domingo, 24 de maio de 2009

Os Talebans na perspectiva do conflito regional

Folha de São Paulo




São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009



Solução à guerra é regional, diz Tariq Ali
Escritor e ativista de esquerda, paquistanês afirma que EUA não podem vencer Taleban e propõe reunião com países vizinhos

Para Ali, Obama ainda não deixou claros seus objetivos na região; crítico de grupos religiosos radicais, ele se opõe a vetá-los em eleições



Um dos editores da revista britânica "New Left Review", conhecido pela visceral militância contra a política externa americana, o escritor e ativista paquistanês Tariq Ali se apoia em diagnóstico de um ex-diretor da CIA, a agência de inteligência dos EUA, para afirmar: a Otan (aliança militar ocidental) não pode vencer a guerra no Afeganistão, que se espraia para dentro de seu país. Ali preconiza solução regional, com participação dos países que apoiam grupos envolvidos no conflito afegão.
Diz que os fundamentalistas do Taleban, longe de representarem ameaça aos EUA, são hoje um movimento nacional dos pashtuns -quase metade dos afegãos e pelo menos 15% dos paquistaneses.
Autor de mais de uma dezena de livros, Ali acaba de lançar "The Duel" (o duelo), sobre o Paquistão, que sairá no Brasil, em 2010, pela Record. Leia trechos da entrevista à Folha, feita por telefone de Londres. (CLAUDIA ANTUNES)




FOLHA - Há um ano, o senhor escreveu que o aumento de tropas no Afeganistão não funcionaria. Mas isso é o que decidiu a Casa Branca de Barack Obama. O que virá agora?
TARIQ ALI - O que eu disse acabou de ser repetido em um artigo de Graham Fuller, ex-chefe da estação da CIA em Cabul: não é possível vencer a guerra; a fronteira entre Afeganistão e Paquistão é muito grande e montanhosa, não pode ser policiada; a resistência aos EUA agora se tornou parte do movimento nacional patshun. A única solução que poderia criar alguma estabilidade na região é a retirada da Otan. Os EUA são parte do problema.
Isso pensa a maioria dos observadores qualificados, e é difícil entender o que Obama está fazendo. Os EUA precisam esclarecer seus objetivos, quanto tempo vão ficar. Até agora, o que fizeram foi desestabilizar um país [o Paquistão] para manter a ocupação de outro.

FOLHA - O governo Obama diz que visa combater a Al Qaeda e atrair para negociações o setor "moderado" do Taleban.
ALI - É uma brincadeira. Em primeiro lugar, não é possível confundir a Al Qaeda com o Taleban. A Al Qaeda é um pequeno grupo terrorista que toda grande agência de inteligência diz que está em declínio e não representa ameaça. O Taleban é hoje essencialmente um movimento nacional que quer expulsar os estrangeiros.
Antes do 11 de Setembro, os EUA lidavam com o governo do Taleban, que tinha escritório em Nova York. O relatório da comissão [do Congresso dos EUA] sobre o 11 de Setembro diz que o Taleban estava disposto a entregar a Al Qaeda, mas queria ver as provas [de participação nos atentados]. A política social do Taleban é horrível, mas negociar com os EUA não é problema para eles.

FOLHA - Argumenta-se que, se os EUA saírem do Afeganistão, o cenário será semelhante ao que se seguiu à retirada soviética em 1989, com os grupos islâmicos combatendo entre si.
ALI - Por isso proponho uma conferência regional, com os três principais países ligados a grupos em disputa no Afeganistão -Paquistão, Irã e Rússia. Vamos discutir a estabilização, de modo que a Otan possa se retirar, ou discutir como os respectivos aliados no Afeganistão podem se sentar e negociar um governo de união nacional, que garanta ao povo afegão que não haverá guerra civil.
Depois é preciso consultar Índia e China, para ajuda na reconstrução. Se os EUA entregarem aos militares afegãos, não será suficiente.

