Valor Econômico 29 de outubro de 2009
Queda do muro mudou violência política
O mundo contemporâneo - e as ciências sociais desse tempo - assumiram como marcos simbólicos a queda do Muro de Berlim, início do fim do socialismo real representado pela fúria popular que derrubou pedra por pedra do muro que separava as duas Alemanhas, em 1989, e o 11 de setembro de 2001, quando uma brigada fundamentalista derrubou as duas torres gêmeas de Nova Iorque, no maior atentado terrorista já ocorrido no mundo ocidental. Se há um consenso entre os especialistas de que estes marcos transformaram o mundo política e geograficamente, e de que, na esteira das modificações sofridas nas articulações entre os grupos sociais, produziu-se também formas de manifestação diversas de demandas políticas, eles ainda não conseguiram um terreno comum para compreender as novas articulações e a convivência com antigos elementos da ordem pré-muro, segundo Osmar Ribeiro Thomaz, da Unicamp, que ontem coordenou a mesa redonda "20 anos sem muro de Berlim: novas faces da violência política", no segundo dia do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
Os elementos da velha ordem nas novas configurações geográficas e nas estratégias políticas contemporâneas do poder imperialista foram trazidos pelo antropólogo Florian Mühlfried, do Max Planck Institute for Social Anthropology. O estudo antropológico de uma guerra de passaportes é uma tentativa de entender, a partir da particularidade do conflito da Rússia com a Geórgia em torno das repúblicas separaristas de Ossétia do Sul e Abcásia, os dilemas de construção democrática no Cáucaso pós-queda do Muro de Berlim.
As duas repúblicas declararam independência da Geórgia no final dos anos 90; em 2000, alegando questões humanitárias, a Rússia passou a distribuir passaportes e nacionalidade russa aos cidadãos de ambas as repúblicas. Em agosto de 2008, a Georgia atacou a Ossétia do Sul - e a Rússia, alegando que tinha por dever defender cidadãos seus em qualquer lugar do mundo, entrou no conflito com aquele. Naquelas alturas, a Ossétia do Sul já tinha 70% da população com nacionalidade e passaporte russos.
Essa política de anexação informal foi completada pela extensão de direitos sociais dos cidadãos soviéticos às minorias da Ossétia do Sul e da Abcássia que pouco a pouco foram sendo incorporadas, novamente, a um mundo de domínio russo, via nacionalidade e passaportes; por um quase controle de seu comércio pelas Rússia; por pesados investimentos da estatal de petróleo russa - com os empregos que isso representa. Cerca de 80% da economia do país, segundo Mühlfried, gira em torno das articulações políticas e econômicas com a Rússia.
A guerra dos passaportes foi uma política assumida pela Rússia assim que os dois países separatistas declararam independência em relação à Geórgia. Sem serem reconhecidas internacionalmente como repúblicas autônomas, ficaram impedidas de emitir passaportes, com grandes limitações não apenas à circulação de pessoas, mas também de mercadorias. As minorias étnicas dos dois países também foram vítimas de políticas de extermínio da Geórgia. A Rússia, país hegemônico da União Soviético, na construção do seu capitalismo e de sua democracia vai regionalmente assumindo-se numa nova etapa de imperialismo.
Para o sociólogo português João de Pina Cabral, embora a democracia tenha sido a marca das últimas décadas, o otimismo não é recomendável. "Isso não é nostalgia, mas avaliação lúcida", afirmou. No início dos anos 90, a queda do Muro de Berlim e a revolução na informação, que apontavam para uma nova ordem mundial mais humanizada, levaram à ganância da globalização financeira. A crise financeira do ano passado - que segundo ele ainda não terminou - não resultou numa mobilização internacional para mudar a "ganância suicida", mas em instrumentos que foram suficientes apenas para evitar um colapso. O fim do ciclo neoliberal e a eleição de Barack Obama não conseguiram conter esse processo, o que mostra uma "incapacidade dos EUA de reestruturar-se internamente" e que os conflitos apenas foram estendidos, sem solução previsível.
Se surgem atores que a médio prazo podem substituir o protagonismo dos EUA no cenário mundial, também não é essa uma razão para apostar na felicidade certa no futuro, pois estão entre os países que se colocam em ascensão a China e a Rússia. (MIN)
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