Pronunciando-se mais uma vez de forma emblemática, o ministro Eros Grau a teoria do estado de exceção em uma decisão, visando, segundo ele, dar real efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana. O caso concreto em questão era o Habeas Corpus 94916/RS. A paciente havia sido presa em flagrante portando pequena quantidade de maconha quando visitava seu marido em uma penitenciária. Processada pelo crime de tráfico de entorpecentes, foi beneficiada com liberdade provisória na decisão proferida em primeiro grau. O benefício foi cassado em segundo grau pela Terceira Câmara Criminal do TJ/RS. Expedido mandado de prisão que acabou por não ser cumprido pelo fato de a paciente ter mudado de endereço. Cinco anos após o fato a mesma tomou conhecimento do mandado e impetrou o HC no STJ, que o indeferiu, levando a decisão para a Segunda Turma do STF, que teve como relator o ministro Eros Grau. A alegação do Habeas Corpus é a que se segue, em resumo do próprio ministro Eros no informativo 522:" a paciente é inocente, não é traficante; viciada, tinha a droga para consumo próprio, vindo a ser presa no estabelecimento prisional porque a comprara antes da visita ao marido e não tinha onde deixá-la;
(ii) a paciente chegou a pensar em apresentar-se à autoridade policial, porém descobriu ser portadora do vírus da AIDS, “o que acarretou a contração de novas enfermidades como HEPATITE C e também HTLV que é um câncer na medula, doença que já deixou alguns músculos do corpo da PACIENTE sem movimentação, e que necessitava de muitos cuidados que não seriam concedidos no cárcere e acabou mudando sua opinião, já que teve medo inclusive de morrer por falta de medicamentos”;
(iii) a paciente tem interesse em provar sua inocência, está trabalhando com dificuldades para sustentar sua filha e jamais voltou a delinqüir no período em que permaneceu em liberdade; mantém atividade lícita e endereço fixo; e
(iv) não há fundamentação cautelar para negar a liberdade provisória; isso porque a paciente não representa perigo para a sociedade e, em relação à garantia da instrução criminal, “A MESMA SÓ SE AUSENTOU POR MEDO, O QUE É NORMAL, AINDA MAIS QUE TRATA-SE (sic) DE PESSOA DOENTE”".A PGR manifestou-se favoravelmente à concessão do Habeas Corpus, em parecer que foi seguido pelo ministro Eros Grau. A PGR fala, pela peculiaridade do caso concreto, em abrandamento da regra que torna incompatível a concessão de liberdade provisória em crimes hediondos, como é tráfico, pelo qual a paciente está sendo acusada.
Eros se manifesta que : “Dizer “peculiaridades do caso concreto” é dizer exceção. Exceção que se impõe seja capturada pelo ordenamento jurídico, mesmo porque, no caso, a afirmação da dignidade da pessoa humana acode a paciente.”
A partir desse momento, o ministro toma como base seu voto na ADI 2240 e aplica a teoria do estado de exceção, suspendendo o inciso II do art.2° da Lei 8072/90 visando sua posterior reaplicação visando a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Segue transcrição:“A transgressão à lei é punida de modo que a lei [= o direito] seja restabelecida. Nesse sentido, a condenação restabelece o direito, restabelece a ordem, além de pretender reparar o dano sofrido pela vítima. A prisão preventiva antecipa o restabelecimento a longo termo do direito; promove imediatamente a ordem. Mas apenas imediatamente, já que haverá sempre o risco, em qualquer processo, de ao final verificar-se que o imediato restabelecimento da ordem transgrediu a própria ordem, porque não era devido.
A regra diz ser incabível a liberdade provisória em caso de prisão em flagrante por tráfico ilícito de entorpecentes. Daí que, nos seus termos, a prisão preventiva da paciente dela necessariamente decorreria. No caso, contudo, a exceção afasta a regra.
