segunda-feira, 11 de maio de 2009

Bush e a Coréia do Norte

Folha de São Paulo de 11 de maio de 2009

ENTREVISTA DA 2ª

PAIK HAK-SOON

Bush alimentou ameaça da Coreia do Norte, diz analista
Ao incluir país no "eixo do mal", ex-presidente motivou postura desafiante; especialista antevê abertura econômica, mas manutenção do sistema político

A COREIA DO NORTE continuará a usar a ameaça nuclear, "enquanto os EUA não desistirem de derrubar o regime de Kim Jong-il, é a política de sobrevivência".
A opinião é do cientista político sul-coreano Paik Hak-soon, 54, que estuda há 20 anos o regime comunista do vizinho do Norte e já visitou várias vezes o país mais fechado do mundo, com a autorização dos dois lados.
Para ele, a Coreia do Norte vai seguir o caminho de China e Vietnã, "abrindo a economia, mas mantendo o sistema político intacto".

RAUL JUSTE LORES
ENVIADO ESPECIAL A SEUL

Paik diz acreditar que o cunhado de Kim deve sucedê-lo e que o Exército tomaria o poder se houver qualquer risco de invasão. Ele conta que DVDs e CDs piratas, que mostram a riqueza da Coreia do Sul, já circulam facilmente por Pyongyang, e que nos mercados, 90% dos produtos são chineses.
O estudioso escreveu sete livros sobre o assunto, o último é "North Korea in Distress: Confronting domestic and external challenges" (A agonia da Coreia do Norte: enfrentando desafios domésticos e externos, sem tradução para o português).
Ele recebeu a Folha em seu escritório no enorme campus da Fundação Sejong, onde assiste à KCTV, a rede estatal norte-coreana, que ele sintoniza com autorização do governo do Sul.
Na programação, acompanhada pelo repórter, musicais ultracoloridos que lembram o realismo soviético, imagens do ex-ditador Kim Il-sung, pai do atual ditador, Kim Jong-il, e programas infantis com bonecos e marionetes.
Leia os principais trechos da entrevista:






CARTADA NUCLEAR
A Coreia do Norte só é lembrada ou respeitada quando diz que tem o programa nuclear em andamento. A campanha que mostra a Coreia do Norte como vilã, como os "garotos maus", não ajuda o diálogo.
Na mesa, duas opções são fundamentais: cooperação ou punição. As duas têm que estar à mão. O problema é que a cooperação nunca esteve na mesa. Para que Kim Jong-il cederia?
O plano A seria o diálogo, mas na verdade só havia o plano B, de derrubar o regime, como foi no Iraque.

FRUTO DE BUSH
O projeto nuclear norte-coreano é parte de uma estratégia de sobrevivência externa. Houve duas declarações compartilhadas com a Coreia do Sul, de coexistência pacífica. O problema é que a política americana dos últimos oito anos foi sequestrada pelos neoconservadores de George W. Bush. Então, a Coreia do Norte sentiu que ao mesmo tempo em que se buscava o diálogo, os americanos queriam derrubar o regime de qualquer maneira.
A agenda secreta americana de derrubar Kim Jong-il nos anos Bush não interessa a ninguém. A China não quer ver o aumento da influência americana na Península Coreana, que aconteceria com o fim do regime do Norte e nem quer pensar em milhões de famintos cruzando a sua fronteira caso o regime comunista colapse.

"PROSTITUTA"
Você não pode chamar alguém com quem quer negociar de "eixo do mal". Imagine que você brigou com sua mulher, que quer reatar ou até mesmo se divorciar, mas em termos amistosos. Mas aí, no começo da conversa, você a chama de "prostituta". Os EUA fizeram isso com a Coreia do Norte, então queimaram toda possibilidade de diálogo.
Bush acabou fortalecendo os radicais de Pyongyang com essa estratégia, é um demônio criado pelos seus próprios erros. Se você caracteriza o adversário como demônio, só sobra o plano B.

RIQUEZA VIZINHA
A população urbana da Coreia do Norte já sabe que o Sul é muito mais rico. Há enorme circulação de DVDs e CDs piratas com música, novelas e filmes sul-coreanos.
Os norte-coreanos veem as imagens de arranha-céus e luxo em Seul, não dá para esconder. E não há polícia suficiente para ir de casa em casa, perseguir quem vê DVDs proibidos.
A fronteira da Coreia do Norte com a China é enorme, é por ali que devem entrar muitas coisas, o poder da propina é enorme. Não deixa de ser um "soft power" da Coreia do Sul, pois falamos o mesmo idioma.

REFORMAS
Em 2002, alguns princípios da economia de mercado foram introduzidos, e esse é um caminho sem volta. Em vários mercados de Pyongyang, foram permitidas a venda e a compra privada. O sistema de distribuição de comida foi abolido então, mas voltaram com ele porque muita gente não conseguia mais comprar comida.
Noventa por cento dos produtos que se veem nos supermercados são chineses

POLÍTICA INTACTA
A Coreia do Norte autorizou a criação de um complexo industrial em seu território, onde várias empresas do Sul se instalaram e contratam mão de obra do vizinho. A economia pode mudar, mas o sistema político seguirá intacto, Kim mira nos exemplos da China e do Vietnã.
Só que o ritmo das reformas é bem mais vagaroso porque, ao contrário desses dois países, ele ainda enfrenta um inimigo poderoso, os Estados Unidos.

