sexta-feira, 31 de outubro de 2008

I.Berlin e a liberdade negativa

O bolsista de monitoria Renan Cardoso da disciplina Teorias do Estado da UFF envia-nos a seguinte matéria a respeito do pensamento de I.Berlin importante para compreender o debate contemporâneo da Teoria Política e a contraposição entre a liberdade de caráter liberal e a do republicanismo (liberdade positiva). O texto é de Ademar Cruz publicado no jornal O Valor de 31 de outubro de 2008.

Neste 31 de outubro, cumpre 50 anos uma das mais célebres e influentes
conferências da teoria política de todos os tempos, "Dois conceitos de
liberdade", de Isaiah Berlin, proferida na inauguração de cátedra que criara
em Oxford, em 1958. Trata-se da ocasião em que Berlin cunhou a expressão
"liberdade negativa" para designar um espaço mínimo de fronteiras não
discerníveis em que o exercício da autonomia individual não pode ser
restringido ou coagido por qualquer instituição social ou política. Diversos
comentaristas consideram a conferência de 1958 como uma das maiores
contribuições de todos os tempos para o pensamento liberal e para a
definição de liberdade.

Talhado na pura tradição da filosofia analítica, Berlin - nascido em Riga,
na atual Letônia, e radicado praticamente toda a vida em Oxford - foi
pioneiro em distinguir o conceito de liberdade de outros assemelhados, de
corte liberal e republicano, como justiça e fraternidade. Seu conceito de
liberdade negativa terá sido ainda mais preciso (e radical) ao dissociar-se
de automatismos que vinculavam liberdade com regimes de governo, como a
democracia. Com esta a liberdade negativa manteria relação de afinidade, mas
não de necessidade. Segundo Berlin, a pergunta "o que eu posso ser ou
fazer?" é logicamente distinta de "por quem sou governado, ou quem tem o
direito de me governar?". Berlin sustenta que, em certos períodos de
despotismo do Século XIX, vivia-se com mais liberdade que em muitas
democracias do Século XX.

Conceito-espelho de liberdade negativa é o de "surgimento do indivíduo",
entendido a partir de um movimento que segue da plena constituição social da
pessoa até chegar ao "eu" liberal desenraizado, independentemente de seus
vínculos e lealdades sociais. Com base nesse conceito, Berlin trata a
liberdade de modo bastante diverso de outro epígono do liberalismo, Benjamin
Constant, que numa também célebre conferência ("Da liberdade dos antigos
comparada à dos modernos") sustenta que nos regimes e sistemas políticos da
antigüidade o conceito de liberdade individual carecia de sentido
político-social. Para o filósofo suíço, a possibilidade de participação nos
negócios da polis ou o princípio rousseauniano da legitimidade bastariam
(numa acepção "positiva", republicana) para assegurar o exercício das
liberdades individuais.

Berlin refuta a proposta de Constant de equiparar a liberdade positiva à
negativa, ao rejeitar o utilitarismo e o comunitarismo como bases para a
promoção das liberdades individuais: "Se minha liberdade, de minha classe ou
país, dependesse da miséria de outros seres humanos, então o sistema que
promove essa liberdade é injusto e imoral". Estava também consciente de que,
na prática, sua noção de liberdade negativa não constituía uma virtude
suprema a que a grande maioria da humanidade desejaria aspirar. Valores como
segurança, status, poder, recompensas na próxima vida, entre outros,
incompatíveis com a maximização das liberdades individuais, apelariam mais à
consciência dos povos. A elevação da liberdade na escala dos valores humanos
depende da formação da autoconsciência, que requer, por sua vez, a
universalização do acesso à educação, num movimento semelhante ao
preconizado por pensadores como Hegel, Marx e Paulo Freire ("Entender o
mundo é libertar-se"; "o ato de compreender já corresponde à ação").

A primazia da educação como requisito para a liberdade faz com que Isaiah
Berlin acompanhe Kant ao considerar o paternalismo como "o maior despotismo
imaginável", uma vez que gera a concepção falaciosa de que as pessoas são
incapazes de formular seus próprios projetos de vida, ou de que tais
projetos devem ser submetidos a uma determinada interpretação da verdade.
Uma das mais memoráveis passagens de "Dois conceitos" é quando Berlin
identifica na não-interferência o caminho para a dignidade individual, para
o reconhecimento e a construção da personalidade. O paternalismo, o
arbítrio, o desrespeito à impessoalidade do direito e a (des)caracterização
da pessoa como meio constituem práticas abomináveis porque lhe rouba a
autonomia e a identidade.

Do mesmo modo que Berlin denunciava o assalto à autonomia de parte de
regimes demagógicos e populistas, rejeitava o livre mercado -
diferentemente, portanto, de Constant e da tradição liberal - como uma forma
"brutal" e "inescrupulosa" de atentar contra os direitos dos menos aptos e
afortunados: "Liberdade para os lobos representa quase sempre a morte para
as ovelhas". Mais além, protesta que "os malefícios do laissez-faire
irrestrito (...) acarretaram violações inaceitáveis da liberdade negativa e
dos direitos básicos".

Longe, no entanto, de bandear-se para as fileiras do socialismo ou do
comunitarismo, Berlin lançou, em "Dois conceitos", as bases para uma
profunda revisão do liberalismo, que culminaria anos depois com a obra de
John Rawls. Percebe-se claramente na conferência de 1958 princípios da ética
deontológica; surgem os fundamentos do "consenso superposto" e do "fato do
pluralismo"; enunciam-se protovisões dos "valores justos da liberdade"; e
notam-se profundas marcas da liberdade negativa nos princípios de justiça
depreendidos do contratualismo de Rawls.

Um dos aspectos mais marcantes do liberalismo berliniano é o de que não se
presta a justificar nenhuma doutrina com pretensão ao universalismo nem
qualquer visão abrangente de mundo. O baluarte que quer defender é o da
ampliação da margem de liberdade de todo indivíduo, de poder dirigir sua
vida e não ser dirigido (tal como proclama o brasão de São Paulo, non dvcor,
dvco). O contrato social consiste basicamente em atribuir a um poder maior a
tarefa de impedir, contra qualquer pretexto ou circunstância, a afronta às
liberdades: seja de parte mercado anárquico, da onipresença do Estado ou dos
valores associados à própria democracia. "Dois conceitos de liberdade" é
mais que um breviário liberal, pois consiste numa das grandes formulações
analíticas da teoria política de todos os tempos. Expressa um momento de
autoconsciência do homem e um dos pontos culminantes da civilização.

Ademar Seabra da Cruz, diplomata, doutor em Sociologia (USP) e membro do
CEDEC-SP. Publicou "Justiça como Eqüidade" (Lumen Juris).

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