A Folha de São de Paulo de 25 de outubro de 2008 traz a seguinte entrevista de Paul Kennedy para refletirmos sobre a crise global da economia.
EUA não resolvem crise global, diz Kennedy
Historiador inglês alerta para excesso de expectativa sobre poder do novo presidente americano para revitalizar economiaDefensor da tese do declínio americano, professor de Yale vê Ásia mais resistente a efeitos da crise e elogia papel do Brasil no mundo
A era do "Tio Sam", quando os EUA ordenavam que se fizesse "isso e aquilo" sem consultar os outros protagonistas, morreu, diz Paul Kennedy. E seu epitáfio, segundo o historiador inglês de Yale, deve dedicar algumas linhas à atual crise financeira global, que limitará, em muito, o raio de ação do sucessor de George W. Bush. Para o autor do livro "Ascensão e Queda das Grandes Potências" (Editora Campus) e um dos principais teóricos do declínio americano, a crise acentuará a diminuição da influência dos EUA, pavimentará o caminho rumo a uma ordem mundial multipolar e mudará a face do capitalismo global.Kennedy, 63, alerta para a expectativa exagerada em relação ao poder de fogo do próximo presidente americano contra os efeitos da crise. Mesmo assim, qualifica o democrata Barack Obama como o mais preparado para enfrentar a estagnação econômica e as guerras no Iraque e no Afeganistão.Leia trechos da entrevista concedida por Kennedy à Folha em visita ao Brasil, quinta-feira, para participar da Semana Yale na Brazilian Business School em São Paulo.
FOLHA - Como o senhor encara a expectativa gerada pela chegada de um novo presidente americano para pilotar a crise financeira?PAUL KENNEDY - Estou preocupado com as expectativas quanto ao que o "novo cara" poderá fazer. As pessoas não entendem as enormes restrições de autonomia diante dos déficits. Além disso, o "novo cara" pode ser muito competente, responsável e articulado, mas só será eficaz se trabalhar estreitamente com outros líderes. Acabou a era do Tio Sam ordenando que se faça "isso e aquilo" sem consultar outros protagonistas.
FOLHA - Qual é o maior desafio do próximo presidente americano: a crise financeira ou as situações desastrosas -e custosas- no Iraque e no Afeganistão?KENNEDY - Reencontrar o equilíbrio fiscal e ressuscitar a fé na economia americana é o maior desafio do próximo presidente.Isso dito, acho que a gravidade da crise pode ajudar Obama, na medida em que lhe permitiria pôr em prática mais facilmente e com menos controvérsia do que em outro contexto o seu plano de retirada gradual das tropas dos EUA no Iraque.
FOLHA - Qual o candidato mais preparado para enfrentar esses desafios?KENNEDY - Há um ano, quando só se falava em Hillary Clinton, Joe Lieberman, Rudy Giuliani etc, minha mulher voltou de Nebraska, onde havia gravado um programa de TV com Obama, e me disse: "Olhei como esse cara respondia a perguntas num vilarejo no meio do nada e reparei no quanto ele é surpreendente".Desde então, percebi que Obama tem muito mais do que aquela elegância pública e o maravilhoso dom da palavra.Ele escuta e pensa com muita precisão. Mas estou tentando conter meu otimismo e minhas expectativas, porque quando me lembro de que muitos efeitos dessa crise ainda não apareceram, penso que ninguém conseguirá fazer o que quer que seja em janeiro.
FOLHA - A que ponto a crise reflete a diminuição do poder dos EUA?KENNEDY - Não podemos discutir a crise falando apenas dos EUA, já que está comprovado que o estouro das hipotecas se construiu também na Europa Ocidental. Além disso, muitos dos chamados "banqueiros internacionais inteligentes" alimentaram esse sistema viciado na Islândia, no Reino Unido e em outros lugares. Todo mundo está sentindo o baque, em maior ou menor escala.Mas acho que o crescimento da Ásia continuará, embora em ritmo menos acelerado. O crescimento da economia chinesa poderá cair de 11,5% para 6%, enquanto a economia americana ficará estagnada. Em termos relativos, os EUA estão encolhendo. E não me refiro apenas à confiança, que está num nível assustador no país, mas ao fato de as próprias possibilidades de crescimento terem sido cortadas. Isso não aconteceu na Ásia.
