Interessante a pesquisa e a entrevista da referida autora. O desafio é compreender, porém, que os campos de concentração não são dados meramente históricos, mas uma trágica realidade hoje, como tenta nos mostrar Giorgio Agamben.
O campo não pode, ainda hoje, ser definido como uma fronteira fixa, fechada, e sim o espaço onde a dominação biopolítica toma forma, demandando assim uma fronteira em permanente construção, uma localização deslocante.
Também do caderno Mais da Folha de Sp.
Imigrantes e inimigos
HISTORIADORA REVELA DETALHES DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DE ALEMÃES, ITALIANOS E JAPONESES NO BRASIL E AS CONSEQUÊNCIAS DO ESTIGMA SOCIAL DEPOIS DA PRISÃO
MARIO GIOIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Depois de 15 anos de pesquisa, a historiadora Priscila Ferreira Perazzo, 41, consegue lançar o resultado de seu estudo sobre um tema pouco abordado pela historiografia do país: os campos de concentração no território brasileiro.
Menos terríveis que os campos de extermínio disseminados pela Alemanha nazista, os espaços são mais numerosos no país entre 1942 e 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, quando o governo Vargas declara inimigo o Eixo. Assim, por extensão, cidadãos nascidos na Alemanha, na Itália e no Japão começam a ser detidos e confinados em espaços especialmente feitos para esse fim.
"Prisioneiros da Guerra - Os Súditos do Eixo nos Campos de Concentração Brasileiros (1942-1945)" (Imprensa Oficial/Humanitas, 384 págs., R$ 35) se beneficiou da abertura gradual de arquivos oficiais e traz mais detalhes sobre os dez campos implementados em diversas condições por quatro regiões brasileiras (apenas o Centro-Oeste não abrigou locais desse tipo).
A análise vai desde os mais conhecidos presídios de Ilha das Flores e de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, até o campo de concentração de Tomé-Açu, no Pará, no meio da selva amazônica, para onde foi levada grande parte dos japoneses detidos no período. Há também o campo em Chã de Estevão, em Paulista (PE), onde alemães viviam reclusos em pequenas casas e tinham o direito de levar a família para essas residências.
"O tratamento dado aos súditos do Eixo, durante a guerra, é variado. Meu livro não pega aqueles imigrantes que foram obrigados, por exemplo, a ficar confinados em suas próprias casas no interior do Paraná e de São Paulo", conta a historiadora, que, pela documentação, acredita que o número de presos desse tipo não passou de 2.000 pessoas.
A definição dos campos vem de obras referenciais de nomes como o da teórica alemã Hannah Arendt (1906-1975) e do sociólogo britânico Anthony Giddens, entre outros. O escopo de "Prisioneiros..." também não se detém em experiências anteriores de espaços do tipo no Brasil, como o de Alagadiço, no Ceará, onde retirantes foram impedidos de entrar em Fortaleza e ficaram confinados em 1915 e, posteriormente, em 1932.
A seguir, trechos da entrevista com Perazzo.
FOLHA - Qual é a definição de um campo de concentração?
PRISCILA FERREIRA PERAZZO - Campo de concentração implica um lugar aberto, mas delimitado para ser objeto de vigilância, onde ficam reclusas pessoas que, por algum motivo, devem ser isoladas. É interessante demarcar que o uso de campos de concentração na primeira metade do século 20 foi mais extenso do que se imagina. Em razão de um pensamento comum que vem com o pós-guerra, hoje a gente acha que campo de concentração é só aquilo que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, com os nazistas, especialmente os espaços terríveis criados para o extermínio de pessoas, como Auschwitz. A prática de internar pessoas, civis ou militares, foi relativamente comum. As referências em estudos indicam que campos desse tipo começaram em 1899, na África do Sul, na Guerra dos Boêres, quando os ingleses confinaram os africâneres. Mas há formas de confinamento e segregação mais antigas, como os leprosários no final da Idade Média, entre outras experiências.
FOLHA - No Brasil, quais eram as condições gerais desses campos?
PERAZZO - Tinha de tudo. Chão de Estevão, em Pernambuco, por exemplo, não era prisão, era quase um vilarejo. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, os alemães ficavam em presídios, assim como no Rio, em Ilha Grande e Ilha das Flores. Em São Paulo, um deles era uma fazenda.
FOLHA - Havia diferenças no tratamento de cada grupo étnico?
PERAZZO - Sim, havia. O maior número de presos é de alemães, cerca de 60%. O segundo é de italianos, uns 30%, e o último de japoneses, o restante, que quase só ficaram em Tomé-Açu, no Pará. Mas o tratamento dado aos súditos do Eixo, durante a guerra, é variado.
