sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A liberdade provisória em tráfico de entorpentes e o estado de exceção

O graduando em direito da UFRJ Rafael Barros sintetiza voto do Min. Eros Grau em HC aplicando a categoria de estado de exceção.
Ministro Eros Grau aplica novamente a teoria do estado de exceção em caso concreto
Pronunciando-se mais uma vez de forma emblemática, o ministro Eros Grau
a teoria do estado de exceção em uma decisão, visando, segundo ele, dar
real efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana. O caso
concreto em questão era o Habeas Corpus 94916/RS. A paciente havia sido
presa em flagrante portando pequena quantidade de maconha quando
visitava seu marido em uma penitenciária. Processada pelo crime de
tráfico de entorpecentes, foi beneficiada com liberdade provisória na
decisão proferida em primeiro grau. O benefício foi cassado em segundo
grau pela Terceira Câmara Criminal do TJ/RS. Expedido mandado de prisão
que acabou por não ser cumprido pelo fato de a paciente ter mudado de
endereço. Cinco anos após o fato a mesma tomou conhecimento do mandado
e impetrou o HC no STJ, que o indeferiu, levando a decisão para a
Segunda Turma do STF, que teve como relator o ministro Eros Grau. A
alegação do Habeas Corpus é a que se segue, em resumo do próprio
ministro Eros no informativo 522:
"(i)a paciente é inocente, não é
traficante; viciada, tinha a droga para consumo próprio, vindo a ser
presa no estabelecimento prisional porque a comprara antes da visita ao
marido e não tinha onde deixá-la;
(ii) a paciente chegou a
pensar em apresentar-se à autoridade policial, porém descobriu ser
portadora do vírus da AIDS, “o que acarretou a contração de novas
enfermidades como HEPATITE C e também HTLV que é um câncer na medula,
doença que já deixou alguns músculos do corpo da PACIENTE sem
movimentação, e que necessitava de muitos cuidados que não seriam
concedidos no cárcere e acabou mudando sua opinião, já que teve medo
inclusive de morrer por falta de medicamentos”;
(iii) a paciente
tem interesse em provar sua inocência, está trabalhando com
dificuldades para sustentar sua filha e jamais voltou a delinqüir no
período em que permaneceu em liberdade; mantém atividade lícita e
endereço fixo; e
(iv) não há fundamentação cautelar para negar a
liberdade provisória; isso porque a paciente não representa perigo para
a sociedade e, em relação à garantia da instrução criminal, “A MESMA SÓ
SE AUSENTOU POR MEDO, O QUE É NORMAL, AINDA MAIS QUE TRATA-SE (sic) DE
PESSOA DOENTE”".A PGR manifestou-se favoravelmente à concessão do
Habeas Corpus, em parecer que foi seguido pelo ministro Eros Grau. A
PGR fala, pela peculiaridade do caso concreto, em abrandamento da regra
que torna incompatível a concessão de liberdade provisória em crimes
hediondos, como é tráfico, pelo qual a paciente está sendo acusada.
Eros
se manifesta que : “Dizer “peculiaridades do caso concreto” é dizer
exceção. Exceção que se impõe seja capturada pelo ordenamento jurídico,
mesmo porque, no caso, a afirmação da dignidade da pessoa humana acode
a paciente.”
A partir desse momento, o ministro toma como base seu
voto na ADI 2240 e aplica a teoria do estado de exceção, suspendendo o
inciso II do art.2° da Lei 8072/90 visando sua posterior reaplicação
visando a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Segue
transcrição:“A transgressão à lei é punida de modo que a lei [= o
direito] seja restabelecida. Nesse sentido, a condenação restabelece o
direito, restabelece a ordem, além de pretender reparar o dano sofrido
pela vítima. A prisão preventiva antecipa o restabelecimento a longo
termo do direito; promove imediatamente a ordem. Mas apenas
imediatamente, já que haverá sempre o risco, em qualquer processo, de
ao final verificar-se que o imediato restabelecimento da ordem
transgrediu a própria ordem, porque não era devido.
A regra diz
ser incabível a liberdade provisória em caso de prisão em flagrante por
tráfico ilícito de entorpecentes. Daí que, nos seus termos, a prisão
preventiva da paciente dela necessariamente decorreria. No caso,
contudo, a exceção afasta a regra.
A exceção é o caso que não
cabe no âmbito de normalidade abrangido pela norma geral. A norma geral
deixaria de sê-lo [= deixaria de ser geral] se a contemplasse. Da
exceção não se encontra alusão no discurso da ordem jurídica vigente.
Define-se como tal justamente por não ter sido descrita nos textos
escritos que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito
positivo não existissem palavras que tornassem viável a sua descrição —
daí dizermos que a exceção está no direito, ainda que não se a encontre
nos textos normativos de direito positivo.
Pois ela não está
situada além do ordenamento, senão no seu interior. O estado de exceção
é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, zona
de indiferença no entanto capturada pelo direito. De sorte que não é a
exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à
