobbio e do seu "socialismo liberal". Foram, no correr da sua vida,
explicitadas e articuladas como professor e intelectual que militou no
espaço público da palavra e da ação e são componentes substantivos do seu
magistério.
O que singulariza o magistério de Bobbio é a clareza. San Tiago Dantas
observou que "a tarefa da inteligência humana é tirar o valor das coisas da
obscuridade para a luz". A essa tarefa da inteligência humana Bobbio se
dedicou com resultados exemplares. Por isso, foi considerado o grande
clarificador dos problemas e desafios da teoria jurídica e da teoria
política, da paz e da guerra, da tutela dos direitos humanos, da relação
entre os intelectuais e o poder, das especificidades da cultura italiana e
europeia e de seus autores clássicos, para mencionar grandes e
significativos blocos da sua notável obra - da qual grande parte dos títulos
mais conhecidos está disponível em edições brasileiras. Bobbio esclarece os
seus leitores graças às virtudes do seu estilo de pensamento - e estilo,
como a cor para o pintor, é uma qualidade da visão, como dizia Proust.
O estilo de Bobbio é de índole analítica. Analisar significa dividir,
distinguir, decompor, que é o que ele faz no trato dos conceitos. Nas suas
análises opera com uma multiplicidade de dicotomias voltadas para apontar
diferenças e semelhanças e, dessa maneira, lidar com uma realidade complexa
e desordenada. Levando em conta a "lição dos clássicos" e os seus temas
recorrentes, reaglutina os conceitos, numa arte combinatória de grande
originalidade, na qual a linguagem ilumina o entendimento dos contextos e
das situações. É isso que faz dele um raro caso de pensador analítico com
agudo senso da História. Daí a qualidade e pertinência dos seus juízos.
O ponto de partida de Bobbio, como diz em Política e Cultura, é o da
"inquietação da pesquisa, o aguilhão da dúvida, a vontade do diálogo, o
espírito crítico, a medida no julgar, o escrúpulo filológico, o senso de
complexidade das coisas". O pano de fundo da sua obra, como a de Isaiah
Berlin, Raymond Aron, Hannah Arendt - o centenário destes também celebrei
nesta página -, é uma resposta às rupturas e descontinuidades do século 20,
cujas vicissitudes enfrentaram com a sensibilidade comum que,
independentemente das posições, caracteriza uma geração, como salienta
Ortega y Gasset.
Bobbio viveu os seus anos de formação no período fascista, regime político
que é parte integrante da dinâmica da "era dos extremos", que historicamente
moldou o século 20. O fascismo, como ele observou, "trazia a violência no
corpo. A violência era a sua ideologia". Caracterizou-se pela exaltação da
guerra e a estatolatria e o seu ímpeto motivador foi o combate à democracia.
A obra de Bobbio, em função da sua vivência e da sua oposição ao fascismo, a
isso se contrapôs. Por isso, como observa Pier Paolo Portinaro, tem como um
dos seus elementos constitutivos a contestação à fúria dos extremos, voltada
para a destruição da razão, que caracterizou o contexto político italiano e
europeu, com irradiação mundial antes, mas também depois da 2ª Guerra
Mundial. É, assim, um percurso intelectual muito voltado para a pesquisa e a
análise de alternativas medularmente distintas daquelas que o fascismo, como
regime de vocação totalitária, emblematizou, em especial a destruição da
democracia e a glorificação do belicismo e do papel salvador do "Duce".
É nessa moldura que se configuraram temas recorrentes e interligados da
reflexão de Bobbio. Entre eles, o da domesticação do poder pelo Estado de
Direito, a defesa da perspectiva dos governados pela abrangente tutela das
várias gerações de direitos humanos, a razão de ser da democracia e das suas
regras, que "conta cabeças e não corta cabeças". É nesse contexto, voltado
para eliminar ou limitar, da melhor maneira possível, a violência como meio
para resolver conflitos, que se insere a sua análise das relações
internacionais e o seu empenho em prol da paz, direcionado para conter o
caso mais clamoroso da violência coletiva, que é a guerra entre os Estados
que, na era nuclear, tem o potencial de destruição da própria humanidade.
A violência, que se caracteriza pela desproporção entre meios e objetivos e
pela falta de medida, destrói, exaure e não cria. Permeia este século 21,
que continua carregando no seu bojo a herança da "era dos extremos" que
moldou o século passado. A atualidade e a autoridade do legado de Bobbio
residem na lúcida busca que, com o realismo de um olhar hobbesiano e a
dimensão ética de um coração kantiano, empreende de caminhos jurídicos e
políticos alternativos à violência no labirinto da convivência coletiva. Tem
como lastro a conjetura de que o único possível e plausível salto
qualitativo na História é o da passagem do reino da violência para o da
não-violência.
Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da
Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi
ministro das Relações Exteriores no governo FHC
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