FOLHA - Outro argumento é que mulheres e crianças afegãs estarão desprotegidas. Como lidar com os direitos humanos numa sociedade como a afegã?
ALI - A condição das mulheres afegãs não melhorou após oito anos de ocupação. Há poucas semanas, no vale do Swat, no Paquistão, uma mulher foi açoitada por homens do Taleban. Isso foi filmado secretamente, por pessoas que conheço, e eles entregaram a fita a uma TV. A reação foi de raiva no país.
Mulheres e homens se manifestaram, o presidente da Suprema Corte chamou o procurador-geral e cobrou ação. A pressão levou a liderança oficial do Taleban no Paquistão a se distanciar do açoitamento. Nessa questão, como em outras, a mudança só pode vir de dentro.

FOLHA - Os EUA se aproximaram da Índia, com um acordo nuclear que relegou a parceria com o Paquistão a um nível menor. Como vê este quebra-cabeças?
ALI - Nós últimos 50 anos, os EUA sempre viram a Índia como um país crucial, que eles vêm tentando transformar no seu aliado principal no sul da Ásia, especialmente para se desenvolver economicamente como rival da China. Os governantes paquistaneses, incluindo os militares, se sentem isolados, e agem como tal. Soube-se que parte dos bilhões fornecidos pelos Estados Unidos ao Paquistão depois do 11 de Setembro foi desviada para o programa nuclear. Não fico surpreso.

FOLHA - Diz-se que, por causa da disputa com a Índia pela Caxemira, os militares paquistaneses não se esforçam contra o Taleban. O serviço secreto usaria contatos com os extremistas para combater os indianos. Esse raciocínio ainda é válido?
ALI - Parcialmente. Mas agora os EUA estão avisando os militares paquistaneses de que, a menos que comecem a lutar contra os pashtuns na fronteira, não receberão dinheiro. Isso cria divisões dentro das Forças Armadas, o que é perigoso.
Muitos oficiais estão antecipando sua passagem à reserva ou se negando a cumprir um segundo turno. Sabem que a única razão pela qual lutam é porque estão sendo pagos pelos Estados Unidos. Quanto à questão da Caxemira, a menos que ela seja resolvida, se necessário com ajuda externa nas negociações, será difícil solucionar a situação no sul da Ásia.

FOLHA - O Paquistão fez acordo com o Taleban no vale do Swat, no começo do ano, e foi criticado. Era a estratégia correta?
ALI - O verdadeiro problema no Paquistão é que, nos últimos 60 anos, nós tivemos uma das elites dirigentes mais venais e corruptas do mundo. Não há educação para os pobres, sistema de saúde. Os grupos religiosos educam e alimentam os filhos das famílias pobres em suas escolas.
O papel do governo paquistanês não é deixar o Taleban fazer o que quiser, mas ter um plano social para transformar a região. Para reduzir a influência dos grupos religiosos -e eles nunca conseguem mais do que 10% nas eleições-, é preciso gastar o que vai para os militares em infraestrutura social para a maioria.

FOLHA - Há um debate sobre se os sistemas democráticos devem incluir os partidos religiosos como o Hamas palestino, a Irmandade Muçulmana egípcia. Argumenta-se que, no poder, esses grupos acabariam com a democracia. Qual a sua opinião?
ALI - Discordo desses grupos nos temas mais básicos. Mas acho que não é possível negar-lhes a participação em eleições democráticas.
O exemplo do que aconteceu na Argélia [com o golpe militar de 1991, que impediu a vitória da Frente Islâmica de Salvação] é desastroso. Se tivessem ganhado, longe de estabelecer uma ditadura, havia duas ou três correntes dentro da FIS que rapidamente rachariam. Mas o cancelamento das eleições levou a uma guerra com milhares de mortos, que destruiu a cultura política do país.
O Egito é governado por um ditador corrupto. Mas, se houvesse eleições livres, acredito que os islâmicos teriam cerca de 35% a 40% dos votos, não muito mais.
A maioria dos programas desses grupos não é muito muito diferente dos de partidos democratas cristãos em outras partes. Por que não é possível ter o equivalente no mundo muçulmano? Por outro lado, os islamistas da Turquia são os favoritos da Otan. O padrão duplo não deveria existir.

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