exceção — somente desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se
em relação com a exceção. Daí que ao Judiciário, sempre que necessário,
incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Mas ao
fazê-lo não se afasta do ordenamento. Aplica a norma à exceção
desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção, retirando-se desta.
Este tribunal tem assim procedido em alguns casos, assumindo claramente
tê-lo feito. Menciono, para dar exemplo disso, as decisões tomadas na
Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.240, da qual fui relator, e na
Reclamação 3.034.
Aqui, no caso de que cogitamos, estamos diante
de exceção. A regra que diz ser incabível a liberdade provisória em
caso de prisão em flagrante por tráfico ilícito de entorpecentes não
pode colher a situação descrita nestes autos, pena de transgredir a
própria ordem na qual se compõe. Pois é certo que sua aplicação
conduziria a afronta à dignidade da pessoa humana, valor transformado
em princípio normativo no texto da Constituição de 1988.
É que a
prisão preventiva da paciente não anteciparia meramente a sua
condenação, porém uma autêntica vingança do Estado, rectius da
sociedade civil. A condenação cederia espaço à violência incontida da
vendeta. É como se a sociedade civil, representada por um Estado que
ainda com ela se confunde, se vingasse de si própria por ser o que é, e
como é, na pessoa da paciente. Explico-me.
O Estado moderno é
ainda determinado por certos particularismos, antagônicos a outros.
Ainda se confunde, por uma larga parte, com o Estado do exterior, o
Estado da necessidade e do entendimento, isto é, carrega
características da sociedade civil, que, logicamente suprassumida no
sistema hegeliano, ainda não encontrou a sua plena realização nas
estruturas engendradas pela modernidade. Nele se constrói a paz
burguesa, dotada de caráter temporário na medida em que o dissenso
entre os particularismos antagônicos é apenas mediado, superado pela
conveniência — o que, no direito, não consubstancia, a rigor, nenhuma
mediação efetiva, nem suprassunção, mas justaposição conflitante.
Por
certo superpõem-se, no mundo da vida, manifestações próprias a ambos,
ao Estado moderno e ao Estado na concepção hegeliana. Mas o que
prevalece, na forma institucional do primeiro, é a apropriação, pela
burguesia, dos monopólios da violência e da tributação, caracterizando
uma eticidade (Sittlichkeit) ainda não de todo permeada pela
racionalidade como razão efetiva.
A justiça produzida pelo
Estado moderno condena para restabelecer o direito que ele mesmo põe,
para restabelecer a ordem, pretendendo reparar os danos sofridos pela
vítima. Mas a vítima no caso dos autos não é identificada. É a própria
sociedade, beneficiária de vingança que como que a pacifica em face,
talvez, da frustração que resulta de sua incapacidade de punir os
grandes impostores. De vingança se trata, pois é certo que manter presa
em condições intoleráveis uma pessoa doente não restabelece a ordem,
além de nada reparar. Essa brutalidade, infernal, não pode ser tida —
repito — senão como expressiva pura e simplesmente de vingança,
exclusivamente de vingança de quem se compraz em fazer o mal.
A
este tribunal incumbe a elevada missão de afirmar a força normativa da
Constituição e de conferir efetividade à dignidade do ser humano, que o
seu artigo 1º declara. A paciente apresenta estado de saúde debilitado
— diz o Juiz da causa — e dela depende inclusive economicamente uma
filha. Submetê-la ao cárcere, isso é incompatível com o direito, ainda
que se possa ter como adequado à regra. Daí que a captura da exceção se
impõe. Aliás, é da inclusão de situações como tais no ordenamento — e
da exclusão de outras, a pretexto de razoabilidades e
proporcionalidades — que depende a regularidade do seu funcionamento.
Direi mesmo que a preservação dos princípios impõe, seguidas vezes, a
transgressão das regras.
Concedo a ordem, a fim de que a paciente permaneça em liberdade até eventual
sentença penal condenatória transitada em julgado.”

Um comentário:

Unknown disse...

Eu achei a fundamentação bastante complexa para ser compreendida pela grande maioria dos destinatários da decisão (são públicas e motivadas), envolvendo questões sociológicas pouco explicitadas.
Não seria mais paradigmático, ao revés da ponposidade das teses levantadas (apesar de dignas), simplesmente conceder o HC dentro de um estado de necessidade da paciente (peculiaridades do fato) a excepcionar a aplicação da regra da vedação de liberdade provisória, acrescida do vetor principiológico da dignidade da pessoa humana.
Talvez eu esteja sendo ignorante no caso, mas me deu a impressão que para pretender o estado de exceção o Ilustre Ministro deu muitas voltas e trasnportou-se para nuances obscuras e redundantes, distante da realidade de milhões de juridicionados destinatários das decisões daquela Corte.
Mesmo assim, fiquei emocionado com o desfecho da decisão.