PROPAGANDA MUDA
Com essas novas influências externas, dos DVDs piratas à presença de estrangeiros e ONGs em Pyongyang, a propaganda norte-coreana tem apostado mais na defesa da causa do socialismo, em enfatizar a importância da igualdade, em criticar a vida mais materialista da Coreia do Sul.
A população aprende desde criança que as privações são culpa do imperialismo e do capitalismo americanos.

O PAPEL DE OBAMA
Kim disse ao enviado da Coreia do Sul em 2000 que [o democrata] Al Gore deveria ter vencido [as eleições contra Bush]. E, desta vez, torceu por Barack Obama. Para ele, é o melhor para dialogar, pois a guerra não terminou ainda.
Cautelosamente, Obama vai desmanchando os anos Bush, conversando com a Rússia, enviando sinais para Irã, Cuba, e anunciando que quer desnuclearizar o mundo.
Bush pedia para a Coreia do Sul não falar com "nosso inimigo". Obama terá que pedir: "Precisamos falar com eles".
A Obama não interessa uma Coreia do Norte nuclearizada, que poderia provocar mais uma corrida armamentista na região. Seria até uma desculpa para o Japão se armar.

DILEMA
A Coreia do Norte vive o dilema Gorbatchov, de como se abrir para o mundo sem se implodir. Se a Coreia do Norte fosse parte do Leste Europeu, seu regime já teria desmoronado. Mas o Exército norte-coreano é independente, nunca ficou sob a asa das Forças Armadas chinesas ou soviéticas.

SUCESSÃO
Se Kim morresse agora, meu palpite é que seu cunhado assumiria o lugar. Chang Sung-taek controla os serviços de inteligência -o que em um país como a Coreia do Norte é muito- e ainda tem toda a confiança de Kim, pois manteria a família no poder.
Se houver qualquer possibilidade de vácuo no poder, ou de invasão estrangeira, os militares assumiriam a Presidência.

CAVALO VOADOR
Kim acaba de relançar um movimento chamado "Cavalo Voador". Em nossa mitologia, temos um cavalo voador que voa 4.000 km por dia. O primeiro cavalo voador foi no final dos anos 50, quando a Coreia do Norte estava destruída. A reconstrução precisava ser a jato.
Mas, na verdade, o movimento surgiu para brecar a briga das facções chinesa e soviética dentro do regime, que quase derrubam Kim Il-sung, o pai de Kim Jong-il, do poder. Ele precisava de uma mobilização popular para remover todos os rivais.
Não é à toa que Kim Jong-il lançou uma segunda campanha inspirada no Cavalo Voador. Tudo indica que ele teve problemas sérios de saúde no ano passado, mas ele não quer permitir a discussão sobre sua saúde. É uma maneira de se livrar de todos os rivais, de promover o otimismo da população, de manter a aliança viva.

REAFIRMAÇÃO
Há um caráter intrínseco do poder, quando você o exerce, você não permite dividi-lo. Se Kim Jong-il anunciasse hoje seu sucessor, se tornaria um pato manco imediatamente. Kim tem interesses em segurança, em demonstrar que pode lançar seus mísseis, e mostrar para o público interno quem está no comando e que o governo pode fazer proezas tecnológicas.

VITÓRIA E ALÍVIO
Há 10 ou 20 anos, havia muito mais medo. A competição entre as duas Coreias já acabou, o Sul capitalista venceu, enriqueceu, e o Norte sabe disso. Há um sentimento de conforto. E as armas da Coreia do Norte visam obter mais distância para atacar os Estados Unidos, não a nós. São mais usadas como poder de barganha que outra coisa.

BLOQUEIO
Quando a Coreia do Norte era mais livre, não tinha tanta atenção do mundo, ela podia exportar mísseis. Hoje é quase impossível, pois satélites de vigilância sabem tudo o que acontece ali. Paquistão e Síria eram clientes, e ela comprava material e tecnologia da China e da Rússia.
Mas claramente boa parte da tecnologia era própria, pois a China também não gostaria de transformar o vizinho em uma potência militar. Parte do orgulho nacional e da propaganda do país aproveitam essa questão: "Quantos países podem colocar um satélite em órbita? Nós podemos".

BRASIL
A principal relação diplomática da Coreia do Norte na América Latina sempre foi com Cuba, dentro da fraternidade de partidos comunistas durante a Guerra Fria. A aproximação com o Brasil e a abertura da embaixada têm a ver com a tentativa da Coreia do Norte de chegar a América Latina por razões políticas e econômicas, e eles olham o Brasil como um poder emergente mundial, por onde eles devem começar essa aproximação

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