FOLHA - Em que grau a atual crise vai transformar o capitalismo?KENNEDY - O que está acontecendo é um daqueles períodos de mudança e de ajustes nas estruturas. Após a fase de baixo crescimento da década de 70, vieram a senhora [Margaret] Thatcher e Ronald Reagan, que liberalizaram, se livraram dos controles financeiros, deram descontos de impostos para investidores, e o resultado disso foi o fluxo maciço de capital.Sob o governo [George] Bush, foram retiradas ainda mais regulação e fiscalização.Teremos um capitalismo modificado, aprimorado. Os investidores vão querer mais regulação, maior controle sobre os hedge funds [que apostam em diferentes ativos], sobre a especulação, e uma maior cooperação entre os bancos centrais.Há quem diga, como o [presidente venezuelano Hugo] Chávez, que o capitalismo está morto, mas essas medidas visam garantir que o capitalismo volte a ser saudável, sem os excessos das especulações. Não será mais como antes.
FOLHA - E como fica a divisão de poderes nesse novo mundo?KENNEDY - É verdade que há uma profunda falta de confiança no governo [George W.] Bush em todo o mundo, o que pode ser superado por uma nova gestão que se mostre mais sensível, mais inteligente, mais cooperativa e multilateralista.Mas, no longo prazo, o equilíbrio mundial está realmente mudando. Não em termos militares, porque os EUA respondem por metade do orçamento bélico mundial. A transformação fica evidente na composição das reservas internacionais estratégicas dos países.Duas décadas atrás, elas eram compostas quase totalmente em dólares. Da última vez que verifiquei, no começo do ano, a parcela de moeda americana era 63% e provavelmente vai continuar caindo e teremos mais reservas em rupias da Índia, em yuans chineses, em euros quando a Europa superar a sua crise bancária.De um mundo do dólar passamos a um mundo de várias moedas. Foram raros os momentos históricos que tiveram uma potência só.Voltaremos para a normalidade de um mundo multipolar, com um líder mas outros países fortes o suficiente para serem independentes. Mesmo agora, não há nada que o governo americano possa fazer para intimidar a China, ou a Rússia, ou a Índia. Já há três atores independentes.
FOLHA - É possível tirar alguma lição dessa crise?KENNEDY - O efeito dominó, de país a país e de banco a banco, fez os líderes políticos perceberem que eles precisam trabalhar mais juntos. O Banco da Inglaterra e o Banco da Suíça entenderam que devem atuar conjuntamente com o Fed e o Banco do Japão e o do Canadá, e assim por diante.O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são instituições ótimas, mas até então, por causa da liberalização do fluxo de capitais, não havia nada relevante em matéria de concertação sobre sistemas bancários. Acho que poderá surgir uma espécie de cartel de bancos centrais das 12 maiores economias, comprometidas em atuar juntas para evitar que seus maiores bancos não quebrem. Esse grupo se reuniria com freqüência, possivelmente substituindo o G7 e o G8.
FOLHA - O Brasil estaria no cartel?KENNEDY - Do meu ponto de vista, sim.
FOLHA - O sr. considera o Brasil uma potência emergente, mesmo com poderio militar e cultural tão modesto?KENNEDY - Ninguém cobra do Brasil que se torne uma potência militar. Aliás, seria uma tolice o país botar muito dinheiro em gastos com material bélico.O presidente Hugo Chávez está fazendo isso, mas a crise vai fazê-lo se arrepender. Um dos poucos benefícios desta crise é que Chávez e [o premiê e ex-presidente russo] Vladimir Putin serão afetados, pois eles acreditaram muito no barril a US$ 150.Se o Brasil quiser se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, deverá ter mais forças bem treinadas para abastecer as missões de paz, algo que já faz muito bem no Haiti.Também convém ao país manter sua atuação no campo da diplomacia econômica e de cooperação. A força do Brasil está no seu papel como protagonista do comércio Sul-Norte e Sul-Sul.
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