FOLHA - Quais imigrantes tinham a pior situação?
PERAZZO - Com certeza, os alemães, que eram levados para os piores campos, os do Sul, que eram presídios, e os do Rio. Os comunistas estavam lá desde 1935, havia presos comuns. Foi reformada uma ala para seguir as recomendações da Convenção de Genebra, porque os prisioneiros de guerra não poderiam ficar no meio dos prisioneiros normais. Os relatos são de que os alemães se incomodavam, eram obrigados a ficar perto de assassinos, ladrões, em lugares mais cheios.
FOLHA - E, quando são libertados, qual é a reação dos brasileiros em relação a esses alemães?
PERAZZO - A pior possível. A perseguição contra eles é bem maior, em especial no Sul, é mais traumática. Ouvi descendentes que, à época, tinham de 12 a 20 anos e que contaram as muitas humilhações que as famílias sofreram. Eram famílias bem estabelecidas, tinham altos cargos em grandes empresas. Depois da passagem pelos campos, não conseguiam mais os mesmos empregos. As famílias ficaram destruídas, a miséria chegava. Quando voltavam, eram vistos como nazistas. Socialmente, eram estigmatizados. A polarização não veio no meio da Segunda Guerra, mas antes, nos anos 30. Havia a propaganda varguista, de 1938 para a frente, ficou pior. Os alemães sofriam hostilidade, eram chamados para depor na delegacia constantemente, ficavam uma noite detidos, saíam, depois eram pegos novamente. Em janeiro de 1942, começa a sair uma enxurrada de coisas contra eles, um monte de reportagens, jornais detonando os alemães, porque eles são inimigos, associando-os às piores atrocidades nazistas. Os japoneses também sofrem. São vistos como sabotadores, traidores, dissimulados. A recuperação da imagem desse grupo é recente.
FOLHA - É muito diferente de como os italianos são vistos, não?
PERAZZO - Totalmente. A relação política Brasil-Itália é diferente. A Itália sai da Segunda Guerra muito antes, Mussolini cai em 1943. O governo italiano que assume, provisório, é de cooperação com os Aliados, sai da guerra, não é mais beligerante. Por isso, em 1944 a FEB vai para a Itália lutar contra os nazistas.
A política étnica e nacionalista do governo Vargas tem diretrizes diferentes para cada grupo étnico. Algumas coisas aconteciam para os japoneses, muitas para os alemães e poucas para os italianos. Os italianos sofreram no auge da Segunda Guerra, porque aí eles eram vistos como fascistas.
FOLHA - Mas houve alemães que, ao não serem levados para campos do Sul e do Rio, tiveram melhores condições durante esse período?
PERAZZO - Sim, os de Chão de Estevão, em Pernambuco. Ao local foram enviados 23 alemães que trabalhavam na Companhia Paulista de Tecidos, da família Lundgren, das Casas Pernambucanas. A Lundgren aponta as 23 pessoas que têm de ser internadas. Esses 23 homens vão para o campo, que é constituído por várias casinhas. Quem tem família leva a sua. Quem não tem, ou seja, os solteiros, ficam numa casinha à parte. E sofrem toda a questão da vigilância. Como eles eram altos funcionários da empresa, especializados, técnicos, que vinham justamente da Alemanha e da Áustria para trabalhar na fábrica, eles faziam uma falta terrível, porque não havia substitutos capacitados. Então, a companhia ia à noite buscá-los de carro, levava-os à fábrica e eles faziam o que podiam, davam uma assistência aos outros funcionários. Se compararmos essa situação aos campos do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, nesses últimos a prisão é bem mais drástica.
FOLHA - Conseguir chegar a essas conclusões foi complicado? Qual é a situação desses arquivos e registros familiares?
PERAZZO - Hoje é bem mais fácil chegar a esses arquivos oficiais, não que seja simples alcançar todas essas conclusões. Locais como o Arquivo Histórico do Itamaraty e o Arquivo Nacional, ambos no Rio, têm vasta documentação. No entanto, isso não acontece em todos os Estados. No Pará, por exemplo, é muito difícil conseguir documentação oficial. Há pouca coisa dos campos de Tomé-Açu na própria cidade e em Belém, a capital do Estado.
Muitas vezes, temos o problema de não obtermos microfilmes ou xerox, então copiamos à mão páginas e páginas de livros e registros contidos até em latas.
Os registros familiares são complicados. Por exemplo, com a estigmatização dos alemães no pós-guerra, vários imigrantes que passaram por tudo isso queimaram o que tinham. Eles morriam de medo de sofrer represálias, se privaram da língua e de quaisquer outras associações com o nazismo. Levaram para o túmulo muitas informações essenciais sobre esse período.
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