Folha de São Paulo de 05 de maio de 2009
Governo muda classificação e censura papéis históricos
Documentos ganharam tarjas após serem reavaliados como "ultrassecretos", em 2005
Mudança é legal; trechos censurados nas atas tratam, segundo o GSI, de relações com países do Cone Sul que fazem fronteira com o Brasil
Os documentos secretos que o governo tornou públicos em março com numerosos trechos censurados estavam na maioria passíveis de liberação por lei, sem restrições, pelo menos desde 1997.
Eles só puderam receber tarjas pretas para ocultar parte do conteúdo devido a mudança operada sigilosamente em 2005 pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
Foram liberadas as mais de 3.000 páginas de atas do Conselho de Segurança Nacional, do nascimento, em 1934, ao fim, em 1988. Em nenhum período da história do órgão uma ata teve classificação original de sigilo maior que "secreto".
Essa classificação não permite manutenção de veto a acesso público maior que 20 anos, renováveis no limite por mais 20 -portanto, 40 anos. Já era assim em 1997, quando foi regulamentada lei de 1991.
De 2002 a 2004, o prazo de sigilo dos papéis "secretos" pulou para 30 anos -renovando-o, 60 anos. Todos os documentos da década de 30 estariam liberados integralmente.
O prazo de 20 anos foi restabelecido no decreto presidencial 5.301, de 2004. Seriam acessíveis em 2009, na íntegra, todas as atas de 1934 a 1968, período em que se concentra a censura a dezenas de trechos dos documentos, no total de 413 linhas, na conta do GSI.
Em 2005, contudo, o gabinete subordinado à Presidência e dirigido pelo general de exército Jorge Armando Felix introduziu a classificação de "ultrassecreto" em papéis carimbados na origem como, no máximo, "secretos". A mudança é legal.
O GSI diz que ela consta do seu "Boletim Reservado" de junho de 2005, ao qual é proibido acesso público.
Desde 2002, em virtude de decreto restritivo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, documentos "ultrassecretos" podem permanecer em segredo para sempre. O mecanismo, que se convencionou denominar de sigilo eterno, foi mantido pelo presidente Lula.
Nem mesmo a ditadura militar (1964-1985) classificou como "ultrassecretas" as atas. Definiu-as como "secretas".
Com diversas denominações nos 54 anos de sua trajetória, o CSN foi, na expressão de decreto-lei de 1969, o "órgão de mais alto nível de assessoramento direto do presidente" na "formulação e na execução da política de segurança".
Se o governo Lula teve o mérito de liberar documentos que a legislação já permitia divulgar na administração FHC (1995-2002), por outro lado, introduziu censura onde ela não poderia existir, a seguir a classificação original de sigilo.
Sigilo eterno
Os trechos censurados tratam na essência, conforme o GSI, das relações com os países fronteiriços do Cone Sul. O propósito da permanência do segredo seria evitar constrangimentos diplomáticos.
A leitura das atas evidencia o esforço para esconder, lançando mão de censura, a obsessão dos governos do Brasil referente à relação de forças com a Argentina, especialmente no campo militar.
As tarjas pretas dificultam que se conheça mais a fundo o relacionamento histórico entre os dois membros mais influentes do Mercosul.
A primeira ata censurada é a da segunda sessão do CSN, presidida em outubro de 1935 pelo presidente Getulio Vargas no Palácio do Catete, então sede do governo. Um dos trechos sob tarja compara o poder naval brasileiro ao "de outra nação sul-americana" -o contexto deixa claro ser a Argentina.
A censura se sucede em atas até os anos 70. É falso, no entanto, que somente suscetibilidades da diplomacia tenham sido consideradas.
Da 24ª sessão do CSN, de agosto de 1964, censurou-se uma demonstração dos encargos financeiros da Eletrobrás por 45 anos (até 2009), na compra de empresas do setor de eletricidade. Nesse trecho, a tarja falha: com baixa resolução, expõe o conteúdo. É possível ler o gráfico que está sob ela.
A mudança de classificação feita pelo GSI em 2005 não bastaria para impor a censura, que o gabinete informa ter sido aprovada em reunião da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas.
Criada no governo Lula e subordinada à Casa Civil, a comissão é coordenada pela titular da pasta, Dilma Rousseff. Integram-na Dilma, o general Felix e os ministros da Justiça, da Defesa, de Relações Exteriores e de Direitos Humanos, mais o advogado-geral da União.
Nos termos do sigilo eterno, a comissão pode perpetuar exclusivamente veto a papéis classificados "no mais alto grau de sigilo" (os "ultrassecretos").
Censuradas, a atas do CSN podem ser lidas no site do Arquivo Nacional (www.arquivonacional.gov.br).
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