A exceção é o caso que não cabe no âmbito de normalidade abrangido pela norma geral. A norma geral deixaria de sê-lo [= deixaria de ser geral] se a contemplasse. Da exceção não se encontra alusão no discurso da ordem jurídica vigente. Define-se como tal justamente por não ter sido descrita nos textos escritos que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito positivo não existissem palavras que tornassem viável a sua descrição — daí dizermos que a exceção está no direito, ainda que não se a encontre nos textos normativos de direito positivo.
Pois ela não está situada além do ordenamento, senão no seu interior. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, zona de indiferença no entanto capturada pelo direito. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção — somente desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. Daí que ao Judiciário, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Mas ao fazê-lo não se afasta do ordenamento. Aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção, retirando-se desta. Este tribunal tem assim procedido em alguns casos, assumindo claramente tê-lo feito. Menciono, para dar exemplo disso, as decisões tomadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.240, da qual fui relator, e na Reclamação 3.034.
Aqui, no caso de que cogitamos, estamos diante de exceção. A regra que diz ser incabível a liberdade provisória em caso de prisão em flagrante por tráfico ilícito de entorpecentes não pode colher a situação descrita nestes autos, pena de transgredir a própria ordem na qual se compõe. Pois é certo que sua aplicação conduziria a afronta à dignidade da pessoa humana, valor transformado em princípio normativo no texto da Constituição de 1988.
É que a prisão preventiva da paciente não anteciparia meramente a sua condenação, porém uma autêntica vingança do Estado, rectius da sociedade civil. A condenação cederia espaço à violência incontida da vendeta. É como se a sociedade civil, representada por um Estado que ainda com ela se confunde, se vingasse de si própria por ser o que é, e como é, na pessoa da paciente. Explico-me.
O Estado moderno é ainda determinado por certos particularismos, antagônicos a outros. Ainda se confunde, por uma larga parte, com o Estado do exterior, o Estado da necessidade e do entendimento, isto é, carrega características da sociedade civil, que, logicamente suprassumida no sistema hegeliano, ainda não encontrou a sua plena realização nas estruturas engendradas pela modernidade. Nele se constrói a paz burguesa, dotada de caráter temporário na medida em que o dissenso entre os particularismos antagônicos é apenas mediado, superado pela conveniência — o que, no direito, não consubstancia, a rigor, nenhuma mediação efetiva, nem suprassunção, mas justaposição conflitante.
Por certo superpõem-se, no mundo da vida, manifestações próprias a ambos, ao Estado moderno e ao Estado na concepção hegeliana. Mas o que prevalece, na forma institucional do primeiro, é a apropriação, pela burguesia, dos monopólios da violência e da tributação, caracterizando uma eticidade (Sittlichkeit) ainda não de todo permeada pela racionalidade como razão efetiva.
A justiça produzida pelo Estado moderno condena para restabelecer o direito que ele mesmo põe, para restabelecer a ordem, pretendendo reparar os danos sofridos pela vítima. Mas a vítima no caso dos autos não é identificada. É a própria sociedade, beneficiária de vingança que como que a pacifica em face, talvez, da frustração que resulta de sua incapacidade de punir os grandes impostores. De vingança se trata, pois é certo que manter presa em condições intoleráveis uma pessoa doente não restabelece a ordem, além de nada reparar. Essa brutalidade, infernal, não pode ser tida — repito — senão como expressiva pura e simplesmente de vingança, exclusivamente de vingança de quem se compraz em fazer o mal.
A este tribunal incumbe a elevada missão de afirmar a força normativa da Constituição e de conferir efetividade à dignidade do ser humano, que o seu artigo 1º declara. A paciente apresenta estado de saúde debilitado — diz o Juiz da causa — e dela depende inclusive economicamente uma filha. Submetê-la ao cárcere, isso é incompatível com o direito, ainda que se possa ter como adequado à regra. Daí que a captura da exceção se impõe. Aliás, é da inclusão de situações como tais no ordenamento — e da exclusão de outras, a pretexto de razoabilidades e proporcionalidades — que depende a regularidade do seu funcionamento. Direi mesmo que a preservação dos princípios impõe, seguidas vezes, a transgressão das regras.
Concedo a ordem, a fim de que a paciente permaneça em liberdade até eventual sentença penal condenatória transitada em julgado.”
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