domingo, 19 de julho de 2009

Historiografia de 1789

Folha de São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009

Órfãos de majestade
Historiadora Mona Ozouf defende que a Revolução Francesa não foi a luta do povo "bom" contra o rei "mau"

RENATO JANINE RIBEIRO

Nas últimas décadas, as interpretações da Revolução Francesa [1789] se dividiram em duas vertentes. À esquerda, [o historiador francês] Michel Vovelle promoveu o estudo de lutas populares, fazendo também bom uso da história das mentalidades cunhada por [Lucien] Febvre e [Marc] Bloch.

Em 1989, Vovelle foi convidado por Mitterrand [presidente da França de 1981 a 1995] a dirigir as comemorações acadêmicas do bicentenário da Revolução, o que fez com um congresso mundial e pluralista. Já François Furet (1927-97), ex-comunista, comandou uma revisão da historiografia revolucionária, denunciando Robespierre e o terror. Sua equipe, da qual fez parte Mona Ozouf, autora de um belo "Varennes - A Morte da Realeza", que acaba de sair em português, soube estudar a fundo as ideias em jogo na época revolucionária. Digamos que, para ele, a revolução tinha acabado; para Vovelle, ela continuava.
Furet deve muito a Tocqueville - que em 1856 publicou "O Antigo Regime e a Revolução", ora reeditado em português. O grande problema que Tocqueville vê no processo revolucionário (que ele não aplaude nem condena) é que a monarquia absoluta não dera lugar para os cidadãos treinarem o manejo da coisa pública.

Já na Inglaterra, júris e parlamentos treinaram os cidadãos para decidir em matéria política e judiciária, isso desde os séculos 12 e 13.

Teoria ou prática

Sem poderem praticar a política, os franceses a teorizaram. A França tem em 1789 grandes teorias sobre o poder (é o século dos "philosophes"), mas pouco conhecimento prático. Para os ingleses, é o contrário.
Tocqueville prefere, na política, a prática.
Como a teoria francesa quer fundar a sociedade desde o zero (veja-se "O Contrato Social" de Rousseau), a revolução tenta varrer o passado.
Daí, o risco do terror. Para ele, a revolução completa um trabalho de centralização administrativa iniciado pelo Antigo Regime; teria sido preciso tanto sangue e guerra para chegar a um resultado que o governo anterior produziria?



Fernando Novais [historiador], certa vez, criticou Furet e seus mentores: disse que, contra Robespierre, eles retomavam a posição dos "monarchiens", monarquistas constitucionais que ficaram sem lugar naqueles inícios dos anos 1790 em que nem a corte, querendo restaurar o absolutismo, nem os revolucionários, querendo os direitos humanos, aceitavam um compromisso - uma França que seria inglesa, como?
Se não tinha 600 anos de participação nos assuntos públicos...

Revolução e cinema

Mas o melhor, aqui, é passar para o cinema. Ariane Mnouchkine [diretora francesa] filmou em 1974 uma bela peça: "1789". Ela começa em 1791, quando Luís 16 e Maria Antonieta tentam fugir para o estrangeiro, mas são reconhecidos na cidadezinha de Varennes e forçados a voltar a Paris.
No palco vemos todas as mesuras típicas de cortesãos. Mas, de repente, soa um grito:
"Não é assim que vamos contar essa história!". E há um segundo começo: uma camponesa vai dar à luz quando um nobre, vindo da caça, lava as botas na bacia de água quente que estava reservada para o parto. "1789" é uma peça do povo, que revive a revolução, tanto que termina com o público dançando ao som da "Ode à Alegria" de Beethoven.

Ettore Scola [cineasta italiano] rodou, em 1982, "Casanova e a Revolução", obra de ficção em que o aventureiro veneziano [Giacomo Casanova, interpretado pelo ator Marcello Mastroianni] acaba, sem querer, no meio da fuga para Varennes. Parece uma resposta a Mnouchkine.

O momento alto é quando uma condessa (Hanna Schygulla) explica o que o rei pretendia. Ele trajaria suas vestes solenes e, mostrando-se ao povo com elas, sem os (maus) intermediários que eram os deputados à Assembleia, restabeleceria a boa relação entre o pai que tudo sabe e protege seus súditos e estes, que são seus filhos inocentes e ignorantes.

Obviamente, isso já era impossível. Foram-se os tempos da realeza paternalista. Esse filme é Furet, é Ozouf -que ainda não escrevera seu "1791" ["Varennes - A Morte da Realeza"], mas que o termina citando a película.

Maus vizinhos

O que nos mostram Scola e Ozouf? Que a revolução não é a luta do bem contra o mal (ok), nem do bom povo contra o mau rei. É o fim de um tempo em que a realeza era paternal e o começo dos tempos em que vivemos a dificuldade de nos tornarmos irmãos, primos ou mesmo vizinhos, porque já não pensamos o poder na dicotomia entre o bom pai e o usurpador mau (Hamlet é o grande exemplo desse confronto, com um pai homônimo assassinado pelo mau tio Cláudio).

Mas o que falta a Ozouf, cujo livro é primoroso? Falta-lhe enfatizar que, se a realeza morre, quem a mata é a nobreza. "O rei era bom", dizia [o historiador Jules] Michelet em sua "História da Revolução Francesa", e era exatamente esse o problema: atendia a tudo o que lhe pediam os nobres. E eles, mostra H. Taine nas "Origens da França Contemporânea", haviam deixado de cumprir suas obrigações para com os inferiores.

Uma coisa era a nobreza ter prerrogativas, mas também deveres com os pobres. Outra foi ela ficar apenas nos privilégios, desdenhando o povo. O rei era bom, ele poderia aceitar uma monarquia constitucional (e Furet estaria feliz), que evoluiria à inglesa num século 19 pacífico. Mas a aristocracia era a má intermediária -ela, não os revolucionários condenados pela condessa no filme.

Quem matou a monarquia não foi a multidão que em 1792 invadiu as Tulherias [em Paris] em resposta à invasão da França pelas monarquias coligadas.
Foi a própria coalizão reacionária, somada a uma aristocracia idem. Em Varennes, as coisas parecem indefinidas. Quando o rei -preso, não há como esquecê-lo- é trazido a Paris, um cartaz difundido no caminho diz tudo: "Qualquer pessoa que aplaudir o rei será açoitada, quem o insultar será enforcado". Ele continua um personagem sagrado, e por isso a pena para o insulto é maior do que para o aplauso. Mas, se os óleos da coroação ainda ungem o seu corpo, o poder já lhe escapa.
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RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "O Afeto Autoritário" (ed. Ateliê), entre outros livros.

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